Com os movimentos do Congresso para a revogação do Estatuto do Desarmamento, um número passou a rodar a imprensa: o Estatuto do Desarmamento teria salvado 160 mil vidas. O número também convenceu alguns parlamentares. O Deputado Alessando Molon (REDE-RJ), por exemplo, tuitou:
Desse desvio da taxa de homicídios de sua tendência histórica, pode-se extrapolar para quantas vidas teriam sido salvas por causa do Estatuto do Desarmamento. Isso faz sentido? Faria, se todas as outras coisas que influenciam a mortalidade por armas de fogo tivessem sido mantidas constante no Brasil. Mas essa abordagem ignora outras variáveis importantes para a taxa de homicídios que passaram por uma mudança histórica mais ou menos na mesma época em que a taxa de homicídios passou a cair no Brasil: a desigualdade de renda e a taxa de pobreza.
O gráfico abaixo mostra a relação entre o desvio dos homicídios por armas e da desigualdade de renda (medida pelo índice de gini) de suas tendências históricas. Embora não seja possível dizer que haja causalidade entre elas, há uma correlação significativa entre as duas variáveis.
É possível fazer uma análise similar utilizando dados comparando a taxa de pobreza com a taxa de homicídios. A pobreza, que pode certamente influenciar na taxa de homicídios, caiu a níveis historicamente muito baixos a partir de 2003 – o que coincide com a promulgação do Estatuto do Desarmamento. Isso complica a presunção de que tudo o mais se manteve constante e que a causa na queda dos homicídios tem de ser explicada pelo Estatuto e inviabiliza essa estratégia do ponto de descontinuidade.
Um bom analista reconheceria que, do mesmo modo que é razoável a hipótese de que o Estatuto do Desarmamento pode ter reduzido a criminalidade, também é razoável pensar que foi a redução da desigualdade ou da pobreza que levou a tal mudança na taxa de homicídios por arma de fogo.
Eu trago aqui um modelo bem simples (embora mais complexo do que o utilizado para chegar nas 160 mil vidas salvas) para simular o que teria acontecido com as mortes por armas de fogo já excluindo o impacto da redução da pobreza e da desigualdade. [Aos interessados, os detalhes de como eu fiz isso estão ao fim do texto.] É interessante perceber que, combinados, desvios da pobreza e da desigualdade em relação a suas tendências históricas explicam 86% da variância das mortes por armas de fogo. Fazendo um contrafactual, observa-se que, caso a desigualdade a pobreza não tivessem sido reduzidas, é plausível postular que as taxas de homicídio por armas de fogo teriam seguido bem próximas de suas tendências históricas. Veja abaixo.
Embora eu queira alertar o leitor que este exercício não tem o rigor de um artigo acadêmico, ele ajuda a elucidar que nós devemos tomar essas afirmações simplistas a respeito do efeito do Estatuto do Desarmamento com bastante ceticismo. É um erro usar metodologias simplistas pra fazer um argumento sobre uma política pública tão complexa. Traçar uma linha reta e ignorar todas as outras variáveis não é suficiente pra concluir que o Estatuto do Desarmamento salvou 160 mil pessoas.
É possível que o Estatuto do Desarmamento tenha reduzido os homicídios. Sim. Mas também é possível que isso não tenha acontecido. O mais importante é saber essas manchetes não são baseadas em uma metodologia confiável. As manchetes são estratégias políticas, não estatísticas.
Dados utilizados taxa de pobreza (Ipeadata), índice de gini (Banco Mundial) e taxa da homicídios por armas (Mapa da Violência) entre 1985 e 2012. Em caso de pequenas descontinuidades nas séries, os dados foram interpolados. Dados disponíveis aqui. Passos para a criação do contrafactual:
capture log close
clear
log using desarmamento.log, replace
import delimited “brazil.csv”, varnames(1)
tsset year, y
foreach var in homicides poverty gini {
reg `var’ year if year < 2004
predict `var’_r, r
predict `var’_t
}
reg homicides_r poverty_r gini_r, r noconstant
predict homicides_n, r
gen homicides_nn = homicides_n + homicides_t