Ontem, o meu colega Roberto Xicó argumentou neste Mercado que o impeachment da presidente Dilma não seria uma pauta liberal. Argumento central: para ele, não devemos personalizar o combate à corrupção, reduzindo a solução do problema ao impeachment. Há ainda o pedido para que a articulação política dos liberais não se limite a pautas negativas, contra algo, e parta para a proposição positiva de novas soluções.

Xicó está certo quando diz que um impeachment não acabaria com a corrupção no país. Evoco aquele blogueiro sem medo da polêmica para reconhecer que não há panaceia possível no combate a corrupção, de forma que nenhuma medida, sozinha, faria nossos políticos tratarem a coisa pública como tal. Sinto-me a vontade até para evocar a presidente e lembrar que a corrupção dos nossos politicos é uma velha senhora, muito mais antiga do que o PT, e está entranhada na formação histórica e cultural do país. São várias as causas deste problema e, dentre elas, certamente está a impunidade. Se é verdade que a corrupção nos rodeia desde os tempos coloniais, também é verdade que os poderosos desta terra nunca foram responsabilizados por seus atos.

Os argumentos que substanciam o impeachment da presidente são muitos. O esquema descoberto na Petrobras, cuja extensão e valores são raros – quiçá inéditos – em sociedades democráticas, é apenas uma parte desta história, mas não deve ser ignorado. Ainda mais quando consideramos o aspecto mais grave do esquema: ao contrário de escândalos anteriores, cujas quantias envolvidas hoje soam como troco de pão, o Petrolão funcionava como uma organização criminosa com regras próprias e uma hierarquia definida. A falta de improvisação preocupa principalmente quando lembramos o esquema alimentou o caixa do PT, com recibos assinados pelo tesoureiro do partido. De acordo com os delatores mais graúdos, a presidente não é apenas uma figurante desta peça macabra e foi beneficiária direta do propinoduto, que teria alimentado sua campanha em 2010 quanto em 2014.

Dilma presidia o Conselho de Administração da Petrobras durante a vigência do esquema e aprovou, com sua assinatura, muitas das obras superfaturadas e negociadas à base de propina. Enquanto o dinheiro fluía da Petrobras para seu partido e sua campanha, a presidente usava argumentos técnicos que legitimaram obras fraudulentas. Dilma esteve presente em todas as cenas do crime. A qualquer observador, resta concluir que, ou a presidente sabia do esquema e nada fez, ou foi omissa e incompetente ao ignorar evidências gritantes, tão sutis quanto um velho gordo dançando cancan em um vestido de luzes neon. Ambas as hipóteses levam à responsabilização da presidente e, de acordo com o Datafolha, 63% dos manifestantes presentes no maior protesto a defesa de Dilma julgam a primeira delas como verdadeira. Se nem os eleitores dilmistas acreditam que ela possa sair impune, quem sou eu para dizer o contrário?

O crime mais evidente da presidente, porém, passou longe da Petrobras. Xicó sugere, em seu artigo, que o impeachment é menos importante do que a crítica à famigerada Nova Matriz Econômica. O que ele ignora é que a Nova Matriz Econômica de Dilma não foi ruim apenas pelas ideias e economistas ruins que a inspiraram, nem mesmo por ter gerado uma crise econômica de grandes proporções. Não é que isso deva ser ignorado: a presidente insistiu em “estimular a economia” e, em sua missão fracassada, descontrolou as contas do governo e jogou o país num buraco de recessão e inflação. Mas não há nada de ilegal em ter más ideias. A situação agrava-se muito, porém, quando falamos da tais “pedaladas fiscais”, através das quais Dilma violou a lei orçamentária para movimentar 40 bilhões de reais em dinheiro público na sua “política de estímulos”. Neste caso, nem os benevolentes tribunais brasileiros foram capazes de absolver a presidente e seus atos são previstos na legislação como passíveis de impeachment.

Há mais. É notório o fato de o governo ter artificialmente segurado alguns preços nos meses anteriores à eleição, numa política que quebrou a Petrobras e o sistema elétrico brasileiro, tendo como única justificativa racional para sua implantação o lucro político auferido por Dilma – com gasolina e energia disparando e inflação a 9%, quais seriam as chances de a presidente reeleger-se?

Peço que Xicó me responda objetivamente: Será que Dilma, enquanto Chefe de Estado e Governo, respeitou a lei orçamentária e “a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos”? Faz sentido chamar de República um país que submete o seu futuro aos interesses eleitorais de um grupo organizado? A ficha corrida que descrevi acima deve ser suficiente para responder a pergunta e, se ele concorda comigo quanto à justeza do impeachment, creio que seja irrelevante julgar se esta é uma causa liberal ou não.

Mas vou além: no Brasil de 2015, não há nada mais liberal do que pedir o impeachment de Dilma.

A tradição do liberalismo clássico inicia-se justamente com os movimentos contrários ao absolutismo, que visavam igualar a todos perante a lei e contestar o direito divino de monarcas e nobres de séculos passados. Em uma sociedade aberta e livre, não devem existir cidadãos de primeira ou segunda classe.

Os grandes estudiosos que debruçaram-se sobre os problemas do Brasil – Edson Nunes, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Roberto DaMatta e cia – têm um ponto comum em sua análise: Todos reconhecem que, por aqui, o princípio da impessoalidade nunca foi levado às últimas consequências. Instituições impessoais exigem que todos sejam tratados da mesma forma e respondam por eventuais malfeitos. A defesa da impessoalidade na gestão de assuntos do Estado foi a primeira batalha dos liberais europeus. Quando o ex-presidente Lula comenta os escândalos de seu amigo José Sarney dizendo que “ele não deve ser tratado como uma pessoa comum”, nada mais é necessário para provar que, por aqui, a luta pela impessoalidade nunca foi travada. Ainda existem castas implícitas que definem como cada brasileiro será tratado pelas instituições formais.

A solução para a corrupção não termina na derrubada de uma presidente. De fato, como diz Xicó, não há nada mais importante para combater a venda de favores estatais do que cortar o número de favores à disposição dos agentes do Estado. A liberalização e desburocratização certamente são essenciais e o gráfico utilizado por ele em seu texto praticamente encerra a discussão quanto a isso. Mas não adianta ir ao décimo capítulo do liberalismo sem antes passar pelo primeiro. Garantir que Dilma responda pelos seus atos não é suficiente para transformar o Brasil numa Suécia – que, não custa lembrar, também tem uma estatal petrolífera onde os desvios não são tão comuns quanto em nossa Petrobras. (Por que será?) O impeachment não termina a batalha, mas seria um bom e necessário começo.

Não tenho grande simpatia por certas escolhas políticas do Movimento Brasil Livre em sua “Coluna Kataguiri”. O líder do movimento, por exemplo, não se constrange em tirar fotos com figuras como Jair Bolsonaro e Marco Feliciano, por quem tenho pouquíssimo apreço. (Bolsonaro, aliás, é um dos mais ardorosos defensores do controle estatal sobre a Petrobras, mas esta é outra história). Ao pedirem e lutarem bravamente pelo impeachment da presidente, Kim Kataguiri e seus colegas estão contribuindo decisivamente para que políticos graúdos sejam responsabilizados por seus atos, da mesma forma que qualquer cidadão comum o seria se saísse movimentando ilegalmente uns 40 bilhõeszinhos aqui ou causando 80 bilhõeszinhos de prejuízo na Petrobras para ganhar as eleições acolá. Eu não preciso concordar integralmente com todas as suas posturas, assim como não preciso concordar com Xicó para tê-lo como colega neste Mercado Popular. Desejo, porém, que o Movimento Brasil Livre tenha sucesso em suas reivindicações, especialmente no impeachment, importantíssimo para avançar na solução daquele que é o mais grave dentre os problemas brasileiros.

Enquanto Kim estiver na luta contra o direito divino de Dilmas e Sarneys, resta a mim torcer para que ele vença. Por ora, Kim Kataguiri é o meu John Locke.

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