Dentre os vários processos judiciais que devem continuar a mexer com os ânimos em Brasília em 2017, o que está em curso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é provavelmente o que mais tem chances (até pelo seu estágio atual) de provocar significativas mudanças no cenário político nacional, dando continuidade as turbulências que foram vivenciadas em 2015 e 2016.
Nesse sentido, a possibilidade de que o presidente Michel Temer não termine o mandato é real, mas são poucos os que compreendem os motivos claros e como exatamente o processo de cassação de seu mandato por meio do TSE ocorreria. Sendo assim, é importante conhecer o histórico do tribunal eleitoral em casos similares, as provas existentes até o momento e as que podem aparecer até o fim da fase instrutória (onde as provas são produzidas) e quais os possíveis resultados desse já histórico julgamento.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi criado pelo nosso Código Eleitoral. Como assinala o seu site oficial, o TSE é o “órgão máximo da Justiça Eleitoral”, cabendo a este exercer “papel fundamental na construção e no exercício da democracia brasileira”, ao processar e julgar demandas que tratem do “registro e a cassação de registro de partidos políticos, dos seus diretórios nacionais e de candidatos à Presidência e vice-presidência da República”, além dos “crimes eleitorais e os comuns que lhes forem conexos”, das “reclamações relativas a obrigações impostas por lei aos partidos políticos, quanto à sua contabilidade e à apuração da origem dos seus recursos” e das “impugnações á apuração do resultado geral” das eleições, dentre outras medidas elencadas nos artigos 22 e 23 da lei eleitoral.
Nesse sentido, as revelações ocorridas no âmbito da Operação Lava Jato nos últimos anos quanto ao uso de recursos públicos, notadamente oriundos direta ou indiretamente da Petrobras, para financiamento de campanhas eleitorais em 2014, em especial a da presidência da República, levaram a coligação “Muda Brasil”, encabeçada pelo PSDB, a ingressar no TSE com diversas ações contra o resultado final das eleições daquele ano, que terminaram por eleger a chapa presidencial formada pela coligação “Com a Força do Povo”, composta pela então presidente Dilma e seu vice-presidente Michel Temer.
Inicialmente, a primeira das quatro ações (duas Ações de Investigação Judicial Eleitoral, uma Ação de Impugnação de Mandato Eletivo e uma Representação) movidas contra a chapa presidencial eleita foi rejeitada monocraticamente pela ministra relatora Maria Thereza de Assis, mas acabou tendo seu prosseguimento iniciado pela maioria do Plenário do TSE, que entendeu que havia elementos e fundamentos suficientes para seu acolhimento e regular tramitação na corte.
Com o resultado final do plenário da corte, o ministro Dias Toffoli, então presidente do Superior Tribunal Eleitoral, por recomendação do ministro Luiz Fux, decidiu reunir todas as demais ações pendentes de julgamento em um único processo, tendo em vista “a existência de identidade entre os fatos discutidos nos autos”. É o resultado da junção dessas ações no âmbito da AIJE nº 194358, que está atualmente em curso no Tribunal (o processo na íntegra pode ser visualizado aqui) e terá seu julgamento iniciado provavelmente no 1º semestre de 2017.
As Acusações e as Provas do Processo no TSE contra a Chapa Dilma/Temer
Em resumo, as acusações contidas no processo que tramita no TSE contra a chapa Dilma/Temer apontam que houve “abuso do poder econômico, político e fraude” nas eleições de 2014, razão pela qual o mandato outorgado a presidente e ao vice-presidente da República seria “ilegítimo”, especialmente ao se considerar que a diferença eleitoral entre o primeiro e o segundo lugar no pleito foi de apenas 2,28% dos votos válidos.
No tocante ao abuso do poder político, os ilícitos teriam sido:
Já os fatos caracterizadores do abuso de poder econômico seriam:
Depois da unificação das quatro ações que tramitavam na corte, como já informado anteriormente, a ministra Maria Thereza de Assis Moura ordenou em abril de 2016 o começo da fase de produção de provas. Destaca-se ainda que foi neste despacho que também ficou decidido que a questão relativa a possível separação do julgamento das contas da presidente e do vice-presidente ficaria para após esta fase probatória. Inicialmente, foram realizadas perícias contábeis nos comprovantes de despesas entregues pela chapa presidencial ao TSE e depois o colhimento de depoimentos das testemunhas, em especial de delatores em processos criminais vinculados a Operação Lava Jato. Salienta-se que, nesse meio tempo, o ministro Herman Benjamin tornou-se relator do processo na Corte em agosto de 2016, quando assumiu o cargo de corregedor-geral da Justiça Eleitoral.
No tocante as perícias, o TSE montou uma força-tarefa com representantes da Polícia Federal, da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras para analisar e apurar os documentos da coligação “Com a Força do Povo” e dados financeiros das empresas investigadas. O resultado das perícias, que se focaram nas empresas contratadas pela chapa Dilma/Temer, apontou, conforme síntese do Ministério Público Eleitoral (MPE):
“fortes traços de fraude e desvio de recursos que foram repassados às empresas contratadas pelo Comitê Eleitoral“.
Tanto os laudos periciais contábeis (o primeiro e o complementar, elaborado após a quebra dos sigilos bancários das gráficas investigadas) realizados por peritos judiciais, como a manifestação do MPE, podem ser lidos na íntegra, respectivamente, aqui, aqui e aqui. As manifestações quanto ao resultado dos laudos periciais da Coligação “Muda Brasil”, da ex-presidente Dilma Rousseff e do presidente Michel Temer também estão disponíveis, respectivamente, aqui, aqui e aqui.
Quanto aos depoimentos colhidos das testemunhas, chamou a atenção o fato do ministro relator declarar, conforme noticiou O Globo, que está acompanhando pessoalmente cada um deles, função que costuma ser designada a juízes auxiliares. Outro ponto, que também foi bastante noticiado há poucos meses, foi a declaração do ministro, durante o VI Encontro Nacional de Juízes Estaduais, quanto ao susto que teve com as cifras bilionárias mencionadas pelos delatores, enquanto estes explicavam como funcionava o pagamento de propina em forma de doação eleitoral, além da normalidade como a corrupção era encarada pelos envolvidos no esquema.
Cabe mencionar que, dentre os depoimentos colhidos até o momento, o mais contundente é o do empreiteiro Otávio Marques de Azevedo, ex-presidente da Andrade Gutierrez, que chegou a afirmar, em sua colaboração premiada, que parte dos R$ 30 milhões doados pela sua empresa oficialmente a campanha presidencial da chapa Dilma/Temer seriam, na verdade, pagamento de propina em razão dos contratos assinados pela empresa com o governo federal.
O ponto mais controvertido até agora no TSE em torno do julgamento do processo, que como já dito provavelmente se iniciará no primeiro semestre de 2017, reside na análise do pedido realizado pelos advogados do presidente Michel Temer e do PMDB para que as contas do então vice-presidente sejam julgadas separadamente as da ex-presidente Dilma.
O atual presidente da Corte Eleitoral, ministro Gilmar Mendes, chegou a declarar em abril de 2016 que a posição do tribunal tem sido de não separar as contas do candidato e de seu vice, mas já antevia que, caso o impeachment da presidente Dilma prosperasse (como efetivamente ocorreu), a questão seria devidamente analisada pelo Plenário diante desse “quadro novo”. Como resumiu matéria do Valor, a defesa do atual presidente alega que “nenhum dos fatos articulados teriam sido praticados diretamente por Michel Temer”. Por isso mesmo, Temer não deveria ser condenado “por arrastamento” devido a irregularidades nas contas de campanha da ex-presidente Dilma.
Juridicamente, o pedido esbarraria na previsão contida no artigo 91 do Código Eleitoral, que afirma que “o registro de candidatos a presidente e vice-presidente, governador e vice-governador, ou prefeito e vice-prefeito, far-se-á sempre em chapa única e indivisível, ainda que resulte a indicação de aliança de partidos”.
A jurisprudência da Corte eleitoral efetivamente tem assinalado na direção de não realizar a separação nesses casos, posto que o resultado do julgamento atinge de forma direta a esfera jurídica tanto do candidato como do seu vice, estando estes interligados em sua chapa, diante da sua própria indivisibilidade prevista em lei.
O presidente do TSE chegou a mencionar também em declarações recentes que a última vez que a Corte se posicionou sobre o tema teria sido no julgamento do Recurso Ordinário nº 2233/RR, este qual negou expressamente a possibilidade jurídica do pedido de separação das condutas do candidato e do seu vice. A ementa deste processo foi incisiva ao afirmar que, “de acordo com o princípio da indivisibilidade da chapa única majoritária, segundo o qual, por ser o registro do governador e vice-governador realizado em chapa única e indivisível (art. 91 do Código Eleitoral), a apuração de eventual censura em relação a um dos candidatos contamina a ambos. A morte do titular da chapa impõe a interpretação de referido princípio com temperamentos”. Justamente por isso, especialistas na área eleitoral consideram que, se a Corte se guiar pela sua jurisprudência, o pedido do presidente Temer não será acolhido.
Porém, ressalta-se, a composição da corte eleitoral neste julgamento, que ocorreu em 2009, é totalmente diferente da atual, além de que naquele caso se estava julgando uma chapa formada por um governador e seu vice, enquanto agora, pela primeira vez na história do TSE, uma chapa presidencial será de fato julgada com o risco claro de ter o mandato cassado (algo que jamais ocorreu).
Cabe também assinalar uma ressalva importante: o fato de que as contas possam ser julgadas de forma unificada, em consonância com a jurisprudência do TSE, não impedem que eventuais punições para a ex-presidente Dilma e o presidente Temer sejam distintas. Nesse sentido, existe a possibilidade concreta que o Plenário da Corte eleitoral aplique ao presidente Temer uma pena distinta da ex-presidente Dilma, considerando a conduta de cada um deles e as provas existentes nos autos. Ressalta-se que o ministro Luiz Fux, um dos membros do TSE, numa entrevista ao jornal O Globo em outubro, declarou que, levando em conta as normas constitucionais, não se pode ignorar o “preceito constitucional de que a pena não passa da pessoa do infrator“.
Destaca-se que a eventual cassação da chapa obrigaria a realização de novas eleições. A dúvida atualmente existente é se estas seriam diretas ou indiretas. Tal fato ocorre porque a vacância ocorreria nos últimos dois anos do período presidencial, sendo que, conforme prevê o § 1º do artigo 81 da Constituição Federal, “o novo presidente e o vice devem ser escolhidos pelo Congresso Nacional”; por outro lado, o Código Eleitoral, após a nova reforma ocorrida em 2015 que alterou alguns dos seus artigos, estipula no § 4º do artigo 224 que, nos casos em que a decisão da Justiça Eleitoral importar na “perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário” (§ 3º do artigo 224), a nova eleição será indireta apenas “se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato”, devendo ser direta nos demais casos. Atualmente, tal dúvida aguarda ser solucionada pelo STF quando este finalmente julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.525, movida pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que questiona explicitamente a compatibilidade desse novo artigo do código eleitoral com a Constituição Federal. O processo aguarda neste momento apenas o pedido para entrar na pauta do STF pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação.
Já pela via legislativa, a questão sobre eventuais novas eleições virou tema de debate no Congresso Nacional por conta da apresentação recente de uma PEC (227/2016) proposta pelo deputado Miro Teixeira (REDE/RJ), um dos mais antigos membros da Câmara dos Deputados. Ela estabelece “eleições diretas no caso de vacância da Presidência da República, exceto nos seis últimos meses do mandato”, alterando desta forma o texto do § 1º do artigo 81 da Constituição. Atualmente, a proposta está aguardando votação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), onde recebeu parecer favorável do relator, deputado Esperidião Amin (PP-SC). Foi publicado, inclusive, artigo em defesa de sua PEC e, consequentemente, das eleições diretas em caso da eventual perda do mandato pelo presidente Temer.
Apesar de ser o órgão máximo da justiça eleitoral, como bem se autodescreve o TSE em seu site, não é de se estranhar totalmente as matérias que vem circulando na imprensa de forma geral já há um tempo apontando para o sentido de que a Corte possa, na hora do julgamento, evitar ao máximo cassar o mandato do presidente Temer. Isso ocorreria porque o tribunal levaria em consideração questões não necessariamente jurídicas, como o clima político e econômico do país no momento.
Apenas para efeito de comparação, desde que a ministra Cármen Lúcia chegou a presidência do Supremo Tribunal Federal, a afinidade entre as decisões do Plenário desta corte com a agenda do governo federal tem sido impressionante, o que apenas reforça o fato de que os tribunais superiores são mais “abertos” a considerar outros elementos antes de se posicionar (ou rever posições anteriores) sobre certos temas. Não há razões para acreditar que o vem ocorrendo no STF não possa ocorrer também no TSE.
Outro fator que também deve ser levado em conta é que, em abril e maio de 2017, Temer terá que indicar dois substitutos para o TSE, tendo em vista que o mandato de dois ministros da corte terminarão nesses períodos. Essa possibilidade pode dar fôlego para que o presidente consiga reverter uma maioria no tribunal pela sua cassação, empurrando também a decisão final para o segundo semestre do ano que vem.
Por outro lado, a “delação do fim do mundo”, como vem sendo alcunhada o conjunto de colaborações premiadas firmadas pelo MPF com vários membros da Odebrecht, incluindo o ex-presidente da organização, Marcelo Odebrecht, pode complicar ainda mais a vida política de Temer, a depender do quanto o seu suposto explosivo conteúdo o atinja. Se a economia continuar a não apresentar melhoras este ano, a junção desses dois cenários conturbados pode criar o clima necessário para que a maioria do TSE se incline pela perda do seu mandato na hora de fixar eventual pena pelos crimes eleitorais cometidos.
Em suma, 2017 promete ser tão agitado quanto 2016 foi para o Brasil. A diferença substancial nesse caso é que, no ano passado os olhos da população estavam em boa parte sobre o Congresso Nacional e seus membros para saber se o mandatário do país continuaria no cargo. Este ano todos estarão de olho no Tribunal Superior Eleitoral e nos seus ministros. Parafraseando o quase bordão do ex-deputado Eduardo Cunha, muitos esperarão ansiosos pelas várias respostas à pergunta: “Como vota, Ministro?”