Por Matheus Assaf
Karl Marx foi um dos principais filósofos sociais do século XIX. Milton Friedman foi um dos principais economistas do século XX. É razoável classificá-los em espectros políticos opostos, e a avaliação normativa da economia de mercado dos dois é completamente diferente. Apesar disso, tanto Marx quando Friedman concordariam que a essência do sistema de mercado é a perseguição do lucro.
Qualquer aluno que já tenha estudado em alguma cadeira na universidade sobre a teoria econômica de Marx está familiarizado com o sistema D-M-D’. Essa é uma maneira de simplificar o que Marx entendia como a lógica do capital; o objetivo de um capitalista não seria produzir um bem, e depois ir ao mercado para trocar este bem por outros que ele necessita, mas sim investir o seu capital (D), na produção de algum bem (M), em busca de uma apropriação de mais valia, ou lucro (D+MV=D’). A lógica do capital é a acumulação crescente. Isto se daria essencialmente na exploração do valor produzido pelos trabalhadores envolvidos no processo, que necessariamente recebem como salário um valor menor do que foi adicionado por eles à mercadoria produzida.
Geralmente espera-se que Milton Friedman fale exatamente o oposto de tudo o que foi dito por Karl Marx, mas isso não é exatamente verdade sobre esta lógica do capital. É claro que, munido de uma teoria do valor e da distribuição diferentes, Friedman jamais chegou perto de conceitos como “mais-valia”. Mas ele, e boa parte dos economistas contemporâneos a ele, reforçou a ideia de que a lógica essencial do sistema de mercado é de D-M-D’. Friedman deixa isso bastante claro (de uma forma que só ele é capaz de fazer) em um artigo para a revista do NYT em 1970 chamado “The social responsibility of business is to increase its profits”.
A descrição de Friedman de uma corporação moderna neste artigo é algo como uma grande ferramenta que transforma D em D’, e a medida da qualidade da administração de uma empresa é somente a quantidade de lucro que ela produz, ou seja, a diferença entre D’ e D. Portanto, não se pode condenar uma empresa por poluir o ambiente, por exemplo, se isto for necessário para aumentar os lucros da corporação. As corporações não precisam ter aspirações altruístas, nem podemos pedir isto delas. É fácil conseguir entender a lógica do argumento tendo em vista a formação de economista de Friedman. O que ele argumenta é que, se a firma não opera no ponto em que o lucro é maximizado, por questões de interesse social, como evitar poluir o ambiente, ou por qualquer outra questão não relacionada à produção de lucro, o que está de fato ocorrendo é que os custos das ações de “interesse social” estão sendo pagas pelos acionistas, ou pelos consumidores, ou pelos empregados. Sendo assim, o gerente da firma não tem o direito de usar o dinheiro destes stakeholders para questões não relacionadas aos negócios; se o acionista (ou os empregados e consumidores) querem gastar seu dinheiro com questões sociais, eles teriam o direito de decidir individualmente como gastá-lo.
A conclusão vai ainda mais além, para algo que não só Friedman, como diversos liberais concordam, de que, se cada firma se preocupar apenas com a maximização de seu próprio lucro, no geral a sociedade estará melhor do que em qualquer outro cenário. Isto é, nada mais é de interesse social do que uma maximização egoísta do lucro da empresa.
Dito tudo isso, o meu argumento é que tanto Marx quanto Friedman estavam errados. O sistema de mercado não pode ser reduzido a D-M-D’. O mercado não é apenas uma ferramenta de busca por lucro, e aquelas firmas ou indivíduos que vão ao mercado apenas em busca de um D’ maior que o D inicial têm boas chances de ir à falência. Além disso, o comportamento estritamente maximizador de lucro por parte das firmas não necessariamente gera resultados sociais ótimos.
Primeiramente, o meu argumento não é que as firmas devam parar de se preocupar em fazer lucros. Pelo contrário, o lucro é o alimento da empresa, e sem ele a firma não pode pensar em responsabilidade social, afinal ela deixará de existir. Mas a questão fundamental é: quais são as maneiras de conseguir um aumento nos lucros? Por exemplo, conseguir boas relações com o governo é uma excelente maneira de aumentar os lucros. Dificultar o cancelamento de planos através de um serviço de atendimento de qualidade ruim também é uma maneira de evitar a queda dos lucros (um método muito utilizado no Brasil). Algum tempo atrás, foi notícia o método de uma empresa de telefonia celular que para aumentar o seu lucro, cortava ligações feitas a um preço fixo que duravam muito tempo. Todas essas são maneiras de uma empresa aumentar o seu D’, mas de forma nenhuma são medidas socialmente desejáveis, e, ainda mais, muitas vezes não são sequer medidas desejáveis para a própria empresa.
Poucos pensadores compreenderam melhor a essência de uma economia de mercado do que Adam Smith. Para apreciar bem como Smith compreendia o mercado, é importante juntar seus insights tanto no clássico “Riqueza das Nações”, quanto na sua “Teoria dos Sentimentos Morais”, mais negligenciada por economistas.
Alguns intérpretes de Smith encontram um enigma na relação entre estes dois livros. No segundo livro, Smith classifica a ação humana moral como fundamentalmente baseada no que ele chama de “simpatia”, ou a capacidade de um indivíduo de compartilhar o sentimento do seu próximo; na sua investigação sobre a “Riqueza das Nações”, quem atua pelo bem comum é o homem movido por interesses egoístas – e com uma ajuda da mão invisível dos mercados, que transformaria egoísmo em criação de riqueza. Então afinal, a moralidade está no comportamento egoísta, ou na capacidade de sentir compaixão e simpatia pelos outros?
O que estes intérpretes falham em perceber é que Smith não está defendendo o comportamento egoísta em nenhum momento. Sim, não é pela benevolência do açogueiro, mas sim pelo interesse próprio dele, que conseguimos a carne para o nosso almoço; mas não é no egoísmo do açogueiro onde o mercado possui sua essência, mas sim no comportamento de “simpatia” que o açogueiro é obrigado a ter, de forma a conseguir os seus lucros. A única forma de uma empresa conseguir lucros é através da capacidade desta empresa de vender seus produtos ou serviços para clientes; o único motivo para que alguém adquira um produto ou serviço desta empresa é a possibilidade de aquele produto agregar valor ao consumidor; como o valor é em essência subjetivo e particular, o que o mercado faz é obrigar que a empresa “calce os sapatos” dos indivíduos da sociedade (o comportamento moral de “simpatia” smithiano).
O lucro serve, neste sentido, como uma boa medida da criação de valor da sociedade. Uma empresa pode lucrar de forma direta ou indireta por criar valor para a sociedade. Entretanto, é interessante lembrar da “lei de Goodhart”, que diz que uma medida ao tornar-se uma meta deixa de ser uma boa medida. Uma companhia que abandona a sua meta de criar valor social para apenas aumentar seus lucros a qualquer custo, a longo prazo está destinada a perder seu mercado. A origem dos lucros não está no comportamento egoísta, mas sim na simpatia moral descrita por Smith.
A firma não deve atuar como uma simples maximizadora de lucro – a maximização do lucro na realidade é uma consequência de uma atuação correta da firma enquanto produtora de valor para a sociedade. Esta produção de valor pode vir de formas diversas, tanto como a produção de bens de qualidade, quanto a atuação em áreas de interesse social. Aumentar o lucro através de uma “exploração”, seja pela atuação conjunta do Estado, ou oferecendo salários muito baixos aos trabalhadores, ou não cumprindo promessas feitas aos clientes, etc, são maneiras de, a longo prazo, reduzir o lucro gerado pela empresa. A responsabilidade social dos negócios não é aumentar os seus lucros, mas criar valor para a sociedade.
Matheus Assaf é economista pela UFRJ. Seus principais interesses envolvem economia das instituições, economia política e métodos quantitativos. Venceu o Prêmio DSJ VIII, o que o levou a conferências na FEE e no Cato. Seus hobbies favoritos, fora ler sobre economia, são assistir westerns antigos e ouvir as músicas do Roberto Carlos.