Não é novidade para ninguém que a internet é terreno fértil para mentiras e simplificações. Há quem espalhe por aí, por exemplo, que no setor de saúde dos Estados Unidos vigora o livre mercado selvagem, onde quem é pobre e não pode pagar um plano de saúde é obrigado a se endividar para pagar contas hospitalares caríssimas. Print screens e documentários obscuros sobre o assunto transformam-se em evidências universais. Nada mais falso.
Como abordado no meu texto anterior, e como os observadores menos estridentes já deveriam ser observado, há uma zona cinzenta entre o preto e o branco: os EUA têm sim um sistema de saúde pública, composto por programas que focam em idosos (Medicare) e pessoas pobres (Medicaid). Um dos maiores mitos dos discursos panfletários, difundido até mesmo na América, afirma que os critérios de entrada no Medicaid impõem que a pessoa seja praticamente um morador de rua para obter o programa, o que é simplesmente mentiroso.
Não precisaríamos nos aprofundar muito nos números para perceber que um programa que, sozinho, cobre o tratamento médico de 60 milhões de americanos (20% da população) não está ligado a apenas moradores de rua, que são uma parcela mínima das pessoas de baixa renda (0,2% da população, o que daria um centésimo da cobertura total se todos estiverem cadastrados). Além disso, vale lembrar que os critérios que definem quem é pobre nos EUA são bem diferentes daqueles para o Brasil, sendo que o pobre americano médio tem uma qualidade de vida comparável a classe média [baixa] européia.
Outro fator importante é que, devido a inexistência de um sistema de cobertura universal nos EUA, — como é o SUS brasileiro –, as notícias que são divulgadas na mídia tendem a misturar conceitos. A confusão mais comum é entre os dois a cobertura do sistema de saúde e o acesso a saúde. Em termos gerais, a cobertura é o que está num pedaço de papel dizendo que alguém tem direito a tentar utilizar: por exemplo, o SUS dá direito a qualquer brasileiro tentar se tratar no Hospital das Clínicas da USP, raríssimo exemplo de excelência no serviço público, mas daí a garantir o tratamento há uma longa distância. E isso para não falar nas filas, desde a espera para marcar uma consulta à que se acumula em corredores pelo país.
Já o acesso ao serviço de saúde está relacionado ao que efetivamente se consegue quando é necessário. Amplitude de cobertura e acesso efetivo são coisas bem distintas e quem já precisou do SUS sabe bem a diferença.
Quando se lê na mídia ou se ouve em discursos de políticos que mais de 40 milhões de americanos não têm acesso a serviços de saúde, o que na verdade tenta-se dizer é que mais de 40 milhões não teriam seguros de saúde. Mas não passam de discursos simplistas ou mentirosos, embora sejam muito propagados.
Muitas pessoas teriam acesso aos serviços de Medicare ou Medicaid se quisessem, mas nunca se deram ao trabalho de se cadastrar nos programas — ou muitas vezes preferiram não fazê-lo por problemas tão comuns em sistemas públicos ao redor do mundo como ineficiência, corrupção, não serem bem tratadas por parte dos agentes do governo, etc. Há ainda a parcela da população que escolhe voluntariamente não pagar um plano de saúde e arcar do próprio bolso com os custos de tratamentos médicos quando necessários. Pode parecer estranho, mas é o caso de muitos jovens saudáveis de classe média que, por não precisarem de tratamento médico frequente, julgam que não vale a pena pagar um valor fixo todo mês. A prática é tão frequente que o presidente Barack Obama pretende proibi-la com sua reforma do sistema de saúde, conhecida informalmente como “Obamacare”.
Dados do CDC relatam que 86.5% dos americanos declaram ter um lugar de costume quando precisam de tratamentos de saúde, e isso obviamente não quer dizer que os outros 13.5% não tenham acesso a tratamentos quando precisam. No mesmo conjunto de estatísticas, vê-se que apenas 5.9% das pessoas não conseguiram obter acesso a tratamentos necessários devido a custos, o que certamente é um problema que – embora passe longe do cenário apocalíptico muitas vezes descrito – deve ser investigado mais a fundo antes de qualquer conclusão apressada, a fim de se entender qual tipo de tratamento não foi obtido, quais as circunstâncias da falta de dinheiro para pagamento do tratamento [1], quanto tempo foi necessário para que elas tivessem acesso a esse cuidado [2] e qual o índice de pessoas que em momento algum conseguiu o acesso necessário.
As comparações com o SUS poderiam começar por aí e passar a perguntas mais complexas. Um exemplo: quantos são os brasileiros que efetivamente não têm acesso a alguns serviços de saúde, apesar da gratuidade formalmente garantida?
Entendendo de verdade esses dados, poderíamos propor medidas que possam resolver o problema e refinar os programas de governo [3], além de fornecer aos agentes privados outro mecanismo de incentivos para melhorar seus serviços.
Muito do discurso sobre a suposta falta de acesso a saúde nos EUA se dá por interesses políticos ou por retórica eleitoral, e não por fatos. Mas deixando isso de lado por uns parágrafos, vou falar um pouco mais sobre o Medicaid.
O programa Medicaid funciona como um plano de saúde pago pelos governo — dinheiro transferido de pagadores de impostos para os beneficiários escolhidos pelos políticos — e tem critérios de eligibilidade que variam conforme o Estado, principalmente depois que 31 Estados e o Distrito de Columbia expandiram seus programas devido a verbas prometidas no Obamacare (100% do valor da expansão nos primeiros 3 anos, 90% a partir de 2020).
Todos os Estados são obrigados a oferecer Medicaid em critérios baseados por renda se as famílias recebem em salários e rendimentos um valor menor que a linha de pobreza federal (US$ 23.550,00/ano para uma família de quatro pessoas), descontados os valores recebidos em programas de bem-estar social como food stamps (SNAP), public housing, pell grants etc.
O Medicaid ainda tem requisitos relacionados a residência num determinado Estado da federação, a situação de imigração, a cidadania. Todavia, cada Estado pode ampliar a sua cobertura como achar melhor, ou como a classe política determinar a fim de conseguir mais votos na próxima eleição.
Dessa forma, existem Estados que oferecem o programa para famílias de quatro pessoas cuja renda é superior a US$ 30.000,00/ano (equivalente a mais de R$100.000,00/ano no câmbio de 28/07/2015 — R$ 3,38/US$ 1,00), outros que oferecem acesso ao programa portadores de green card, outros que tem critérios mais rígidos de eligibilidade para adultos que não tenham filhos. Isso acontece devido ao sistema federalista americano funcionar muito melhor do que o brasileiro, em que cada Estado é um “laboratório” de políticas públicas que podem ou não ser ampliadas a nível federal.
O Medicaid — assim como o Medicare — não é um sistema como o SUS, ele é um plano de saúde estatal que funciona aos moldes do sistema canadense de saúde. O único programa de saúde americano que se assemelha completamente ao SUS é o Veterans Affairs, destinado a militares, visto que nele o governo não realiza apenas os pagamentos dos serviços, mas é o empregador dos médicos e dono dos hospitais.
O Medicaid apresenta uma lista de provedores de serviços de saúde que pode ser contactada pelo beneficiário, sendo que a conta será paga pelo governo, com nenhum ou praticamente custo extra para o paciente. Associado ao Medicaid propriamente dito existe um programa chamado SCHIP, ou Programa Estadual de Seguro de Saúde para Crianças (Medicaid para crianças, em termos gerais). Ele é uma das formas do Medicaid mais amplamente expandida devido a facilidade de retórica política para atender a demanda por mais verbas, mas não necessariamente serve para melhorar o serviço de saúde (diferentemente do que sugere a propaganda abaixo).
As listas de provedores de serviços de saúde que aceitam Medicaid/SCHIP e Medicare são bem diversificadas. Alguns dos melhores hospitais do país atendem pacientes nessas modalidades, como é o caso do Keck Hospital em Los Angeles, o New York Prebyterian em Nova Iorque, a Cleveland Clinic em Cleveland-OH. Todavia, devido aos controles de preço praticados pelos programas estatais, os atendimentos não seguem a mesma escala daqueles para pacientes com planos de saúde privados ou que realizam pagamentos em espécie — algo similar ao que acontece em todos os sistemas de saúde mistos ao redor do mundo, com a criação de “categorias” de atendimento. Isso resulta em inúmeras polêmicas e inflama o debate político em vários Estados, com a maior parte das pessoas não percebendo que o problema se encontra no controle de preços e não nos hospitais.
Outras perguntas que deveriam ser feitas em relação ao funcionamento dos programas estatais, que são amplamente ignoradas, são: o que tem sido feito com o dinheiro? Como ele tem sido aplicado? Os programas realmente atingem os resultados desejados? As pessoas que recebem os benefícios realmente se enquadram nos critérios do programa? Elas estão realmente mais saudáveis devido a transferência de renda realizada?
Além dos supostos problemas de financiamento, há uma burocracia gigantesca associada aos programas, seja na parte dos beneficiários que devem contatar inúmeros provedores a fim de achar uma vaga para seu atendimento — levando a filas enormes –, seja para os hospitais e clínicas que devem se adequar a imensas regulamentações definidas pelos membros da máquina governamental de Washington. Com isso, os custos do atendimento de saúde aumentam para todo mundo — principalmente para aqueles que não são beneficiários dos programas estatais –, visto que agora é necessário pagar por uma parte burocrática gigantesca que se tornou necessária devido às interferências do governo.
Quem perde nesse história é a pessoa mais pobre que vê a fila de atendimento crescer na sua frente pois o hospital precisa fazer dinheiro para compensar os custos do tratamento pago com valores abaixo de mercado e, infelizmente, ela não tem a possibilidade legal de complementar o valor pago pelo governo a fim de conseguir o mesmo tratamento do serviço privado. Ou seja, ela é colocada em uma categoria inferior pelos mesmos políticos que fazem inflamados discursos dizendo ajudá-la.
Quando se juntam esses problemas relacionados a implementação do programa e a fatores econômicos com a ignorância natural que grande parte das pessoas tem sobre o processo político e a economia, o que surge são pressões para maiores intervenções do governo no setor de saúde — orquestradas ou não de dentro do próprio governo.
Em grande parte, a demanda por uma reinvenção do sistema de saúde americano que pautou parte dos debates eleitorais em 2008 e levou a aprovação do Obamacare em 2010 foi fabricada pela mídia e por políticos experimentes que queriam ter mais controle sobre um dos principais setores da economia americana, entre eles a candidata Hillary Clinton que viu seu plano para reformulação do sistema de saúde americano ir por água a baixo quando era primeria dama em 1993. Lembre-se: sempre que o Estado quiser intervir em algum setor da economia, desconfie. Depois de desconfiar, desconfie ainda mais e siga a trilha do dinheiro. Nela existirão muitas pessoas que não são nem de longe pobres ou necessitadas e que estarão sendo beneficiadas às custas dos pagadores de impostos.
Infelizmente, 50 anos depois de sua implementação, os programas de saúde pública dos Estados Unidos da América que deveriam atender as pessoas mais pobres comemoram o aumento cada vez maior da sua cobertura em número de pacientes. Nenhuma sociedade decente deveria celebrar esse feito, pois ele significa que a porcentagem de seus membros que não consegue pagar um plano de saúde com o próprio dinheiro vem aumentando. Devemos sim buscar um mundo em que as pessoas consigam se sustentar com seus próprios meios, uma sociedade mais justa em que cada um mantenha os frutos do seu trabalho e em que bens e serviços estejam disponíveis a todos de forma que a competição por clientes permita que ricos ou pobre todos tenham acesso aos cuidados de saúde, sem precisar de nenhuma arma apontada para a cabeça de alguém a fim de se conseguir os resultados desejados.
Notas
[1] Pessoas podem estar temporariamente desempregadas e por isso não ter dinheiro para pagar uma consulta médica em determinado momento. Isso não significa que o tratamento em si é caro, mas que naquele exato ponto do tempo ela não tinha a verba para tal gasto. Esse cenário foi relativamente comum entre os anos de 2008 e 2010, quando os EUA estavam começando a recuperar da Grande Recessão e o desemprego foi o fator mais importante para que pessoas não tivessem acesso a planos de saúde.
[2] O tempo entre a identificação da necessidade de tratamento e o tratamento em si é um fator essencial para a eficácia do sistema de saúde, mas ele deve ser encarado distinguindo-se entre tratamentos essenciais e eletivos. Para alguns tratamentos essenciais, que afetam realmente o estado de saúde do paciente, o intervalo entre o diagnóstico e o início da terapia pode não afetar tanto o resultado final, desde que o tratamento aconteça. Então é possível que uma pessoa possa adiar uma terapia essencial por um determinado período enquanto acumula capital para pagá-la, procura um novo emprego, espera doações, etc. Por outro lado, uma pessoa também pode não ter dinheiro para pagar um tratamento eletivo que não prejudicará a sua saúde, mas que melhoraria sua qualidade de vida como no caso vários tratamentos estéticos, mesmo aqueles de finalidade reparadora, e conseguir arcar com ele no futuro ou abrir mão totalmente sem prejuízo a sua integridade física.
[3] Existem programas de saúde pública muito melhores que o Medicare, Medicaid, SUS, como aqueles de Cingapura e da Suíça. Ambos permitem maior participação do mercado e colocam muito mais poder decisório na mão dos pacientes, levando a competição entre os provedores de saúde pelo dinheiro dos doentes. Sistemas assim já foram implementados nos EUA, como no caso das health savings accounts que existem em Indiana (parecido com Cingapura) ou do Medicare Advantage (baseado no modelo Suíço).