A Ricardo de Mendonça Tolipan
Os piores leitores são aqueles que procedem como soldados saqueadores: escolhem algumas poucas coisas que podem utilizar, corrompem e confundem o restante, e blasfemam o todo.
NIETZSCHE
“Eu não posso acreditar nisto!”, disse Alice.
“Não pode?”, disse a Rainha com pena. “Tente de novo: respire profundamente, e feche os seus olhos.”
Alice riu. “Não tem qualquer sentido tentar”, ela disse: “não se pode acreditar em coisas impossíveis.”
“Eu ouso dizer que você não tem muita prática”, disse a Rainha. “Quando eu era da sua idade, sempre praticava durante meia hora por dia. Algumas vezes, cheguei a acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã.”
LEWIS CARROL, Através do espelho
Antes de me alongar, aviso ao leitor que as citações acima não são minhas. Sei que aí estão os nomes dos autores, mas não é a isso que me refiro. Os trechos de Lewis Carrol e Nietzsche são os mesmos que abrem um artigo escrito pelo economista brasileiro Marcos Lisboa há quase vinte anos.
Em “A Miséria da Crítica Heterodoxa” – cujo título, numa provocação elegante, alude à “Miséria da Filosofia” de Karl Marx -, Lisboa busca entender as críticas de economistas heterodoxos à teoria neoclássica. Um dos heterodoxos citados é Fernando Cardim de Carvalho, da UFRJ. Em um artigo anterior, Carvalho apontava o “axioma da ergodicidade” como um dos pontos centrais do modelo mainstream de equilíbrio geral.
Havia apenas um problema: esse axioma jamais teve qualquer influência no trabalho da maioria dos economistas e Lisboa, um especialista no tema, desconhecia qualquer economista que utilizasse a tal ergodicidade em seus trabalhos.
Este texto não é sobre equilíbrio geral, heterodoxia ou qualquer um desses termos áridos do debate econômico. Me é irresistível, porém, lembrar a réplica escrita por Cardim de Carvalho. Confrontado com um erro que poderia colocar em xeque sua credibilidade acadêmica – quem confia num autor que ataca inimigos imaginários? -, Carvalho limitou-se a citar um único pesquisador que utilizava o tal axioma, com um texto . O foco de sua réplica era outro: ele e Lisboa partiriam de “paradigmas diferentes”, e por isso aquele debate seria infrutífero, dada a diferença entre a natureza intelectual dos dois.
Assim, apelando às diferenças de paradigmas, Cardim de Carvalho se safava de explicar com clareza o fato de ter inventado um axioma que jamais existiu. Seu erro era de origem factual. Bastaria acompanhar qualquer debate acadêmico entre neoclássicos para notar a incorreção. Levar a análise para um campo supostamente mais elevado, ressaltando apenas uma suposta diferença de valores entre crítico e criticado, não é nada além de um método conveniente para esconder uma mentira, no sentido mais básico da palavra.
Infelizmente, trata-se de um comportamento comum na intelectualidade de esquerda, especialmente em terras brasileiras. O tom rancoroso com frequência deixa no ar uma espécie de nojo incontido, que se recusa a discutir com qualquer coisa que se pareça com o outro lado. Sob a desculpa de problematizar a realidade e enxergá-la em um nível mais profundo, com frequência alguns fatos básicos são torcidos, distorcidos ou esquecidos.
Na imprensa brasileira, nenhum colunista é tão fiel ao hábito de fugir à realidade com palavras pomposas quanto Vladimir Safatle. Um exemplo sintomático está na frequente associação entre o liberalismo e o regime escravocrata que vigorou no Brasil durante séculos. Na coluna “Não quero falar sobre gênero”, por exemplo, Vladimir acusa o “caráter farsesco do liberalismo brasileiro” para, em seguida, afirmar que “os valores esclarecidos liberais” ajudaram a dar sustentação à escravidão brasileira.
Fato número um: qualquer discussão honesta sobre “os valores esclarecidos liberais” (a expressão é dele) necessariamente passa pela igualdade perante a lei e a existência de direitos individuais inalienáveis, dentre os quais está o direito ao próprio corpo e aos frutos do trabalho, o que obviamente contraria um regime escravocrata.
Vladimir poderia argumentar que, à época, muitos dos argumentos pró-escravidão incluíam um suposto direito de propriedade sobre os escravos. Ainda assim, um pensador honesto reconheceria que se trata de uma óbvia perversão dos valores liberais, tal como o próprio Vladimir prontamente afirma que não há paralelo entre os valores socialistas e as ditaduras implantadas em nome deles.
Ainda que Vladimir alegue estar se referindo a uma realidade histórica, e não a abstrações sobre valores liberais, a alegação rapidamente o colocaria em maus lençóis. Eis o fato número dois, frequentemente ignorado nas aulas de história das escolas brasileiras: o movimento abolicionista brasileiro era eminentemente formado por liberais.
Joaquim Nabuco, o maior líder abolicionista brasileiro, era declaradamente liberal e deixou isso claro em diversas passagens de livros como “Abolicionismo” e “Minha Formação”, com pouquíssimo espaço para equívocos: “sou um liberal inglês — com afinidades radicais, mas com aderências whigs — no Parlamento brasileiro; esse modo de definir-me será exato até o fim, porque o liberalismo inglês perdurará sempre, será a vassalagem irresgatável do meu temperamento ou sensibilidade política”. Não se trata de uma casualidade: Luiz Gama, Ruy Barbosa, Frei Caneca, José Bonifácio (o moço) e a maioria dos líderes abolicionistas eram, também, liberais.
A ignorância histórica de Vladimir Safatle é imperdoável para alguém em sua posição. Mas será que se trata apenas de ignorância? Talvez não seja o caso. Vladimir parece partir de uma definição prévia que identifica toda e qualquer ideia liberal com o estado de coisas e as forças dominantes. A feiura de uma realidade repleta de injustiças é subitamente identificada com ideias que ele não suporta. Já o seu campo político, da esquerda radical, representaria a mudança social para um mundo melhor. São estas as premissas de um discurso que, sem a maquiagem do ativista acadêmico, em muito lembra figuras como Silas Malafaia.
Vladimir Safatle tem formação em filosofia, com um campo de pesquisa que tangencia a psicanálise e a crítica cultural. Em suas intervenções no debate público através de uma coluna no maior jornal brasileiro, Vladimir pouco trata dos temas em que é especialista, o que não o impede de emitir opiniões sobre economia política. Sua linguagem agressiva e moralista é claramente incompatível com um leigo, especialmente com um leigo que se pretende filósofo e deveria, acima de quaisquer convicções políticas, “amar o conhecimento”.
Um exemplo está na sua última coluna, em que se pergunta “O que realmente entrou em crise?”. Nele, Vladimir tenta argumentar que a “narrativa hegemônica” sobre a crise econômica brasileira está repleta de “ilusões de ótica”. Os reprodutores dessa “narrativa hegemônica”seriam os economistas que apontam o “capitalismo de Estado”, e mais especificamente as políticas “intervencionistas e estatistas” de Dilma, como causadores da crise, apontando a “boa e sã cartilha do liberalismo” como solução.
A missão à qual Vladimir se incumbe é realmente difícil, dado que todos os dados apontam justamente o contrário. Desde a Constituição de 1988, os gastos do governo federal vêm crescendo mais rápido do que a economia brasileira, e esta parece ser uma tendência que não vai parar no longo prazo. Nos últimos anos, Dilma claramente alargou o buraco; desde que a presidente assumiu o poder em 2011, a diferença entre o que entra e sai do governo ficou maior ano após ano, 2015 incluso.
Gastar mais do que arrecada em impostos é um feito a ser reconhecido, dado que o Brasil tem uma carga de impostos bizarramente alta. Mais uma de Safatle: Matematicamente, só existem três soluções prováveis para esse problema: mais impostos, mais inflação ou menos gastos. Nos últimos 30 anos, foi possível contornar pela via do aumento de impostos. Os aumentos, diga-se de passagem, aconteceram quase todos sob uma forma atabalhoada, o que ajudou a