Fabiano, protagonista de “Vidas Secas”, é um sertanejo que luta contra o clima, a coerção do Estado e a exploração do dono da terra. Sinha Vitória, sua esposa, também tem seus sonhos: deseja uma cama parecida com a de Tomás da Bolandeira, que apesar de ser uma pessoa culta, também morreu na seca. Os filhos do casal, contudo, são invisíveis. Na obra de Graciliano Ramos, eles são apenas o filho mais velho e o filho mais novo.

Durante muito tempo, as crianças na extrema pobreza no Brasil foram invisíveis. A partir do Bolsa Família, em 2004, os filhos e filhas dos diversos Fabianos e Sinhas Vitórias passaram não apenas a ter nome, mas também um registro social (NIS), um Estado que oferece visitas frequentes de equipes de saúde e que cobra a frequência escolar.

O Bolsa Família é a maior conquista social do Brasil desde a sua redemocratização e, por isso, deve ser protegido. Seu grande diferencial é a focalização e o baixo custo. Diversos estudos mostram seus impactos positivos sobre o emprego, a renda, educação, saúde e fecundidade.

O programa evoluiu ao longo do tempo criando um sistema de gestão e acompanhamento das famílias em tempo real e, também, um sistema de fiscalização e combate a fraudes. Por outro lado, necessita de expansão e melhorias. Os R$ 89, que podem chegar a cerca R$ 200 com o auxílio variável, possibilitam só as condições mínimas de sobrevivência.

Ainda existe uma antiga discussão, preconceituosa e sem evidência empírica, de que o Bolsa Família deixa as pessoas preguiçosas e não oferece porta de saída. O fato é que o programa obriga as pessoas a fazer uma escolha racional entre uma renda fixa para o resto da vida ou entrar no mercado de trabalho formal.

Por quê Fabiano, que também toma decisões racionais, iria escolher o emprego formal, com alto risco de interrupção, sobretudo para àqueles Fabianos que residem no sertão, ao invés uma renda permanente por toda vida? Será que a melhor porta de saída ao Bolsa Família não é exatamente fechar a porta? Garantir o benefício pelo resto da vida, cortando apenas em caso de morte ou opção do indivíduo? Talvez essa opção estimule as pessoas a se formalizar, tendo a garantia de uma renda mínima permanente ao longo da vida.

Em Vidas Secas, Fabiano era pessimista em relação ao futuro dos filhos, pensava que eles estavam destinados a serem vaqueiros. Mas Sinhá Vitória imaginava uma vida na cidade grande. Hoje sabemos que uma das formas mais eficientes de mobilidade social é através do investimento em capital humano. A manutenção do Bolsa Família para estas famílias mais pobres é uma garantia de que as crianças continuarão na escola e no programa saúde da família.

Fabiano se incomodava quando os filhos perguntavam demais, talvez quando a situação melhorasse, eles poderiam começar com “essa coisa de pensar”, pois no geral a ideia era sobreviver. O Bolsa Família garantiu a sobrevivência, agora eles podem, sim, pensar.

Qualquer discussão sobre Renda Básica no Brasil tem que passar, primeiro, pela garantia do Bolsa Família e modernização dos seus mecanismos. Diversos estudos da economia e neurociência tem demonstrado o poder de políticas públicas na primeira infância. O que os estudos do prêmio Nobel em economia James Heckman e seus coautores tem nos ensinado é que, além das condições genéticas, o ambiente social, a família e as experiências são fundamentais para o desenvolvimento cognitivo das crianças. Oferecer uma renda mínima para alimentação das gestantes e das crianças ao nascer pode ser visto como uma política para a primeira infância. Os efeitos serão duradouros no longo prazo.

É preciso entender que a extrema pobreza e a pobreza no Brasil são multifacetadas, regionalmente concentradas e afetam principalmente negros, mulheres e crianças. Não é razoável pensar apenas em um programa de Renda Básica Universal ancorado em uma possível reforma tributária, com um possível imposto sobre grandes fortunas, ou retirada de recursos do Fundeb, ou utilização de precatórios, etc. É necessário, primeiro, garantir que haverá o recurso para manter a rede de proteção social construída pelo Bolsa Família. Além disto, é preciso entender a fundo quem são os “invisíveis” que o auxílio emergencial revelou. Quantos receberam o benefício de forma indevida? Quantos estão na informalidade por opção, para não pagar impostos?

É fato que precisamos de um programa maior, que consiga atender ainda mais pessoas. Porém, o primeiro passo é garantir a visibilidade daqueles que foram invisíveis durante toda a história do Brasil: Fabianos, Sinhas Vitórias e seus filhos.

Compartilhar