Por Mano Ferreira
Um dos conceitos de idioma é “expressão própria de um grupo”. Nesse sentido, eu posso me referir à existência de um idioma liberal, outro conservador e um terceiro da esquerda. Cada um deles possui um léxico específico, ou seja, um conjunto de palavras que lhe é próprio, com sentidos associados específicos a cada vernáculo. Há também parônimos, aquelas palavras cuja escrita ou pronúncia se assemelham, mas o sentido distoa por completo, podendo chegar ao caso dos anti-conceitos (aqueles que impossibilitam o diálogo diante de tanta confusão semântica).
Aproveitando a proximidade da palavra idioma com a noção de nacionalidade, vou propor uma metáfora. Imagine que cada um dos idiomas representa um país no contexto do comércio internacional. Imagine também que cada entendimento entre os falantes dos diferentes países é semelhante a uma troca voluntária, a compra ou a venda de algum bem ou serviço.
É bem difundida entre os liberais a ideia de que o comércio cria riqueza, que é um jogo no qual todos os participantes saem ganhando. O ponto é simples: como os seres humanos são diferentes entre si, é natural que haja diferentes aptidões para diferentes tipos de atividades; desse modo, há uma tendência à especialização do trabalho que faz com que uma pessoa se torne mais produtiva em uma função primeira, enquanto outra se torne mais produtiva em uma outra função segunda. Ilustrando a situação: enquanto João costura 10 bermurdas, Maria costura apenas 5; mas enquanto Maria constrói 10 banquetas, é João quem constrói apenas 5. Nesse cenário, se cada um produzisse suas próprias bermudas e banquetas, tanto João quanto Maria perderiam o dobro do tempo do que num segundo cenário, se escolhessem trocar as bermudas feitas por João por banquetas feitas por Maria, se escolhessem cooperar. Nesse caso, os dois ganhariam mais tempo livre de suas vidas, os dois sairiam ganhando.
O princípio se aplica a trocas em todos os níveis, sejam feitas na mesma rua ou em continentes diversos. Só que quando os produtos atravessam fronteiras, enfrentam barreiras alfandegárias. Em outras palavras, impostos encarecem o material, retiram a competitividade, diminuem a prosperidade e, em último efeito, reduzem o tempo livre na vida de Joãozinho e Mariazinha. Essa ideia é crucial na defesa do liberalismo econômico: acordos de livre comércio são instrumentos extremamente eficientes de criação de riqueza e prosperidade. Há quem defenda a submissão de acordos à existência de reciprocidade entre as partes. Em geral, liberais defendem a abertura comercial sob qualquer condição, inclusive se ocorrer unilateralmente.
É curioso que tantos admiradores da liberdade econômica tenham dificuldade de aplicar o mesmo princípio no âmbito intelectual
Acho curioso observar que tantos admiradores da liberdade econômica tenham dificuldade de aplicar esse mesmo princípio no âmbito intelectual, no mercado das ideias. É muito comum nos depararmos com pessoas que se identificam como liberais e também se consideram mais racionalistas, como se o fato de terem refletido um pouco mais que a média a respeito de economia fizesse desprezíveis os demais seres na Terra, simples ignorantes com os quais não vale a pena trocar ideias e nada se tem a aprender. A chance desses sujeitos caírem no conto da arrogância fatal, como bem alertava Hayek, é próxima de estratosférica.
O ponto é que, a partir dessa arrogância, as pessoas encastelam-se em seus idiomas. Transformam expressões – como, sei lá, meritocracia e individualismo – em verdadeiras trincheiras do pensamento. Aqui, a escolha por uma palavra bélica não foi à toa. Trincheiras remetem a estados militarizados, nacionalistas, sempre acompanhados de altas taxas de alfândega. Se você não suporta a ideia de abrir mão do termo “propriedade privada“, por exemplo, é provável que esteja aumentando os tributos para o entendimento de sua ideia por parte de um falante do “idioma da esquerda” – é uma postura que aumenta as barreiras que impedem a adequada compreensão de nossa perspectiva. Essa forte inflexibilidade quanto ao uso de determinados termos é um indício claro de nacionalismo idiomático.
Assim como o nacionalismo político, o idiomático restringe o intercâmbio. Cada exigência linguística supostamente intrasponível é um tributo a mais na alfândega. E assim como muitos tributos cerceiam a oferta de produtos – podendo até gerar crises de desabastecimento -, o bloqueio do discurso restringe o acesso a novas ideias, o que dificulta a inovação e o empreendedorismo intelectual – ironia das ironias em se tratando de um sujeito que, em tese, se considera racionalista: é provável que em pouco tempo sua mente vire uma espécie de Cuba, sem dinamismo, um espaço com carros bonitos, mas antigos, ineficientes e agora altamente poluidores. No lugar dos carros cubanos, me refiro às ideias desatualizadas.
A competição, o intercâmbio e a diversidade são superiores – em ética e resultados – ao monopólio, ao isolamento e à homogeneidade. Isso também vale para o âmbito do pensamento. É preciso estar sempre em contato com outras perspectivas epistemológicas, submeter as próprias ideias a novos exames críticos e buscar, nos pensamentos alheios, aquilo que melhor contribui para a evolução de nossos próprios pensamentos.
Se quisermos expandir nossas ideias, precisamos expandir o nosso idioma. Só que a expansão dos idiomas não é própria aos puramente racionalistas, mas aos poetas. O escritor moçambicano Mia Couto descreve o ofício do poeta como o reencantamento do mundo através da criação de novas narrativas. Segundo ele, a ampliação de um idioma é resultado de uma trajetória com três etapas:
(1) Uma vez que somos feitos de histórias, é preciso primeiro ouvir as vozes dos outros e se apaixonar por suas histórias;
(2) para entender o mundo como algo diferente do nosso próprio reflexo no espelho, devemos imaginar a nós mesmos habitando aquelas histórias;
(3) após habitar aqueles outros mundos, os escritores devem trazer de volta ao mundo real um pouco daquele encantamento sob a forma de novas narrativas.
O conselho de Mia Couto me lembra uma consideração de Ortega y Gasset em seu excelente ensaio A desumanização da arte, onde o filósofo espanhol recupera a etimologia da palavra autor: auctor, aquele que aumenta; como eram chamados os generais latinos que ganhavam, para a pátria, novos territórios. Nesse sentido, são autores aqueles liberais que ampliam o idioma liberal – jamais os que se mantém enclausurados a ele. É nessa perspectiva de ampliação idiomática que conecto a lembrança de Ortega aos exercícios de alteridade de Couto.
Existe uma gama de dificuldades intrínseca ao processo comunicacional – assim como no comércio exterior há custos de transação que são inerentes, como os preços de transporte. Sobre isso, nos lembra Fernando Pessoa:
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Como se vê, o caminho de contato com ideias e perspectivas alheias já é longo o bastante naturalmente. Não podemos nos permitir o luxo de ampliar artificialmente as dificuldades. Precisamos revogar as barreiras alfandegárias do discurso.