Políticas públicas precisam ser medidas por sua eficiência. Em 2003, tivemos dois programas com o mesmo objetivo, um fracassou e outro foi um sucesso. Analisemos, então, as diferenças entre as duas.
I. As promessas da campanha de Lula e o fracasso do Fome Zero
Em 2003, algumas estimativas apontavam que quase 28% da população vivia abaixo da linha de pobreza no Brasil. A segurança alimentar era um dos grandes temas da campanha do recém-eleito presidente, que, logo no discurso de posse, anunciou: “defini entre as prioridades de meu governo um programa de segurança alimentar que leva o nome de Fome Zero”. O plano era substituir o Programa Comunidade Solidária, instaurado no governo FHC, por um agregado de outros programas de combate à fome nas esferas federal, estadual e municipal, todos sob o selo “Fome Zero”.
O coordenador do programa era o ministro da Segurança Alimentar e professor do Instituto de Economia da Unicamp, José Graziano da Silva. Ele defendeu uma abordagem envolvendo a criação de uma lista com validade federal de alimentos que os beneficiários poderiam comprar com a garantia de que o governo ressarciria a compra. Para ele, a operação deveria ser garantida por notas fiscais. Em algumas instâncias, o governo e supermercados firmaram parcerias (o grupo Pão de Açúcar chegou a entrar no programa) para distribuir alimentos diretamente, sem dinheiro envolvido por parte dos beneficiados.
O programa era uma prioridade: motivou a criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), o começo do funcionamento do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e o estabelecimento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). As recém criadas e acionadas instituições estabeleceram os centros de distribuição de alimentos e centros de voluntariado equivalentes aos Comitês do Betinho (os chamados COPO). Siglas como PRATO, TALHER e SAL representavam os mais variados agentes envolvidos na burocracia dos chamados Mutirões Contra a Fome.
Disperso em várias frentes, o projeto almejava atacar tanto as causas estruturais da fome, como também melhorar o estado de educação alimentar e a qualidade das merendas escolares. Sob a bandeira do Fome Zero funcionavam mais de 30 subprogramas, a maioria sem comunicação, devido à confusão interministerial. No agregado, planejava-se desde a construção de cisternas familiares no semi-árido a restaurantes comunitários, bancos de sementes, creches comunitárias, cestas básicas emergenciais, palestras sobre educação alimentar em comunidades pobres e abertura de linhas de crédito para financiar merendas. Era um programa ousado e burocraticamente inchado.
Na prática, essa política pública entregou resultados duvidosos, ou mesmo, nulos. A falta de objetivos claros, os inúmeros subprogramas difusos entre várias coordenadorias com pouca ou nenhuma comunicação e as mecânicas que causavam distorções de mercado (distribuir alimentos é menos eficiente do que distribuir dinheiro e causa distorções nos preços) foram os principais responsáveis. Isso levou o representante do Banco Mundial da época a criticar muitos aspectos do programa, e, em especial, o método defendido por Graziano da Silva, de cobrar das famílias notas fiscais discriminando o gasto em alimentação como forma de garantia. Essa medida incentivava um mercado negro em torno dos documentos e aumentava os custos burocráticos do programa. Algo precisava mudar, mas o quê? E quem dentro do governo desbancaria a primeira iniciativa do presidente Lula?
II. O bem sucedido substituto
A percepção do mercado sobre Lula em 2003 era péssima, com uma enorme crise de confiança, como já abordamos aqui. Isso mudou a partir da montagem de uma equipe econômica ortodoxa, que, em meio à crise e ao óbvio fracasso do Fome Zero, publicou em abril de 2003 o que viria a ser um código de boas práticas para o governo. Entre as diretrizes desse documento estava a “focalização”.
Essa defesa de gasto social focalizado nos mais pobres foi duramente criticada por expoentes do PT, como Maria da Conceição da Tavares. Não obstante, ainda em 2003, o Fome Zero foi substituído por um modelo mais simples de imposto de renda negativo na forma de transferências diretas, nos moldes do que a política liberal inglesa Juliet Rhys-Williams propôs nos anos 40, ideia mais tarde aprofundada pelo economista americano Milton Friedman.
O objetivo era unificar vários programas dispersos, focalizar o gasto social nos mais pobres e evitar políticas de distorção nos preços. Isso era importante para não alterar os incentivos de produção nem de consumo, pois isso geraria desperdício e/ou escassez de recursos. Essa nova abordagem teve a participação de economistas liberais como Ricardo Paes de Barros (o principal formulador técnico do novo programa), Marcos Lisboa e Joaquim Levy. Até então, houveram experiências de modelos parecidos em Brasília, Campinas e programas de bolsa do Governo FHC nos anos 90, mas nada em escala nacional e com esse grau de importância. O programa novo viria a cumprir uma das maiores promessas de campanha de Lula.
Os méritos do Bolsa Família aparecem principalmente quando o programa é comparado ao que ele substituiu. Ele foi responsável por colocar o poder de escolha nos beneficiários. Isto é: os usuários do programa passaram a escolher como gastariam o benefício, em vez de burocratas em Brasília tomarem essas decisões por eles. Além de ter representado uma mudança qualitativa na filosofia do combate à pobreza no Brasil, foi quase um acato à sugestão implícita na fala de David de Ferranti, que, em meio às críticas sobre o Fome Zero, comentou que “podemos confiar nas famílias pobres”.
Outro mérito do programa foi condicionar o recebimento do benefício à frequência escolar na educação básica e ao acompanhamento pré-natal para gestantes. Isso porque cuidados pré-natais e acesso à educação nos primeiros anos são um excelente investimento de longo prazo em capital humano. A título de exemplo, em média, uma pessoa com ensino médio completo tem um salário 64% maior que uma sem instrução, segundo dados do IBGE. Sem contar que a frequência escolar maior também diminui a criminalidade.
Aliás, embora tenha contribuído timidamente com a frequência escolar do ensino fundamental, que já era praticamente universalizado no Brasil à época, houve reflexos positivos na frequência do ensino médio. Levando em conta somente o aumento do gasto em educação e no nível de renda (o que acarreta em menos adolescentes trabalhando e, portanto, mais estudando), a frequência escolar já seria positivamente afetada. Porém, o programa, com quase 15 milhões de família beneficiadas e, mais especificamente, a condição de frequência escolar mínima também tiveram participação. Entre 2004 e 2012, a taxa de frequência escolar saltou de 47% para 58%.
Dessa forma, da maneira como o programa foi desenhado, as chances de que os filhos do atuais beneficiários do programa precisem de políticas públicas similares quando adultos são substancialmente reduzidas. Inclusive, o economista Otaviano Canuto, do Banco Mundial, argumenta que os maiores efeitos do Bolsa Família apenas serão sentidos daqui a 20 ou 25 anos, quando os filhos dos atuais beneficiários, muito mais escolarizados e, portanto, mais produtivos, entrarão na força de trabalho.
Além de alterar positivamente a trajetória de renda e educação dos beneficiados, a garantia alimentar e a diminuição na influência de coronéis locais também são efeitos diretos e benéficos do programa. Ademais, além dos retornos sócio-econômicos positivos a curto e longo prazo, o programa de fato tirou pessoas da pobreza. Nos primeiros 10 anos de programa, mais de 1,7 milhão de beneficiários abriram mão do repasse voluntariamente. Desses, cerca de 290 mil agora se dedicam ao empreendedorismo. Pela avaliação via Cadastro Único, mais de 6 milhões deixaram de receber o benefício por sua renda ter aumentado. O custo disso foi pouco menor que 0,5% do PIB. Os efeitos positivos da magnitude que se observa com o Bolsa Família mostram a eficiência do programa.
Vale ressaltar que, entre os problemas do Bolsa Família, há a questão de dependência eleitoral, muito alardeada nas eleições de 2014. Além disso, apesar dos incríveis números mencionados acima, apenas 12% dos beneficiários do programa o deixaram por ascender socialmente em seus 10 primeiros anos. Mesmo assim, o Bolsa Família continua sendo um suspiro de razoabilidade e de boas políticas de combate à pobreza na terra que por muito tempo insistiu em políticas públicas bizarras, como o Programa Pão e Leite, o crédito subsidiado do BNDES e o próprio Fome Zero.
Observa-se que, entre 1997 e 2003, houve uma melhora líquida do quadro de desigualdade e miséria no Brasil, mas pequena. Os avanços concretos do impacto dos programas específicos vieram com a focalização e as transferências diretas proporcionadas pelo Bolsa Família. E o Fome Zero, mesmo tendo sido um fracasso, tem um legado importante. Trata-se de uma demonstração empírica da superioridade das políticas focalizadas e que não se baseiam na ideia paternalista de que existem agentes mais qualificados a exercer o gasto do que os próprios beneficiários.
Dele se tira uma outra dura lição que Leonid Kantorovich, o único soviético a receber o prêmio Nobel de Economia, aprendeu e que o governo venezuelano está aprendendo agora: controle e distorção de preços são um dos caminhos mais certos para a pobreza e escassez. Acima de tudo, por ser uma política de inclusão nos mercados, e não de controle deles, ao contrário do Fome Zero, o Bolsa Família é uma política pública bem-sucedida.