Quem estuda a política externa brasileira foi surpreendido por declarações recentes do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), Armando Monteiro. Ao afirmar que “[a] negociação de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos é uma “aspiração” do governo brasileiro”, o discurso do ministro não só vai de encontro ao que se espera de um governo do PT, que sempre acusou tucanos de serem submissos aos interesses americanos, mas também se choca com a histórica rejeição da nossa política externa a qualquer política de promoção do livre-comércio no mercado internacional.

A política externa brasileira age assim porque sempre foi uma ponta de lança do “projeto de desenvolvimento” do país. Como tal, se pautou ideologicamente pelo “nacional-desenvolvimentismo cepalino”, defendendo uma política econômica baseada na “industrialização pela substituição de importações” – ou seja, defendiam a todo custo que o governo protegesse grandes indústrias locais da competição externa, sendo este um passo necessário para o desenvolvimento da economia brasileira.

O fetiche da nossa política externa pelo desenvolvimento, porém, vai muito além da questão econômica. Ela parte de ideário de que o Brasil deve ter, naturalmente, um papel destacado no mundo, um papel de potência. Isto nos ajuda a entender, por exemplo, tentativas infrutíferas de conquistar para o país uma cadeira como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (CSNU).

Desenvolvimento e autonomia: mantra da política externa de Getúlio Vargas aos militares

A política externa do Brasil sempre se guiou a partir de dois paradigmas: desenvolvimentismo e autonomia. Paradigmas que supostamente levariam o país aos campos elísios de uma potência desenvolvida com capacidade e direito de interferir no mundo. Ideais que enxergam o mercado com ceticismo, entendido como uma ideia do ‘ocidente rico’ para minar a nossa autonomia em favor dos interesses ‘imperialistas’ e das grandes empresas multilaterais. Mesmo quando a política externa do Brasil é entendida pela lógica da autonomia, o livre-mercado é antagonista dos objetivos históricos do Itamaraty.

Desse modo, a inserção internacional brasileira foi e é nacionalista e estatista ao centrar-se no projeto de criação do grande leviatã tupiniquim. Já nos anos 30 isso fica claro com a política nacionalista e autoritária de Vargas, que se manteve em linhas gerais no período democrático dos anos cinquenta e atingiu seu ápice na Política Externa Independente (PEI) durante o governo Quadros/Jango. Nessa política se expressa o desejo do governo brasileiro de dar autonomia ao seu projeto de desenvolvimento. Com o golpe militar, formula-se o ‘Pragmatismo Responsável’ que incorpora aos valores da PEI uma noção paranóica de segurança nacional, típica de governos autoritários.

Os militares saíram e a democracia chegou, mas quase nada mudou

O processo de redemocratização nos anos 80 levou somente a uma reformulação dos mesmos valores de desenvolvimento e autonomia que guiaram a política externa em anos anteriores. A visão nacional-desenvolvimentista continuou firme e forte no Itamaraty durante o período democrático, como se pode ver em muitos dos seus famosos articulistas contemporâneos (Samuel Pinheiro Guimarães e Celso Amorim, por exemplo).  Mas agora, para alcançar os objetivos, ficou clara a necessidade de maior proatividade internacional do Brasil, em oposição à política defensiva articulada tanto pela PEI, de João Goulart, quanto pelo pragmatismo responsável, dos militares.

O projeto nacionalista e estatista reconheceu a necessidade de ir além do mercado interno, entendendo como necessária uma “autonomia pela participação“. Neste período, o Brasil liderou (com sucesso ou não) a criação do Mercosul, criou a proposta da Área de Livre comércio Sul-americana (ALCSA) durante o governo Itamar Franco, criou a Unasul e a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC). O interesse pela região sulamericana deve-se à autoimagem brasileira como ator hegemônico na América do Sul, enxergando em nossos vizinhos pouca capacidade de gerar constrangimentos para o Brasil, garantindo amplos mercados aos produtos brasileiros. Assim, os acordos na América do Sul mantinham intacta a autonomia tão prezada pelo Itamaraty e, ao mesmo tempo, expandiam a capacidade de desenvolvimento do país.

A simpatia por acordos com os vizinhos sulamericanos não se estendeu ao Acordo de Livre Comércio das Américas, conhecido como ALCA, principalmente por conta da participação dos Estados Unidos no tratado. Os tomadores de decisão da política externa brasileira entendiam que na ALCA o Brasil perderia a sua autonomia, ficando exposto desmandos estadunidenses. Por isso, e ao contrário do que dizem muitos articulistas da esquerda brasileira, há um amplo consenso dos estudos sobre o tema de que em nenhum momento o governo FHC desejou a criação da ALCA e esta falta de vontade foi fundamental para o fracasso das negociações. Até a vitória de Chávez em 1998, o Brasil foi o único ator importante a se opôr acordo de livre-comércio. De maneira discreta e sofisticada, o Itamaraty minou qualquer avanço da negociação até o fim do prazo dado pelo Congresso Americano ao Presidente Bill Clinton, soterrando a proposta.

Lula continuou e ampliou a política externa desenvolvida no final do período FHC, focada na ampliação das relações com os países ‘emergentes’ e do Sul. Prosseguiu-se o foco da política externa dentro das históricas matrizes: desenvolvimentismo e autonomia. A tão famosa e elogiada política externa de Lula não é, em essência, distante das bases históricas da política externa brasileira que também foram seguidas por FHC, Vargas e pelos militares. A força institucional do Itamaraty impede que a política externa brasileira se afaste em demasias das teses consolidadas em seu corpo burocrático.

No Dilma 1.0 se viu uma ressaca de um forte ativismo presidencial tanto por parte de Lula, quanto de FHC. Apesar da sua inexpressividade e vacilação, a sua política externa continuava mantendo os padrões do governo Lula, com o fortalecimento da relação com o BRICS com, por exemplo, a criação do Banco dos BRICS. É por isso que o discurso de hoje por parte de membros do Dilma 2.0 surpreende.

Dilma 2.0 aponta que, no comércio internacional, o discurso do governo é o mais liberal em décadas

A fala recente do ministro Armando Monteiro mostra uma mudança drástica da política externa brasileira, antagônica ao paradigma da inserção internacional brasileira, ecoando lampejos dos discursos mais liberais feitos em quase um século. Dutra, Castelo Branco, Collor e, agora Dilma formam o seleto grupo de governos que manifestaram a necessidade de maior liberdade comercial com os Estados Unidos. O discurso da política comercial em Dilma 2.0 é o mais pró-mercado desde Collor e, como Collor, realizado por um governo desacreditado tanto pela população, quanto pelo congresso.

Por isso, embora difícil resultar em alguma coisa concreta, esse parece ser mais um sinal da escolha política feita por Dilma (talvez forçosamente e com algum desgosto) de abraçar a ortodoxia em oposição à heterodoxia da nova matriz econômica. O programa econômico do PT fracassou e foi soterrado é, possivelmente, o mais importante dito na afirmação mais liberal dita por um representante brasileiro em missão exterior em quase três décadas.

Não se engane: o Levy veio pra ficar.

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