É impossível descrever a derrocada de Dilma sem mencionar sua irresponsabilidade na gestão das contas públicas. O descaso da presidenta com a sustentabilidade financeira do governo não apenas causou uma crise econômica de grandes proporções, mas também motivou parcialmente a abertura do processo de impeachment.
Embora muitos já alertassem para a possibilidade de desastre ainda em 2012 ou 2013, a conta foi adiada pelo governo até 2015 – convenientemente, um ano após as eleições presidenciais. Um dos custos de ter empurrado o problema com a barriga chegou às manchetes com a perda do ‘grau de investimento’, concedido por agências de classificação de risco que certamente não são famosas pela agilidade nesse tipo de decisão.
No mesmo ano de 2015, muito menos noticiada foi a conquista da Prefeitura de São Paulo, que recebeu o mesmo “grau de investimento” perdido pelo governo federal. Apesar da crise fiscal que atinge quase todos os níveis de governo no Brasil, o endividamento da prefeitura paulistana está muito abaixo dos limites legais e, surpreendentemente, os investimentos batem recordes históricos.
Haddad tem grande mérito pela saúde financeira do município. Não é como se ele fosse um cortador de gastos radical, mas o prefeito de São Paulo demonstrou que – em extremo contraste com Dilma, sua colega de partido – leva a responsabilidade fiscal a sério.
As contas da prefeitura já vinham, nas gestões anteriores de José Serra e Gilberto Kassab, priorizando a geração de caixa para investimentos na cidade. Haddad intensificou este processo. O maior passo de sua gestão na direção da sustentabilidade, porém, se deu no campo da negociação política, e não da boa administração dos recursos à sua disposição.
Durante as gestões anteriores, a dívida do município com o Governo Federal vinha sendo paga religiosamente, mas os juros cobrados eram muito altos – e, com isso, a dívida continua grande, apesar do esforço em manter os pagamentos. Em uma difícil negociação no Congresso, que seus adversários durante a campanha de 2012 classificavam como “impossível”, Haddad conseguiu reduzir os juros do contrato, que eram mais altos do que a taxa cobrada de outras administrações municipais.
O governo federal, controlado pelo seu partido, inicialmente foi contra o projeto. Mesmo assim, a Prefeitura acabou vencendo: os juros baixaram e, o que é mais importante, a dívida acumulada foi recalculada retroativamente com base na nova taxa. Ou seja, no novo cálculo, é como se os juros mais baixos estivessem em vigor desde o início do contrato. Assim, considerando os pagamentos realizados em gestões anteriores, a dívida municipal diminuiu bruscamente – de 74 bilhões de reais para 27,5 bilhões de reais.
Diminuir a dívida da cidade é, também, diminuir os custos das administrações passadas sobre o orçamento atual. Com isso, a Prefeitura passou a ter maior espaço fiscal para investir no futuro, ao invés de arcar com o passado. Os investimentos em São Paulo estão em níveis-recorde na história recente, por anos consecutivos, e só não são maiores por conta da crise nas contas federais, que fez o governo adiar diversas obras que financiaria na cidade.
Felizmente, a mudança não foi só política. O início da gestão Haddad foi muito desafiador. A dívida ainda não havia sido recalculada e surgiram dificuldades políticas como os protestos de 2013, que travaram o reajuste das tarifas de ônibus. Nesse cenário, o prefeito passou a propor medidas ousadas no corte de gastos.
Todos os contratos da prefeitura foram renegociados, diminuindo a velocidade de crescimento do gasto. Muito mais ousada foi a proposta de Haddad para a previdência dos funcionários públicos, que assusta quando lembramos da virulenta rejeição de qualquer reforma da previdência em nível federal. O plano de Haddad, aliás, tem aquilo que os militantes mais radicais do seu partido mais rejeitam: maior participação do setor privado e menor gasto público com aposentadorias.
A reforma da previdência proposta por Haddad criaria um teto para a previdência de servidores municipais. A principal mudança, porém, seria a criação da SampaPrev, que administraria parte do sistema. A gestão da SampaPrev seria feita por empresas privadas, que lucraram através dessa operação. Definitivamente, não se parece com o que seu partido defende quando alguém propõe a inevitável reforma previdenciária.
O maior símbolo desta surpreendente postura responsável de Haddad talvez esteja na reação de Haddad às exigências do Movimento Passe Livre, que protestava contra a tarifa de ônibus durante o início do ano:
Sim, Fernando Haddad fez referência ao clássico almoço grátis de Milton Friedman para rebater as exigências de um movimento de esquerda. Eis é um belo motivo antipetista para elogiar o prefeito.
Todo político brasileiro é associado à corrupção, mas os políticos do PT têm sido publicamente classificados como corruptos com frequência cada vez maior. Não é exatamente injusto, convenhamos.
A gestão de Haddad, porém, tem um bom argumento para desassociar seu nome da corrupção. A Controladoria Geral do Município, órgão de controle criado pelo prefeito, tem sido considerada como um sucesso quase unânime. Logo em seus primeiros meses, a Controladoria auditou todas as secretarias da prefeitura, revendo os contratos e ainda ajudando na postura fiscalmente responsável sobre a qual comentei no item anterior.
Como se não bastasse, a revisão levou ao demonstre de uma quadrilha que desviava parte do Imposto Sobre Serviços (ISS) para os bolsos de funcionários públicos. Logo de início, R$ 90 milhões foram devolvidos aos cofres públicos e o valor total de desvios recuperados em outros esquemas deve chegar a cerca de R$ 400 milhões ainda no primeiro mandato. Isso significa que, em apenas um mandato, a Prefeitura recuperou o equivalente a 10% dos investimentos públicos anuais na cidade. É bastante coisa.
Nesta seara, é natural a desconfiança com qualquer político brasileiro, e especialmente com um político petista. Mas, se nada for descoberto, a gestão de Haddad ficará marcada por um sólido legado de combate à corrupção no âmbito municipal.
Quem diz isso, aliás, é o vereador Andrea Matarazzo (ex-PSDB e atualmente no PSD), um dos maiores adversários do prefeito nas eleições deste ano.
Críticos de todas as partes do espectro político criticam o governo Lula pela falta de coragem. Lula fez reformas econômicas no início do seu governo, mas não tocou no sistema tributário caótico, burocrático, cheio de exceções, instável e regressivo. É realmente muito fácil citar problemas gravíssimos que Lula negligenciou. O cenário internacional e político era favorável como nunca, a economia crescia bem e a lua de mel política durou anos seguidos, mas as reformas diminuíram até parar, ao fim do seu governo.
Lentamente, especialmente após a saída de Antônio Palocci do Ministério da Fazenda, Lula foi se transformando no presidente que, ao fim do mandato, tinha a Odebrecht como grande amiga e Eike Batista como uma espécie de bilionário oficial. Muitas reformas difíceis, que exigiriam mobilização de força política no Congresso, foram ignoradas em favor de uma política amigável a grandes empresários, com gordos empréstimos do BNDES – e, como se descobriu posteriormente, uma sociedade entre a base aliada e grandes empreiteiras na maior organização criminosa já descoberta no país.
Existem muitas explicações já oferecidas para esta guinada: mudanças no Ministério da Fazenda, mensalão, crise internacional em 2008/9, dentre muitas. Políticos brasileiros, por diversos motivos, dificilmente resistem a um bom grupo de interesse e o PT se mostrou especialmente confortável em sua íntima relação com grandes empresas.
Seria injusto dizer o mesmo sobre Haddad. Contrariando o mais condenável hábito do seu partido na gestão federal, o prefeito de São Paulo não teve problemas em defender medidas estruturais de impacto desagradável no curto prazo, nem se importou com pressões de grupos de interesse.
A baixa popularidade de Haddad não surgiu por acaso. Medidas como a redução de velocidade nas Marginais – vias imensas e muito largas, que ocupam um papel estrutural no trânsito de São Paulo – gerou revolta entre motoristas. A implantação de uma grande quantidade de ciclovias e corredores de ônibus ajudaram a consolidar o prefeito como inimigo número 1 do motorista paulistano.
Ainda assim, Haddad aguentou a reprovação e seguiu fazendo o que dizia seu plano de governo, proposto durante as eleições de 2012. As evidências mostram que o prefeito estava certo em muitas de suas decisões: o número de ciclistas passou a crescer a uma espantosa faixa de 50% ao ano e, mesmo assim, o número de mortes caiu. Nas marginais, menos velocidade levou a menos acidentes e o fluxo de carros melhorou.
Não foram só as medidas no trânsito que levaram à impopularidade de Haddad. A rejeição extrema ao seu partido é óbvia demais para se ignorar.