A expressão “falsa simetria” é usada a torto e a direito em discussões online, mas muitos não entendem o termo ou o que ele significa. A falsa simetria acontece quando comparamos situações aparentemente semelhantes, mas que se mostram distintas quando colocados ao contexto, e não são, portanto, comparáveis. Chamar um negro de macaco, por exemplo, não é a mesma coisa que chamar um branco de palmito, ainda que os dois adjetivos façam referência à cor da pele. A primeira ofensa evoca séculos de opressão e desumanização da etnia negra incorporados na palavra “macaco”, enquanto o “palmito” evoca… absolutamente nada. Será que a misoginia (ódio ou, como julgo mais apropriado, desprezo às mulheres), encontrada no dia-a-dia através de tipos de violência dedicadas exclusivamente ao gênero feminino quanto em discursos do tipo “mulheres são todas traiçoeiras”, pode ser à misandria, o suposto “ódio a homens” atribuído a algumas feministas?
Joanna Russ argumenta de maneira bastante convincente neste texto que o campo de batalha das misândricas – feministas que praticam a misandria – é teórico, e que nenhum homem jamais morreu por efeito da misandria, diferentemente da misoginia, o que implica que as duas práticas, apesar da aparente simetria, não são análogas por provocarem efeitos diferentes na sociedade. No mesmo texto, Joanna diz:
(1) Você faz algo ruim para mim. (2) Eu te odeio. (3) Você acha desconfortável ser odiado. (4) Você imagina o quão legal seria se eu não te odiasse. (5) Você decide que eu devo não te odiar porque o ódio é mau. (6) Pessoas boas não odeiam. (7) Porque odeio, eu sou uma má pessoa. (8) Não é o que você me fez que me faz de te odiar, é minha própria natureza má. Eu – não você – sou a causa do meu ódio por você.
A misandria é, portanto, uma reação natural do oprimido. A questão aqui é se ela deve ser considerada válida segundo o liberalismo ou não.
As misândricas costumam argumentar que seu ódio se dirige ao homem enquanto classe, e não aos indivíduos homens, de modo que não é o homem que é odiado, e sim aquilo que o torna homem. Que não, não é o seu órgão genital. Falo aqui do papel social de ser homem. Existem discordâncias no meio feminista quanto a o que torna um homem, homem e uma mulher, mulher, sobre as quais já discuti um pouco neste texto, mas o fato é que as pessoas que são entendidas como homens cisgêneros detêm diversos privilégios em nossa sociedade e que essas pessoas são sistematicamente educadas para agir como se fossem superiores, ainda que conscientemente não acreditem que o são.
Mas o que é agir como se fossem superiores? É diminuir a opinião de mulheres, é acreditar que mesmo existindo mulheres mais capacitadas, você, homem, é a pessoa mais indicada para liderar um grupo, é não conseguir conceber que mulheres possam se organizar de alguma forma que não envolva homens.
Todas essas situações acontecem diariamente com todas as mulheres, em maior ou menor escala. Sabendo disso, é compreensível que certos grupos feministas prefiram se preparar para evitá-las simplesmente não interagindo com homens.
O problema é que nem todos os homens agem assim. Alguns conscientemente trabalham para desconstruir esses restos de educação machista que carregam em si. Esses homens são jogados no mesmo saco dos outros pelo discurso da misandria. Temos aqui uma expressão de coletivismo, e é justamente nesse ponto que a misandria começa a entrar em conflito com o liberalismo.
Um dos pilares do liberalismo/libertarianismo é o individualismo metodológico, isto é, a compreensão de que cada indivíduo tem influências e motivações diferentes e que qualquer tentativa de agrupar vários deles sob um rótulo ou de tentar fornecer alguma solução para seus problemas de forma coletiva é sempre homogeneizante e ignora aspectos particulares que afetam cada um de maneira diferente. Como nós, defensores do individualismo, podemos aceitar que se juntem todos os homens em uma única classe e, pior, que o façamos com o objetivo de odiá-la?
Essa sempre foi uma questão difícil para mim, porque obter uma resposta universal para ela necessariamente cairia num paradoxo. Se respondo que a misandria é inaceitável por causa da minha abordagem individualista, estou dizendo às outras feministas que sua forma de militar é incorreta por ser diferente da minha. Julgar outras pessoas usando meus valores éticos como parâmetro, por outro lado, não é exatamente individualista.
Este texto muito bem-humorado de Jess Zimmerman, que acredito ser muito bem sintetizado no parágrafo a seguir, ajudou enormemente na busca pela resposta ao problema de compatibilidade entre as duas visões.
Mas eu acho que o conceito de “masculinidade” precisa ser executado a tiros [e não vocês, homens]. E quando (não se, mas quando, porque é assim que funciona ter privilégios) vocês escorregarem e fizerem algo sexista, quando vocês silenciarem uma mulher que sabe mais do que vocês, ou agirem como se o corpo e as roupas de uma mulher fossem projetados para o seu prazer; ou simplesmente quando ignorarem as desigualdades à sua volta porque vocês podem, porque lhes foi dito toda a sua vida que isso era ok e só recentemente vocês descobriram que não é, e vocês precisam lutar para se lembrar disso e é difícil; esse é o cara que eu quero banir. Eu quero banir Aquele Cara para que você possa ser o humano generoso, justo e compassivo que você é, e um dia, quando todos Aqueles Caras forem banidos, possamos apenas ser seres humanos juntos.
Jess mostra, embora não fosse esta a sua intenção, que a misandria não é necessariamente coletivista, por incrível que pareça. É claro que algumas formas de misandria acabam reforçando estereótipos de gênero:
Mas de maneira geral, ela é uma ferramenta útil. Feministas, por definição, odeiam a idéia de masculinidade que é passada aos homens. O feminismo libertário/individualista odeia justamente o fato de os homens constituírem uma classe, um coletivo, que detém privilégios, e acredita que retirar os homens deste coletivo é uma das melhores formas de combater a opressão que assola as mulheres. Ao direcionarmos o ódio à classe masculina, e não aos indivíduos, estamos paralelamente desconstruindo essa idéia homogeneizante de que homem tem que ser macho. Ao fazermos piadinhas misândricas do tipo “homem fazendo homice”, estamos dizendo “seja você mesmo, não seja esse cara que a sociedade te ensinou a ser”.
Entretanto, o problema de compatibilidade ainda continua, já que nem todas as expressões de misandria colaboram para se desconstruir o conceito de masculinidade. A imagem a seguir dificilmente incomoda alguém por ser só um desenho bobo, mas exemplifica bem o que eu quero dizer.
A formação de espaços exclusivamente femininos, a escolha de não se dar ao trabalho de explicar feminismo para homens, o textinho da figura, são todos exemplos dessa face do ódio a homens que pretendo discutir – a que leva mulheres a se isolarem deles. Entra nessa lista também o lesbianismo político propagado por feministas radicais que acreditam que a orientação sexual é uma escolha, e, portanto, escolher amar mulheres é boicotar o patriarcado.
Essa face da misandria pode ser encarada como uma forma de proteção contra comportamentos “tipicamente masculinos”, conforme já explicado, ou mesmo como uma tática de empoderamento, já que com ela a irmandade feminina (também chamada de sororidade) é valorizada em detrimento das relações com homens.
Por isso, embora eu, como feminista libertária, acredite que me isolar do contato com homens e não trazê-los para o feminismo entra em contradição com o valor que dou ao individualismo, penso que a melhor forma de resolver o paradoxo que apresentei alguns parágrafos atrás é ignorar essa contradição e aceitar que a misandria é uma opção que eu não fiz, mas é ainda assim válida para qualquer feminista que o queira. Eu realmente gostaria de viver em um mundo em que possamos viver como seres humanos juntos, como diz Zimmerman, em que não houvesse clube da Luluzinha excluindo nenhum homem. Mas em primeiro lugar seria bacana se as Luluzinhas não fossem excluídas desse imenso clube do Bolinha chamado mundo.