Ah, os liberais dinheiristas… Creem na superioridade do livre mercado e, por isso, o imaginário desses reaças não vai além da acumulação de alguns trocados. Pensam na filosofia política de uma maneira essencialmente economicista. Passam os seus dias refletindo sobre como tornar a sociedade mais rica e esquecem que dinheiro não é tudo.
Aviso ao leitor: o raciocínio acima é eminentemente falso. Mas não é difícil compreender a sua origem: o pensamento econômico liberal, que é apenas uma parte de um edifício filosófico tão imenso quanto mal interpretado, se inicia em Adam Smith e sua investigação sobre a Riqueza das Nações. O liberalismo vulgar que é amplamente discutido em palanques universitários pelo mundo parou na Escócia de 1776, e dificilmente vai além do reconhecimento da liberdade de mercado como condição necessária para o desenvolvimento econômico. E parece mesmo superficial uma filosofia política baseada unicamente na acumulação de riqueza. Os erros desta simplificação são muitos, mas não é difícil identificar os mais graves: (i) os séculos de discussão das ideias liberais produziram muito mais do que um receituário de políticas econômicas; e (ii) os liberais não ignoram problemas como a felicidade, os valores morais e demais dilemas internos do homem, mas apenas os discutem de uma forma um tanto particular, embora essencial para aqueles que não ignoram os mais básicos direitos humanos.
E qual seria então o entendimento liberal sobre os valores mais profundos que regem a vida humana? Quem lhes responde é Ludwig von Mises, um dos grandes pensadores do século XX:
“[O]s críticos que exploram este vazio mostram apenas que possuem um conceito muito imperfeito e materialista dessas necessidades superiores e mais nobres. As políticas sociais, com os meios de que dispõem, podem tornar os homens ricos ou pobres, mas nunca conseguirá torná-los felizes ou satisfazer seus anseios íntimos. Aqui falham todos os expedientes externos. Tudo o que as políticas sociais podem fazer é remover as causas externas da dor e do sofrimento. Podem promover um sistema que alimenteo faminto, vista o nu e abrigue o sem-teto. Felicidade e contentamento não dependem do alimento, da roupa e do abrigo, mas, sobretudo, do sonho que se acalenta no íntimo. Não é pelo desdém aos bens espirituais que o liberalismo se concentra, exclusivamente, no bem-estar material do homem, mas pela convicção de que o que é mais alto e profundo no homem não pode ser tocado por qualquer tipo de regulação externa. O liberalismo busca produzir apenas o bem-estar exterior, porque sabe que as riquezas interiores, espirituais, não podem atingir o homem de fora, mas somente de dentro, de seu próprio coração. O liberalismo não visa a criar qualquer outra coisa, a não ser as precondições externas para o desenvolvimento da vida interior. Não deve haver dúvida de que o indivíduo relativamente prósperodo século XX pode satisfazer suas necessidades espirituais mais prontamente do que, digamos, o indivíduo do século X, que não podia livrar-se nem da ansiedade de viver com o pouco que tinha para sua sobrevivência, nem dos perigos que o ameaçavam, provenientes de seus inimigos.”
O que Mises diz, em uma versão resumida, é o seguinte: felicidade, sonhos, amor e todos os outros “alimentos da alma” não são questões políticas. Não é a organização do Estado ou o sistema de produção material que definirá, sozinho, o estado de espírito de um ser humano. Somos um tanto mais complexos do que isto, e o exorcismo dos nossos demônios internos é um processo individual e extremamente particular, que não pode ser coletivizado e nem resolvido através de políticas governamentais.
Existe, porém, uma relação indireta entre a abundância material proporcionada pelo livre mercado e a saciedade dos nossos desejos mais profundos: Quanto mais rica é uma sociedade, mais variadas são as ferramentas e opções disponíveis para que o indivíduo alcance a sua “paz interior”. Para falar do meu exemplo pessoal, cito duas ferramentas que provavelmente estão próximas de você neste exato momento: o celular e computador, dois aparelhos cada vez mais acessíveis para a imensa maioria dos brasileiros, ricos ou pobres. Eu, baiano radicado em São Paulo, tenho nesses dois aparelhos meios que uso para falar com a minha família. Durante séculos, esta foi uma dificuldade que afligia imigrantes de todo o mundo. Sair da sua cidade natal significava, necessariamente, abandonar o contato regular com seus familiares, limitando-o a algumas cartas, quando muito. Cultivar uma boa relação com a sua família e ter nela um conforto emocional não é algo que tenha muito a ver com a acumulação de riqueza do mundo em que vivemos. Mas o contato regular proporcionado pela telecomunicação moderna ajuda, e muito, nesse processo. E hoje, imigrantes de todas as idades, etnias e origens podem ouvir a voz das suas mães em uma frequência inimaginável há algumas décadas.
Por mais que se tente negar, a acumulação de riqueza pode não apenas aproximar famílias, mas também fazer com que o tratamento de esgoto deixe de ser considerado um luxo burguês e permitir que milhões de pessoas tenham acesso a livros e ideias que jamais chegariam às suas mãos sem uma complexa e descentralizada divisão do trabalho. Seria absurdo dizer que a riqueza é uma condição necessária ou a única para a saciedade da alma humana, mas igualmente absurdo seria negar que o bem-estar material de um indivíduo aumenta as suas opções na sua eterna busca pela felicidade.
Caso você não tenha se convencido do meu ponto, peço que leia o manifesto deste Mercado Popular, que traz uma lição importantíssima: o individualismo (ao menos da forma como o enxergamos) não nasce na ideia de que todos devem ser livres para ganhar mais e mais dinheiro e mantê-lo nos bolsos, mas pelo reconhecimento da diversidade humana, das circunstâncias únicas e excepcionais presentes na mera existência de cada individuo. Ser individualista é defender a autonomia de cada um na procura do que lhe faz bem, desde que para isso não se atinja a liberdade de terceiros. O individualismo liberal está no gênio empreendedor do bilionário Steve Jobs e na reclusão espiritual do hippie californiano. As escolhas feitas por indivíduos para saciar a sua alma não devem ser coletivizadas. O individuo é um indivíduo; e é um… indivíduo. O amor é livre. And that’s it.
A provocação do título deste artigo é clara: enquanto os liberais são, injustamente, acusados de basear as suas ideias políticas em um dinheirismo quase psicopático, a imagem geral de marxista é justamente oposta. O socialismo, seja qual for a sua vertente, seria uma doutrina humanista e suas ideias econômicas seriam apenas a antessala de um mundo lindo, em que a produção de riqueza é um detalhe que ficaria para trás em nome de valores humanitários. Nada mais falso. E explico:
Karl Marx, sem a menor dúvida, foi um dos grandes gênios do século XIX, e analisou um dos problemas sociais mais gritantes e onipresentes que se tem notícia: a exploração agressiva praticada por quem detém o poder político e econômico sobre aqueles que nada têm além do próprio corpo. Sua obra tem diversos problemas, que já foram exaustivamente discutidos por gente muito melhor do que eu, mas creio que a origem de muitos deles está no uso de um conceito válido (a luta de classes) para analisar todo e qualquer aspecto da existência humana.
Para Marx, a luta de classes não é apenas o motor da historia, mas uma dinâmica social que se faz presente em toda e qualquer ação ou relação humana. O barbudo só conseguia observar conceitos como a felicidade e religião através de sua lupa ultrapolitizante, transformando-os em meras ferramentas da classe dominante. A tradição marxista enxerga a revolução não apenas como forma de aumentar o bem estar do proletariado, mas como uma redenção quase religiosa. “Elimine as barreiras de classe e todos serão felizes. O estado da alma humana está diretamente relacionado ao modo como são produzidas as sandálias Havaianas.” Por mais que se enfeite o argumento, esta é sua essência.
Não é a toa que os sucessores de Marx tenham transformado o cinema, a educação, a arquitetura, a cultura e até mesmo a linguagem em instrumentos de “conscientização social”. A União Soviética chegou a criar o realismo socialista, estilo literário extremamente influente no início do Século XX, que buscava transformar romances em mera propaganda das maravilhas comunistas.
Poucos homens simbolizaram tão bem esta noção patológica da existência humana quanto Ernesto Guevara de la Serna, o “Che”. O guerrilheiro argentino, que durante alguns anos comandou o abatedouro a prisão de La Cabaña, reiterou diversas que não precisava saber se os seus fuzilamentos eram justos, mas apenas se eram necessários. A utopia revolucionária ultrapassa e politiza todo e qualquer julgamento moral, e assim o genocídio deixa de ser um genocídio, transformando-se na construção de um novo mundo e um novo homem, muito diferente daquele seu vizinho gordo que morre de rir quando assiste o Faustão. E por mais absurdo que pareça, esse raciocínio continua vivo no Brasil do século XXI, em que a jornalista Cynara Menezes, da Carta Capital, acusa a direita (ah, a direita, essa malvada) de “tentar reduzir Che a um assassino, como se o contexto, uma revolução, não justificasse mortes”. (Acreditem: a transcrição é literal e data do ano de dois mil e sete, tendo sido republicada em dois mil e treze. Dois. Mil. E. Treze.)
Ainda mais clara foi a declaração de Eric Hobsbawm à insuspeita BBC, em que ele admite que o genocídio comunista do século XX seria perfeitamente justificado caso a Revolução internacional e irrestrita se concretizasse. Segundo contas moderadas e aceitas em quase todos os círculos não-marxistas, foram cerca de cem milhões de vidas humanas. O próprio Hobsbawm admite que o número chega às dezenas de milhão. E ainda assim, tudo isso se transformaria em mero detalhe caso as suas ideias políticas e econômicas se concretizassem.
O pensamento liberal começa no desenho de uma linha divisória entre o que deve ser decidido pelo processo político e o que ficará sob a responsabilidade do individuo. Esta linha varia entre o anarquismo de Hoppe e o social-liberalismo de Merquior, mas ela sempre deve ser clara, bem definida e rígida o suficiente para que decisões de foro interno não sejam coletivizadas. O individuo precede a sociedade, e devemos reconhecer isto antes de começarmos os debates acalorados sobre como resolver os problemas sociais específicos.
A tradição marxista, por outro lado, começa no reconhecimento de uma dinâmica social que exclui aqueles que não detêm o poder. Ela começa no coletivo, e para a redenção dos grupos oprimidos, acredita que tudo pode ser válido. Essa historia de reconhecer que todo individuo é único e respeitar a diversidade existente entre eles é um mero detalhe, que pode ser relativizado sem o menor problema caso a elite revolucionária a considere como um empecilho para o progresso. Tudo se submete a uma utopia econômica muito específica e controversa, tudo se politiza e nada deve ser colocado a frente da Revolução.
É uma pena que Marx, Hobsbawm, Cynara e Che Guevara só pensem em dinheiro. E de forma muito mais cruel do que o Rei do Camarote.
Referências de citações: