Se o Congresso Nacional estivesse discutindo projetos de lei que mexem com os interesses de grandes corporações financeiras, a imprensa brasileira estaria correta se enxergasse com ressalva qualquer pesquisa bombástica que um grande banco financie sobre o tema. Infelizmente, a analogia parece não valer quando os projetos de lei atingem a influência de grandes sindicatos, como é o caso do P.L. 4330 – o “projeto das terceirizações” – que está em discussão no Congresso Nacional. Nos últimos dias, uma pesquisa produzida por dois órgãos sindicais – CUT e DIEESE – vem sendo divulgada como verdade absoluta e incontestável. Uma imprensa minimamente cética teria ao menos o cuidado de desconfiar das fontes antes de ler o que dizem, ou de ler os dados levantados pela pesquisa e checar se batem com as conclusões. Ninguém fez isso.

A pesquisa em questão afirmava categoricamente que o salário dos terceirizados é, em média, 25% menor do que o dos trabalhadores contratados diretamente. Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, usou a pesquisa para afirmar em coluna na Folha de São Paulo que o projeto transformaria o país em um “inferno medieval da espoliação no trabalho”. A Carta Capital cita o dado numa lista de nove motivos para se preocupar com a nova lei. O Estadão também publicou a informação com uma pequena alteração. O problema é que, se Folha, Estadão e Carta Capital tomassem o cuidado de analisar seriamente o conteúdo da pesquisa antes de divulgar seu resultado, o falso argumento contra a terceirização não teria se espalhado.

O que diz a pesquisa da CUT e do DIEESE sobre o salário de terceirizados e não terceirizados:

Tabela retirada da pesquisa da CUT e do DIEESE sobre o salário de terceirizados e não terceirizados. Referências específicas podem ser encontradas no blog pessoal do Professor Roberto Ellery, linkado abaixo.

O economista Roberto Ellery, professor da Universidade de Brasília (UnB), decidiu ir às fontes e demonstrou em seu blog que uma análise simples da pesquisa seria suficiente para atestar a fragilidade das afirmações que ganharam manchetes. São muitas as barbeiragens estatísticas. Um exemplo: a pesquisa financiada por CUT e DIEESE simplesmente comparava o salário médio de trabalhadores terceirizados e não-terceirizados sem utilizar controles estatísticos que restringissem a comparação aos trabalhadores que desempenham a mesma função. Ou seja, o salário de trabalhadores com cargos e funções inteiramente distintas está sendo comparado sem o menor cuidado. E existem algumas razões para acreditar que os funcionários terceirizados tendem a ganhar menos justamente porque exercem funções que teriam um salário menor de qualquer forma, fossem terceirizadas ou não.

No Brasil, a terceirização é restrita às atividades-meio de uma empresa e não pode chegar ao que se chama de “atividades-fim”. Atividade-meio é aquela que dá suporte à atividade central de uma empresa – atividade-fim. Numa escola, a atividade-fim é exercida pelo professor.  Num hospital, a atividade-fim é a do médico. Elas não podem ser terceirizadas. As atividades-meio são aquelas que dão suporte à atividade-fim – é o trabalho dos funcionários de limpeza, segurança e auxílio administrativo das escolas e hospitais. O problema é que a atividade-fim, por motivos diversos, tende a render salários maiores para quem a desempenha. Comparar o salário de um médico com o de um porteiro terceirizado do hospital, e concluir a partir desta comparação que o trabalhador terceirizado ganha menos por ser terceirizado é, no mínimo, uma barbeiragem estatística. Alguém poderia me dizer que a comparação entre médico e porteiro do hospital é extrema, e que a diferença entre a função de terceirizados e não-terceirizados costuma ser menos evidente na maior parte das empresas, mas me parece mais perfeitamente razoável supor que o salário do funcionário que exerce uma atividade-fim seja, na maioria dos casos, maior do que o de quem exerce uma atividade-meio, e que isso nada tem a ver com o fato de ele seu contrato ser – ou não – terceirizável.

A tortura estatística ganha requintes ainda mais assustadores quando o professor nota que no próprio estudo da CUT e do DIEESE há a afirmação de que 22,7% dos funcionários contratados diretamente possuem nível superior completo, enquanto apenas 8,7% dos funcionários terceirizados terminaram um curso universitário. A maioria das pessoas veria nisso um ótimo motivo para afirmar que a diferença salarial tem relação direta com a diferença de formação entre os grupos. Chega a ser óbvio supor que um grupo de escolaridade maior provavelmente terá mesmo um salário maior. Para não deixar que este fato interfira no discurso anti-terceirização, os pesquisadores propagandistas da CUT e do DIEESE dão um triplo mortal carpado no raciocínio lógico e afirmam: “Se observarmos apenas o ensino médio completo, o número de trabalhadores em setores tipicamente terceirizados e tipicamente contratantes é praticamente o mesmo: 46%”. A explicação poderia ser traduzida para o português como: “Por motivos inexplicáveis, vamos olhar apenas para a quantidade de trabalhadores com ensino médio completo, que é parecida e bate com o discurso dos sindicatos que financiaram esta pesquisa. A gente vai ignorar especialmente a brutal diferença entre a quantidade de funcionários com nível superior completo em cada grupo e fingir descaradamente que isso não tem nada a ver com a diferença salarial entre eles.”

A análise do professor Roberto Ellery é mais extensa e mostra mais e mais inconsistências no estudo. Os interessados podem acessa-la no seu blog pessoal. Mas o problema apontado por ele é mais amplo: a cada dia, os órgãos de imprensa se deparam com pesquisas supostamente essenciais para o debate público sobre um tema qualquer. Sabe-se lá por que, no Brasil a regra para esses casos parece seguir a linha “publique-se a pesquisa sem o menor senso crítico, e ainda por cima tasque manchete incisiva para chamar atenção dos leitores”. Recentemente, o jornalista Leandro Narloch mostou como uma estatística inteiramente inventada sobre criminalidade entre menores de idade ganhou fôlego a ponto de ser citada no editorial da Folha de São Paulo, em tese o espaço mais nobre do maior jornal brasileiro. Argumentos incompletos e frágeis são tomados como verdade absoluta, baseada numa credibilidade acadêmica misteriosa. A dúvida que nos resta é simples: Quantas pessoas tiveram sua opinião formada por jornalistas preguiçosos na checagem de suas fontes? No debate sobre a Lei de Terceirizações, quão grande é a parcela da opinião pública brasileira que repete falsas verdades disseminadas pela opinião publicada?

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