Nos últimos dias foi divulgada em diversos portais a notícia de um empreendedor que acabara de comprar a patente de um medicamento e decidira da noite para o dia aumentar o seu preço em mais de 5.000%. A história gerou comoção, discursos inflamados, tentativas de ataque pessoal ao dono da companhia e tudo mais que se espera quando um agente econômico não age de acordo com a “cartilha do aceitável”. Assim, pessoas usaram o fato para criticar o livre mercado, pedir por mais controle estatal sobre o sistema e tentar ganhos políticos com a situação — caso da pré-candidata democrata à presidência Americana, Hillary Clinton. A situação levanta algumas perguntas como: até onde temos um livre mercado no serviço de saúde? Até que ponto as reportagens estão falando coisas corretas? Até que ponto os agentes que deveriam “proteger”os consumidores não são os responsáveis por prejudicar as pessoas?
Diferentemente do que os textos e críticas vão falar, não existe livre mercado no setor de saúde nos Estados Unidos da América e em lugar algum do mundo. O que há são excessos de regulamentações estatais que servem para proteger agentes em geral politicamente bem conectados que já estejam no mercado e que tenham acesso a muito capital. Não há o tão famigerado capitalismo selvagem e desumano na indústria farmacêutica, visto que a existência desse capitalismo implicaria na possibilidade de concorrência, o que tiraria do mercado uma empresa que cobre muito mais do que o valor de seus produto.
A liberdade de concorrência não existe devido às altas barreiras de entrada impostas pelo governo com o pressuposto de “proteger” a população, como regulamentações relacionadas a salários, jornadas de trabalho, propriedade intelectual, testes clínicos, eficácia de produtos, requerimentos mínimos de marketing, entre outros tantos fatores. Essas interferências estatais que tornam possível a concentração de mercado na mão de poucos provedores, com pouca ou nenhuma competição em diversas áreas, são as grandes responsáveis por preços absurdos que vemos em muitos bens e serviços.
O caso específico do medicamento Daraprim apresenta alguns fatores que não estão sendo corretamente abordados pela maior parte dos veículos de comunicação. O primeiro deles é que o empreendedor Martin Shkreli não comprou patente alguma do medicamento, visto que ela venceu há algum tempo — o medicamento está no mercado há mais de 60 anos e patentes duram no máximo 50. Ele comprou o direito de comercializar a droga pirimetamina sob o nome Daraprim, algo que por si só não impede que outras empresas continuem produzindo o genérico — caso já o façam — e cobrem os preços que elas acharem justo.
Todavia, devido a uma regulamentação da FDA americana, drogas que entraram no mercado antes dos testes clínicos mais rígidos passarem a ser exigidos em meados da década de 60 só podem ser comercializadas pelas companhias que detêm o seu direito comercial original — por mais que ele tenha sido adquirido de outra empresa –, mesmo que não exista mais a patente. Assim, caso uma outra companhia queira produzir o medicamento pirimetamina, apesar de não ter que desembolsar nada com compra de patentes ou licenciamento da invenção, ela deverá passar por praticamente todas as etapas de testes clínicos, que são muitos caras. Ela teria de provar que a composição que eles estão usando é exatamente a mesma, com eficácia igual ou superior àquela fornecida pela Turing Pharmaceuticals — empresa de Shkerli –, que tem evitado que competidores tenham acesso a amostras do medicamento com um mecanismo chamado distribuição controlada.
Como a pirimetamina tem um público muito pequeno, visto que a toxoplasmose — principal doença tratada pelo Daraprim nos EUA — afeta menos de 10 mil pessoas por ano e existem vários outros tratamentos já disponíveis no mercado para a mesma condição, qualquer empresa que decidisse investir em testes clínicos para fabricar a pirimetamina estaria cometendo um suicídio ao usar seus recursos escassos para tentar entrar num mercado já pouco lucrativo.
O segundo fator que está sendo deixado de lado nas críticas mais genéricas, principalmente naquelas que atacam apenas os preços dos fármacos por si só e não a razão por trás desses valores, é que há uma diferença enorme entre novos tratamentos custarem caro — como drogas que acabaram de ser descobertas para câncer ou doenças raras — e drogas antigas com patente expirada terem seu preço aumentado da noite para o dia. As duas situações não são análogas.
Medicamentes inovadores normalmente custam mais caro por dois motivos simples: a existência da patente que incentiva pesquisadores a investirem anos de suas vidas em busca novos tratamentos para doenças que afligem várias pessoas, e a escassez de alternativas disponíveis para tratamento, que faz com que pacientes valorizem mais o composto que foi descoberto.
No caso de drogas antigas, em que a validade das patentes expirou, o que acontece é que existem mecanismos legais conseguidos por lobistas que restringem artificialmente a entrada de concorrentes no mercado. Por exemplo, a regulamentação de que a empresa que já tem o direito comercial de uma droga tem o monopólio de seu comércio, caso outras companhias não passem por todas as fases de testes clínicos para lançar a versão genérica ou similar do mesmo produto.
Entretanto, o governo não deve se intrometer para baixar os preços ou controlar suas alterações diferentemente do que acontece no Brasil em nenhuma dessas situações. O funcionamento saudável do mercado depende do feedback dado pelo sistema de preços e nenhum burocrata por mais bem intencionado que seja consegue definir qual seria o valor certo a ser cobrado. Se for para acontecer uma intervenção governamental, que ela seja sempre a retirada de barreiras de entrada a novas companhias impostas pelos burocratas estatais.
O terceiro fator pouco abordado é que mesmo com as restrições legais impostas pela FDA, que garantem um monopólio temporário para Shkreli, a pressão popular conseguiu forçá-lo a rever a sua política de aumento de preços. Apesar de não ter anunciado os novos valores para os tabletes individuais do medicamento ou para as caixas do produto, a empresa decidiu voltar atrás no aumento de mais de 5.000%. É importante ressaltar também que a própria Turing tinha um programa de distribuição do medicamento para pacientes de baixa renda, que comprovassem não poder pagar pela droga — normalmente os pacientes atendidos pelos programas estatais americanos de saúde, como o Medicare e o Medicaid –, iniciativa compartilhada por praticamente todas as farmacêuticas americanas.
Além disso, o aumento de preços não seria sentido pela maior parte das pessoas que usam o medicamento, pois elas não pagam diretamente por ele, tendo em vista que os custos recaem sobre os planos de saúde. Os custos acabariam diluídos em aumentos dos prêmios cobrados pelas apólices de seguro de saúde que companhias e indivíduos teriam de pagar, e o usuário real do medicamento veria apenas uma pequena parcela do aumento. Essa diluição dos custos no sistema como um todo é prejudicial ao bom funcionamento do sistema de saúde americano e uma das responsáveis pelos custos tão altos de bens e serviços médicos nos EUA.
O quarto ponto é que a mesma FDA que regulamenta o mercado interno na América, impedindo novas empresas de fabricarem medicamentos genéricos de drogas cuja patente já expirou, impede que pessoas importem esse medicamento do exterior, mesmo do Canadá ou da Europa. Se um americano pudesse comprar Daraprim pela internet, sem o risco de ser preso por tráfico de drogas, ele encontraria o remédio por preços abaixo de um dólar por tablete caso comprados online (ou próximos a dois dólares em outros sites), mesmo após o aumento determinado Shkreli. Essa regulamentação, assim como qualquer outra determinação governamental que impede o comércio internacional, foi feita justamente para garantir mais lucros para as empresas americanas politicamente bem relacionadas às custas da população como um todo. Se duvidar, ela foi até escrita pelos próprios industriais em conjunto com burocratas.
Por fim, como Derek Lowe, colunista da Revista Science, ressaltou: “nenhum mercado em que um fornecedor pode aumentar o preço da noite para o dia em [5.000%] por nenhuma outra razão além de ‘porque eu posso’ é livre, ou realmente um mercado, se por mercados nós entendemos a ‘competição de várias firmas por uma parcela dos consumidores‘” e “o modelo comercial da Turing é basicamente como um vírus, sequestrando o maquinário já existente no sistema para seu próprio uso, mas ninguém consegue ver isso a menos que tenha um conhecimento razoável sobre o mercado farmacêutico, e, se há algo que eu tenho certeza, a maior parte das pessoas não entende muito sobre esse ramo de negócios em geral”. Nesse sentido, o real problema não é o vírus — que sempre vai existir –, mas a existência de um sistema que permita que a infecção ocorra e que cause danos significativos.
Se a FDA não fizesse a política de ajudar os amiguinhos dos poderosos às custas da população através de garantias de monopólios e regulamentações cada vez mais draconianas, esse caso de Martin Shkreli seria apenas mais um de uma pessoa que tentou se aproveitar das pessoas e se deu mal. Mas como a FDA está presente para protegê-lo e garantir que ele consiga lucrar, ele vai conseguir deixar um trilha de feridos no meio do caminho.
Se queremos realmente proteger os consumidores, só há uma saída: mais concorrência! Com várias pessoas tentando agradar os diferentes setores de consumidores, teremos mais produtos com maior qualidade a menores preços, e uma maior competição para que ninguém possa abusar do sistema.
Portanto, respondendo as perguntas feitas no primeiro parágrafo: não temos um sistema de livre mercado no serviço de saúde, muito menos na indústria farmacêutica. As reportagens que foram feitas até agora, infelizmente, contam apenas algumas parcelas da história sem identificar o que realmente permite que um empreendedor aumente os preços de seus produtos sem se preocupar com as consequências. Nessa história, a FDA é a grande vilã ao permitir que o seu aparato regulatório seja capturado por indústrias e empreendedores politicamente bem conectados e que farão de tudo para impedir a entrada de concorrentes no mercado. Para resolver o problema, a solução é mais liberdade de concorrência e menos restrições do governo.