Por André Ichiro
Libertários não deveriam ter ídolos carnais. Isso é coisa daquelas menininhas de 16 que depois de terem ido em todos os shows, consagraram as suas vidas com uma tatuagem: a cara do Justin Bieber grafada nas costas – mas tudo bem, a tattoo foi feita com traços de pop art e quem escolheu as cores foi o Rometo Britto em pessoa –; digamos que esse tipo de idolatria geralmente leva a posições constrangedoras. Digo isso por um motivo simples: chegou a hora em que posso dizer “I’m more libertarian than thou!!!” ao Ron Paul (é brincadeira, ok?). Assistam ao vídeo:
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=RwK_xtzyS74[/youtube]
Estamos falando da Crimeia e da sua recente autodeterminação. Desta vez, acho que o Mr. No – com o qual eu concordo, no geral – errou. Um referendo sacado da algibeira soviética na prorrogação do segundo tempo, com amplas alternativas de “sim” ou “sim” e sob a livre e espontânea pressão de soldados que avançaram para a fronteira ANTES do próprio referendo ser evocado – soldados, aliás, que já mataram ucranianos –, além da remoção instantânea de todas as transmissões advindas de canais ucranianos da Crimeia (substituindo-os por canais… russos!), que é um país frágil – economicamente falido e sem muito hard power disponível –, pode ser muita coisa, menos o pleno exercício do direito de secessão.
Imagine que você está andando na rua e, de repente, duas gangs rivais se posicionam nas duas saídas possíveis daquela situação, cada uma de um lado. Aí um líder sisudo – capaz de matar a outra gang com uma mão amarrada nas costas enquanto bebe um gole de mao-tai – olha para você e diz: “Ei, você tem o direito de escolher! Você vem comigo ou vai me fazer ir atrás deles para te buscar?”.
Será que o contexto desse referendo realmente assegura um cenário razoável de tomada de decisões (para a Crimeia sim, mas para a Chechênia não)? Me parece ser, antes disso, um verdadeiro atentado contra o importantíssimo direito – talvez o mais importante – de autodeterminação dos povos, ainda mais se pensarmos que esse índice de aprovação, que ultrapassou os 90%, parece ser digno de um selo norte-coreano de qualidade. Não digo que o resultado seja contra o desejo da maioria da população – apenas a minoria muçulmana parece ser claramente contra Moscou; isso, aliás, é fruto de um histórico sombrio –, mas os procedimentos envolvidos na secessão foram desenvolvidos de maneira obviamente duvidosa, e um mínimo de legitimidade procedimental faz parte da operacionalização de todo e qualquer direito juridicamente estabelecido. Não tem nada de Putin “has some law on his side”; existe apenas os dedinhos do Putin que não viam a hora de poder brincar com uma nova base naval ou estancar as chances de protestos começarem na Crimeia e se espalharem Rússia adentro. Há, ainda, uma tentativa de resgate histórico e, finalmente, uma busca por maior acesso ao leste, ao nordeste – por causa do Mar Negro, região que reforça a importância estratégica tanto da Crimeia, quanto da Ucrânia – e ao sudeste ucranianos, e consequentemente ao resto da Europa. Lembre-se, por fim, que há alguns importantes gasodutos russos que passam pela Ucrânia, e que a própria Crimeia apresenta reservas de gás exploráveis. Pensando nisso, podemos dizer que o gás é um ativo que certamente será usado como arma nessa disputa, tanto contra a Ucrânia quanto contra a própria União Européia. Isso, é claro, aumenta a pressão de exportação de gás dos EUA para a Europa.
E aqui cabem dois adendos: a) há uma crescente onda de milicianos nazistas espalhados pela Rússia, o que se conecta bem com a campanha preconceituosa que foi liderada pelo Putin; isso significa que não houve, portanto, nenhum tipo de política de repressão da Rússia contra as milícias neo-nazis russas. E agora surgem os rumores de que há uma ameaça neo-nazista na Ucrânia. Supostamente, isso legitimaria a invasão russa, tudo para proteger os russos contra os grupos neo-nazistas ucranianos! Disto podemos pensar que muitas informações serão usadas para justificar atos políticos, mesmo que isso signifique cair em franca contradição; b) veja que, antes, a Crimeia pensou em ter certa autonomia – no sentido de ser uma “república autônoma”, um tipo administrativo comum no pós URSS -, mas sem independência, uma vez que fazia parte da Ucrânia. Agora, a Crimeia declara independência da Ucrânia mas “concorda” com a anexação à Rússia. E disto podemos concluir que escolher seus mandantes não deixa de ser uma autodeterminação, ainda que seja cabível perguntar até que ponto tal escolha foi livre – no sentido de termos uma manifestação de vontade viciada ou plenamente protegida contra anomalias. Estes dois adendos alertam para a importância da coerência e da necessidade de decisões livres.
Mas, no cenário geopolítico, não existe – ou é muito difícil que exista – “purismo” e “decisões livres”. Sempre existirá pressão e interesses, e as inconsistências são frequentes. Se for assim, também não podemos justificar, meramente apontando a existência de tensões, o uso de sanções comerciais contra a Rússia e vice-versa, por parte de alguns países – como a Alemanha, os EUA etc –, sem a respectiva autorização de seus comerciantes e empresários locais, nem o envio à Crimeia de remessas de dinheiro público, sem que haja uma prévia autorização de cada um de seus respectivos pagadores de impostos (sejam eles alemães, americanos etc). No meio da possibilidade de crise na Europa e aumento da dívida americana, medidas que sejam irresponsáveis com as contas públicas e com a situação empresarial de cada país soariam como uma total intransigência e falta de diálogo com a população. Essa nota negocial – uma tendência sobretudo européia, onde a administração pública conversa com atores internos usualmente privados – tende a ser uma pedra no sapato da montagem estatal de estratégias internacionais? Claro que sim. Mas essa mesma nota negocial também tende a agradar corporações instaladas nesses países (o que não necessariamente é bom para o povo alemão, americano etc). Se é verdade que a abertura para o capital estrangeiro traz ganhos de produtividade, também é verdade que a fusão entre Estado e grandes corporações tende a engessar os níveis de competição do país, em detrimento de sociedades empresariais menores (que não raro são as responsáveis por grandes inovações). Ou seja: a nota negocial não necessariamente é boa, mas se o pensamento mercantilista de se injetar infinitos recursos públicos em “campeões nacionais” já está sendo questionado há um bom tempo, então certamente não veremos nenhuma solução real vindo de práticas onde infinitos recursos públicos são injetados em países estrangeiros – dos EUA ou da Alemanha para bancar revoltas na Crimeia ou na Ucrânia –, privilegiando poucos ao custo de muitos, sem qualquer tipo de controle direto de quem paga as contas – o taxpayer ou o Steuerzahler.
Todas essas sutilezas econômicas acontecem dentro dos países envolvidos – Alemanha, EUA etc – enquanto várias disputas políticas com a Rússia exigem respostas. Percebe que não há decisões fáceis? Sempre que a situação te parecer simples, pense que há vidas em jogo e exércitos prontos para entrar em ação.
E isso é só o começo. Essa pequena introdução ilustra só um pedacinho da salada russa – desculpem pelo trocadilho infame – que paira sobre a relação entre a terra da vodka e da boa literatura, com o poder ocidental e outros países mais próximos da Rússia. Maria Snegovaya, por exemplo, nos ajuda a compreender melhor as idiossincrasias da tensão cultural Rússia-Ucrânia. Ou seja: não dá para analisar o aspecto jurídico da situação lendo apenas a letra fria de alguns acordos, ao estilo do juiz “bouche de la loi”. Então vou tentar abordar a questão em duas frentes diferentes, mas complementares: primeiro, passo por uma abordagem jurídica (ou seja, nada de jusnaturalismo) e, depois, falo alguma coisa sobre geopolítica. Nas duas abordagens tentarei abarcar questões mais amplas, o que requer um arsenal teórico que pode parecer, a primeira vista, um pouco abstrato.
É que as peculiaridades envolvidas na compreensão da Crimeia transcendem a região e requerem desde uma compreensão normativa – e que abarca, portanto, a relação entre Direito e Política – até chegar em algum conhecimento especifico sobre geopolítica, o que significa que precisamos de uma certa visão macroscópica, também conhecida como “chatice”. Tudo para emitirmos um palpite legal e, quem sabe um dia, nos aproximarmos de quem “manja dos paranauês”. Convenhamos que sem nenhum tipo de base jurídica, política ou econômica, o que resta são palpites que são chatos E estéreis. Um texto chato E estéril é como alguém ser arrogante E péssimo de xaveco. Melhor ser só arrogante – ou, no caso do texto, chato -, certo? E para deixar o texto divertido, prometo que darei um jeito de encaixar uma foto do William Shatner em algum lugar. Então aí vai.
Por qual motivo eu digo que os últimos acontecimentos estão em total desconformidade com o funcionamento normal do Direito? Aliás, cabe uma análise jurídica que não seja meramente “mas, segundo a lei número 1392123 de 1.893….”? Acho que sim. Bem. Vamos começar com a análise jurídica, tentando ressaltar a importância dos procedimentos – ausentes no caso da autodeterminação da Crimeia –, o que pressupõe um certo conhecimento sobre o que vem a ser o Direito.
“O advogado, no leito da morte, pede uma Bíblia e começa a lê-la avidamente. Todos se surpreendem com a conversão daquele homem ateu, e uma pessoa pergunta o motivo. O advogado doente responde:
– Estou procurando alguma brecha na lei.”
Podemos dizer que o Direito é um sistema social especializado em absorver determinadas incertezas, incertezas que advém de lugares que o próprio Direito consegue identificar como instâncias externas – em sistemas que estão fora do Direito, como a Economia, a Política ou a Ciência, por exemplo –, para transformar tais contingências (econômicas, políticas etc) em complexidade jurídica. Em outras palavras, o Direito absorve riscos advindos de seu ambiente, convertendo os riscos externos em incertezas internas. Como nem todos os riscos interessam, os outros sistemas entram em ação; a Política, por exemplo, pré-seleciona quais temas provavelmente serão juridificados – geralmente através de normas, como a legislação – e o poder judiciário, ou uma câmara de arbitragem, cria filtros específicos que atuam como uma segunda camada, agora já interna ao Direito, para decidir quais temas realmente são juridicamente relevantes e quais não são, além de colocar em prática os mecanismos decisórios próprios do Direito. Como é possível pensar, existem vários riscos políticos envolvidos em uma secessão, e um caso desses usualmente seria julgado por uma suprema corte, órgão que não coincidentemente está no topo da politização do Direito (ou da judicialização da política).
De qualquer modo, se as coisas realmente forem assim, então temos um circuito onde as expectativas políticas – como o exercício da autodeterminação – tornam-se, na medida em que Política e Direito se tocam, expectativas jurídicas – por exemplo, transformando a questão da autodeterminação em uma discussão sobre legalidade vs. ilegalidade, restando o direito internacional como um mediador jurídico de interesses políticos –, o que consequentemente aumenta a complexidade interna do Sistema Jurídico. Enquanto problemas cabeludos são entregues para juristas, há uma certa transformação das expectativas políticas, na medida em que o problema da legitimidade passa a ser, também, um problema interno ao Direito. A maioria dos juristas parece não entender essa dinâmica, já que viraram papagaios que decoram normas estatais, sem entender muita coisa além disso. As faculdades de Direito parecem meras faculdades de legislação. Mas a atividade envolve – ou deveria envolver – muito mais do que isso.
Enquanto a política evoca o Direito para tratar da legitimidade, o Direito problematiza a questão através de um modo de operação que visa responder algumas perguntas, do tipo: Quais são as regras do jogo, e qual é a moldura de interpretação cabível? Quais são os objetivos das regras, e em qual medida tais objetivos estão dentro de procedimentos anteriormente estabilizados? Quais são os jogos – compostos por raciocínios críticos – possíveis de serem feitos com tais regras e objetivos? Por fim, quais são as possíveis arenas de discussão para resolver as 3 questões anteriores?
Quero dizer, com isso, que o Direito oferece a sua incerteza, que é composta pelas indagações anteriores, para condicionar as operações sociais, permitindo que pendências – políticas, no caso – sejam guiadas por programas condicionais (“Se… então”). Isso significa que os procedimentos guiam – através de restrições normativas – a atuação de atores como, por exemplo, o Estado. E a dogmática jurídica entraria, aqui, como uma espécie de fixador de sentido desses programas condicionais, agregando diferentes interpretações possíveis em um corpo de técnicas decisórias capazes de analisar as operações jurídicas – como uma auto-análise feita pelo Direito e voltada para o próprio Direito –, com o intuito de dar uma consistência teórica “a priori” apenas para um grupo específico de decisões. Note, por exemplo, que as sanções, positivas ou negativas, são as formas clássicas que o Direito encontrou para dotar as expectativas jurídicas de eficácia, ainda que a força policial ou militar sejam instâncias políticas. Essa dinâmica de sanções, que aparecem como prestações recíprocas entre Direito e Política, são reproduzidas no cenário internacional: é como se o dito soft power integrasse o Sistema Jurídico há muito, muito tempo.
É claro que, nesse processo, algumas coisas são perdidas: os fatos da petição inicial nunca são – mesmo no direito penal, onde ingenuamente diz-se que busca-se a verdade material – os fatos da realidade externa ao Direito, que são sempre mais complicados e livres de amarras jurídicas; por sua vez, a dogmática jurídica pode ser, não raramente, desatualizada e superficial. Não defendo, portanto, que a juridificação seja um mar de rosas. Digo, aliás, que o Estado é inerentemente ineficiente para lidar com os procedimentos, transformando-os quase sempre em burocracias de baixa qualidade, ou que atende aos interesses de poucos – mesmo em uma época onde se fala em “contratualização” ou em refinamentos da teoria de finanças públicas. Também é verdade que, agora, a burocracia ultrapassa a provincialidade territorial do Estado (como pode ser visto aqui, aqui e aqui), o que altera radicalmente a condição burocrática – talvez para pior – e possíveis críticas que se atenham apenas ao Estado, já que a burocracia virou um fenômeno globalizado (como uma malha interconectada onde cada fio é produzido por um ator diferente). Mas, de qualquer modo, os procedimentos advindos do Direito permitem que todos os outros sistemas tenham uma orientação normativa partilhada e restritiva, ou seja, a procedimentalização jurídica serve como uma referência capaz de colocar um ponto final – ainda que apenas formalmente – em diversas pendências, desde que determinados limites sejam obedecidos.
E isso é importante? Sim, os procedimentos, incluindo a hermenêutica da dogmática jurídica, que lhe possibilita críticas, ou as diferentes arenas que viabilizam a sua implementação de modo minimamente estabilizado, são extremamente importantes. É verdade que Constituições e tribunais não são suficientes para conter o poder – e, muitas vezes, é daí que vem os abusos –, mas se tirarmos todas essas amarras procedimentais (que podem vir de várias instâncias diferentes da esfera estatal, como das câmaras de arbitragem), então teremos tão somente uma Rainha Vermelha berrando “Cortem-lhe a cabeça”. O modus operandi que vimos na Crimeia está mais próximo disso do que de uma secessão legítima, ainda que essa figura soe um pouco exagerada. Nesse sentido, recomendo que os leitores pensem sobre algumas conquistas liberais, dentre as quais podemos listar a criação de ferramentas formais de proteção do indivíduo contra o Estado (ainda que de modo imperfeito e seletivo). Isso significa que a procedimentalização jurídica – quando nasce do ativismo, e não do status quo – pode constituir uma importante malha protetiva capaz de, junto com outros fatores, controlar, ainda que de modo mínimo, os riscos de falhas, manipulações ou de ações autoritárias, formações que são inerentes ao exercício do poder. É por isso que a autodeterminação da Crimeia deveria ter – e na política quase tudo é assim – acontecido de outro jeito.
Por outro lado, entendo o Ron Paul. E aqui começamos a sair da ambientação exclusivamente jurídica, para entrarmos na pegajosa questão do poder. É verdade que a visão política ocidental, condenando Putin, gosta de admirar as inúmeras vantagens das diversas variações do modelo democrático enquanto banca ditaduras obscuras – fora de seu quintal, por ora -, exaltando o atualmente distorcido “american way of life” como o vencedor de uma competição de feiura entre cosmovisões as quais, cada uma a seu modo, cria elites que se importam pouco com rótulos nacionais, restando preocupadas tão somente com o status de redes de poder que são expandidas às custas do desenvolvimento cultural, econômico e científico que serviriam a maioria e blindariam as minorias – que sejam carentes de expressividade – contra os desmandos dos 50%+1. Isso significa que o desgosto do Ron Paul não é um chororô despropositado; na verdade, o texano aponta para algo muito importante. Ameaças sérias contra a privacidade e contra a liberdade, além de políticas monetárias que cada vez mais colocam em risco as economias de todo o mundo, fazem com que não seja possível ignorar os desmandos do governo americano (não confundir “população americana” com “governo americano”). Ignorar tais desmandos seria um erro crasso e infantil. Sobretudo, apoiar a Rússia parece configurar uma atitude igualmente precipitada.
É que imergir na análise geopolítica sendo um defensor dessas redes de poder, sejam ocidentais ou eurasianas, ingenuamente acreditando que o menos pior pode ter lá a sua beleza, é como ir a um concurso de miss esperando a entrada da Penélope Cruz, mas no lugar dela encontrar dois ursos gordos desfilando de tanga, e então sentir-se bem por ter de escolher um deles: digamos, aquele com o melhor corte de cabelo, ou aquele que seja mais parecido com o zé colméia. A realidade é que, nesse caso, há males que vem para o pior.
O ímpeto centralizador – vamos chamar assim um dos princípios formadores das redes de poder anteriormente mencionadas – sempre ancora, em algum momento, na institucionalização de uma violência que visa homogeneizar as diferenças em busca de governabilidade, o que gera a já banal hipocrisia de, ao mesmo tempo, criticar uma era de invasões bárbaras, mas exportar destruição – sob falsas bandeiras de liberdade – com o exclusivo intuito de importar privilégios totalmente contrários a um livre mercado tolerante e inclusivo. O ímpeto centralizador estimula culturas revanchistas de ódio e explora as contradições até que tudo esteja propício ao poder de domínio. Mas, é claro, o ímpeto centralizador pode tomar várias formas diferentes. Dá para ilustrar (como tipos ideais): temos o ímpeto multipolar e temos, também, o ímpeto globalista-unilateral. Rússia e EUA são, respectivamente, alguns atores-chave dessa tipologia.
De um lado, temos um ímpeto centralizador que usa um discurso multipolar mais ou menos assim: “uma superpotência tende a abusar do próprio poder assim como um tirano tira proveito de seus privilégios; é por esse motivo que precisamos de um cenário onde há várias potências, já que assim haverá equilíbrio entre elas; para tal, precisamos de uma ampla cooperação, em prol de um mundo multipolar”. O discurso pode até ter uma aparência coerente, mas qual é o intuito do ímpeto multipolar? Elevar um país – coincidentemente, a Rússia – ao status de superpotência. Percebem que há uma ligeira inconsistência entre advogar pelo equilíbrio enquanto a busca é pelo total desequilíbrio? Surpresa! É o Putin traquina.
Do outro lado, temos um ímpeto centralizador que usa uma retórica globalista-unilateral do tipo “potências que estejam em busca de virar a nova superpotência tendem a abusar do próprio poder para chegar a tal objetivo; precisamos de um superpolicial transnacional que mantenha o bem-estar mundial em níveis toleráveis”. Essa retórica pode ter algum apelo, mas qual é a tendência? Quanto maior for o poder acumulado para fiscalizar e controlar as ameaças que assolam o mundo – sob a forma de tiranias –, mais a superpotência tende a se tornar exatamente aquilo que diz combater: um tirano pouco preocupado com o bem-estar mundial. Ou seja: quanto mais você utiliza as armas do inimigo, mais parecido com ele você fica. Se Ron Paul errou feio ao “simpatizar” com os últimos acontecimentos na Crimeia, devemos reconhecer que ele brilhantemente previu as consequências (com legendas!) de ações baseadas no ímpeto globalista-unilateral. Tal ímpeto centralizador é implacável e não admite exceções – e aí entra a segunda surpresa: Obama afirmou ser a exceção, e vocês podem imaginar o resultado.
De tudo isto, parece razoável dizer que os EUA e Rússia são os dois lados de uma mesma moeda – já que não só o ímpeto centralizador aparece em ambos, mas também o total desrespeito a legitimidade procedimental -, onde há uma alimentação mútua na medida em que os abusos de um acabam autorizando ações necessárias para enfrentar o “mal maior” que o outro representa. Se há diferenças entre estas duas redes de poder, isto não se deve aos bons sentimentos dos articuladores que encarnam o ímpeto centralizador – seja ele multipolar ou globalista-unilateral -, mas se deve, entre outros fatores, a internalização cultural, por parte da população, do raciocínio procedimental anteriormente descrito (o povo americano absorveu, em grande medida, a idéia constitucionalmente inscrita de limitação do poder). Note, aliás, como o ímpeto centralizador sempre precisa desrespeitar a legitimidade procedimental: se os estímulos políticos sistematicamente tendem à centralização e os procedimentos ao menos tentam restringir o livre fluir das redes de poder, é natural que tanto as regras do jogo quanto os objetivos das regras sejam totalmente deturpados com o passar do tempo.
Tá. Então, o que sobra? Ah, esse é um tema para outro texto. De qualquer forma, comece a refletir sobre o que fazer. Recomendo que você comece dando uma olhada aqui, aqui, aqui e aqui.