Para uma abordagem mais completa da relação entre armas e homicídios e entender os erros tanto de armamentistas quanto de desarmamentistas, confira esse artigo.

Com os movimentos do Congresso para a revogação do Estatuto do Desarmamento, um número passou a rodar a imprensa: o Estatuto do Desarmamento teria salvado 160 mil vidas. O número também convenceu alguns parlamentares. O Deputado Alessando Molon (REDE-RJ), por exemplo, tuitou:

 

[tweet https://twitter.com/alessandromolon/status/659084016755306496]

Como eles chegaram nesse número? Uma boa parte dos estudiosos tenta usar o Estatuto do Desarmamento como um ponto de descontinuidade na taxa de homicídios no Brasil. A ideia é que, se todas as outras variáveis que determinam os homicídios mantiverem sua tendência anterior e uma única coisa mudar (nesse caso, a legislação sobre armas), essa variável que mudou será o que explica qualquer mudança nos homicídios. Essa é uma estratégia razoável e, a primeira vista, o Estatuto do Desarmamento parece ter tido efeito na redução de homicídios por armas de fogo. Veja abaixo.

 

estatutode

Desse desvio da taxa de homicídios de sua tendência histórica, pode-se extrapolar para quantas vidas teriam sido salvas por causa do Estatuto do Desarmamento. Isso faz sentido? Faria, se todas as outras coisas que influenciam a mortalidade por armas de fogo tivessem sido mantidas constante no Brasil. Mas essa abordagem ignora outras variáveis importantes para a taxa de homicídios que passaram por uma mudança histórica mais ou menos na mesma época em que a taxa de homicídios passou a cair no Brasil: a desigualdade de renda e a taxa de pobreza.

O gráfico abaixo mostra a relação entre o desvio dos homicídios por armas e da desigualdade de renda (medida pelo índice de gini) de suas tendências históricas. Embora não seja possível dizer que haja causalidade entre elas, há uma correlação significativa entre as duas variáveis.

desigualdade

É possível fazer uma análise similar utilizando dados comparando a taxa de pobreza com a taxa de homicídios. A pobreza, que pode certamente influenciar na taxa de homicídios, caiu a níveis historicamente muito baixos a partir de 2003 – o que coincide com a promulgação do Estatuto do Desarmamento. Isso complica a presunção de que tudo o mais se manteve constante e que a causa na queda dos homicídios tem de ser explicada pelo Estatuto e inviabiliza essa estratégia do ponto de descontinuidade.

pobreza

Um bom analista reconheceria que, do mesmo modo que é razoável a hipótese de que o Estatuto do Desarmamento pode ter reduzido a criminalidade, também é razoável pensar que foi a redução da desigualdade ou da pobreza que levou a tal mudança na taxa de homicídios por arma de fogo. 

E o que aconteceria se nós isolássemos o efeito da desigualdade e da redução da pobreza?

Eu trago aqui um modelo bem simples (embora mais complexo do que o utilizado para chegar nas 160 mil vidas salvas) para simular o que teria acontecido com as mortes por armas de fogo já excluindo o impacto da redução da pobreza e da desigualdade. [Aos interessados, os detalhes de como eu fiz isso estão ao fim do texto.] É interessante perceber que, combinados, desvios da pobreza e da desigualdade em relação a suas tendências históricas explicam 86% da variância das mortes por armas de fogo. Fazendo um contrafactual, observa-se que, caso a desigualdade a pobreza não tivessem sido reduzidas, é plausível postular que as taxas de homicídio por armas de fogo teriam seguido bem próximas de suas tendências históricas. Veja abaixo.

estatutode

Embora eu queira alertar o leitor que este exercício não tem o rigor de um artigo acadêmico, ele ajuda a elucidar que nós devemos tomar essas afirmações simplistas a respeito do efeito do Estatuto do Desarmamento com bastante ceticismo. É um erro usar metodologias simplistas pra fazer um argumento sobre uma política pública tão complexa. Traçar uma linha reta e ignorar todas as outras variáveis não é suficiente pra concluir que o Estatuto do Desarmamento salvou 160 mil pessoas

É possível que o Estatuto do Desarmamento tenha reduzido os homicídios. Sim. Mas também é possível que isso não tenha acontecido. O mais importante é saber essas manchetes não são baseadas em uma metodologia confiável. As manchetes são estratégias políticas, não estatísticas.


Apêndice Metodológico

Dados utilizados taxa de pobreza (Ipeadata), índice de gini (Banco Mundial) e taxa da homicídios por armas (Mapa da Violência) entre 1985 e 2012. Em caso de pequenas descontinuidades nas séries, os dados foram interpolados. Dados disponíveis aqui. Passos para a criação do contrafactual:

  1. Remoção da tendência linear de 1985-2003 (detrend) de todas as séries analisadas.
  2. Regressão linear dos resíduos de (1) tendo homicídios como  variável dependente e gini e pobreza como variáveis independentes.
  3. O resíduo de (2) é a parte dos homicídios não explicada por variações no índice gini e na taxa de pobreza.
  4. Para reconstruir a série original em um contrafactual, somar o resíduo (3) à tendência original (1).
Código do STATA:

capture log close
clear
log using desarmamento.log, replace
import delimited “brazil.csv”, varnames(1)
tsset year, y
foreach var in homicides poverty gini {
reg `var’ year if year < 2004
predict `var’_r, r
predict `var’_t
}
reg homicides_r poverty_r gini_r, r noconstant
predict homicides_n, r
gen homicides_nn = homicides_n + homicides_t

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