Por Pedro Menezes

 

Muitos dos defensores da liberdade conveniente argumentam que a defesa apaixonada do fim da Guerra as Drogas, da tolerância ou da igualdade de tratamento para casais LGBT jamais foram defendidas pelos liberais clássicos, sendo assim extensões modernas e absurdas da tradição liberal. O erro inerente a essa análise é simples: ela transplanta questões modernas que envolvem o problema dos direitos civis para o século XIX, quando o debate sobre questões de gênero não existiam e a Guerra as Drogas ainda esperaria 200 anos até ser declarada por Richard Nixon. O que não se vê, nesse caso, é que em quase todos os debates análogos que foram travados em seu tempo, os liberais clássicos se posicionaram de forma corajosamente progressista, questionando as instituições reinantes com argumentos considerados radicais e subversivos a sua época. Se hoje os clássicos já não são considerados progressistas radicais, o motivo é simples: a coragem que lhes deu a vitória em muitas das batalhas de ideias foi abandonada dos liberais no fusionismo do século XX, quando todo e qualquer progressismo foi colocado em segundo plano em nome do combate ao socialismo. Quando as reformas liberais já haviam reformado diversas instituições e a ameaça comunista ganhou corpo político e teórico, os liberais do século XX prostraram-se com medo do futuro, cedendo à esquerda sua imagem de “partido da mudança e da vanguarda”.

Um bom exemplo do progressismo dos clássicos está em Joaquim Nabuco, o maior dos abolicionistas brasileiros e um liberal convicto. O direito ao divórcio foi defendido ardentemente por Nabuco, em oposição à igreja e aos conservadores de sua época. A questão, que hoje parece ponto pacífico até mesmo em ambientes religiosos, passava longe de ser consensual: o direito ao divórcio só foi contemplado no Brasil durante os anos 70 do século XX.

O radicalismo progressista de Nabuco não pára por aí. Em uma ideia que ainda parece absurda ao liberalismo ralo (minha tradução livre do thin libertarianism) de muitos que xingam este Mercado Popular: Nabuco defendeu abertamente a reforma agrária através da distribuição das terras trabalhadas pela escravidão. Afinal, se o direito à propriedade de John Locke nasce através da mistura do trabalho humano à terra, os senhores de escravos deveriam,como forma de reparação aos escravos libertos, perder suas terras e os frutos auferidos através do trabalho forçado.

John Locke, aliás, foi um pioneiro do progressismo liberal e em 1689, um tempo em que a Igreja era mais poderosa do que todos os Estados do mundo, ousava dizer: “Por isso, não cabe ao magistrado o uso da força para punir tudo o que se considera como pecado contra Deus”. A posição de Locke, hoje aceita até mesmo pelos ditos “liberais conservadores”, é marcadamente anti-conservadora: ele utiliza a razão para formular princípios e definições abstratas da justiça e combater instituições que acumulavam anos de funcionamento pleno, defendendo a reforma radical contra as estruturas de poder vigentes.

Até a crítica aberta à Igreja Católica enquanto instituição, uma das marcas mais gritantes da tradição clássica, soa herética em certos círculos liberais. Muitos daqueles que defendem liberdades civis com ardor no século XXI se negam a criticar cardeais e pastores, talvez os mais influentes promotores de políticas públicas autoritárias, como o proibicionismo. Malafaias e Felicianos são poupados por medo de qualquer confusão com as críticas vindas da esquerda contra eles; o papa Francisco I, por sua vez, só é moderadamente criticado por conta de uma ou outra crítica às ideias de livre mercado.

A relação entre os clássicos e a Igreja, porém, sempre foi tensa – começando com aqueles que criticavam abertamente o cristianismo como doutrina e chegando em outros, como Lord Acton, que de forma mais sensata focavam no aspectos anti-liberais da alta hierarquia da Igreja. Em seu livro “History of Freedom and other Essays”, Acton formula uma crítica que hoje provavelmente seria relegada como esquerdismo disfarçado, e não esconde períodos como a Inquisição, nem deixa de criticar os momentos em que a Igreja “preferiu apelar aos legisladores, e não as massas” ou “jogou a sua sagrada influência ao âmbito das autoridades”.

A mais famosa citação de Acton, aquela em que ele discorre sobre o poder que corrompe e o poder absoluto que corrompe absolutamente, foi feita justamente em um debate com o Bispo Creighton. Acton defendia uma ideia que hoje, felizmente, soa óbvia, mas revolucionária para o seu tempo. Ele, ao contrário do bispo, negava que o estatuto divino da Igreja pudesse ser usado para justificar ou relativizar seus crimes.

Lorde Acton era um admirador do cristianismo e da Inglaterra e, justamente por isso, defendia que os crimes de papas e reis fizessem com que eles fossem “pendurados pelo pescoço, por razões óbvias de justiça, e pendurados ainda mais alto, em nome da ciência histórica”. Postura similarmente oposta pode ser vista em Rodrigo Constantino, citador contumaz de Acton e presidente do Instituto Liberal, que raramente publica críticas à Igreja ou aos incontáveis crimes de guerra dos Estados Unidos. E quando o faz, não deixa a timidez de lado, sempre relativizando e citando absurdos contemporâneos ao lado das virtudes de papas e “founding fathers” que morreram há séculos.

O tema da tolerância é outro que sumiu do discurso de muitos ditos liberais, também deixa claro o modo como a tradição clássica era marcada por um espírito progresista. A citação de John Locke que fiz alguns parágrafos acima está justamente na sua “Carta sobre a tolerância”. James Mill, John Milton e muitos outros clássicos escreveram sobre o tema – e isso pra não falar em Voltaire, nome controverso, mas que tem entre suas obras mais importantes um “Tratado sobre a tolerância”.

Ludwig von Mises, um dos últimos clássicos e um dos mais famosos dentre o público brasileiro, dedica um capítulo inteiro ao tema em seu “Liberamus”, e logo na primeira parte, que trata sobre os fundamentos de uma política liberal. E não tratavam apenas da intolerância através da lei, mas da íntima relação entre a aceitação de pensamentos e estilos de vida alternativos, da defesa da diversidade e do cosmopolitismo.

Mises, por exemplo, inicia o já citado capítulo admitindo que, em sua época, a perseguição institucionalizada pela lei não era a regra na Europa Ocidental, onde a ideia de levar heréticos para a fogueira já era amplamente tida como absurda e impensável. Mas ele vai além e coloca a postura tolerante como essencial ao liberal sincero:

“O liberalismo, entretanto, precisa ser intolerante com todo o tipo de intolerância.  Se se considera a cooperação pacífica entre todos os homens como a meta da evolução social, não se pode permitir que a paz seja perturbada por sacerdotes e fanáticos. [O] que impele o liberalismo a exigir e a conceder tolerância não é a consideração ao conteúdo da doutrina que se quer tolerada, mas a consciência de que apenas a tolerância pode criar e preservar as condições para a paz social”

É assustador que, menos de um século após a publicação do livro, a relação entre o liberalismo e a tolerância tenha regredido à simples discussão sobre não-iniciação de agressão. Discursos de ódio não violam liberdades negativas, desde que se mantenham apenas como discursos, mas um liberal coerente não deixa de lado a consciência de que o preconceito é contraproducente e deve ser combatido por todos aqueles que acreditam numa sociedade regida por interações pacíficas entre indivíduos. A paz, essencial para a emergência de relações voluntárias, depende da aceitação de diferentes etnias, posições políticas, religiões, estilos de vida ou identidades de gênero. Não se trata apenas da ausência de agressão, mas também da ausência de chauvinismo.

 

 

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