Pérsio Arida e Eduardo Giannetti são dois nomes importantes do pensamento econômico brasileiro. Goste ou não do que dizem, eles muito provavelmente serão lembrados por décadas e influenciarão gerações, como hoje acontece com Eugênio Gudin, Celso Furtado ou Mário Henrique Simonsen.
Nos anos 80, quando era professor da PUC Rio, Pérsio teorizou uma maneira inovadora de quebrar a inflação brasileira. Uma moeda virtual circularia junto da inflacionada, mas estaria liberta dos mecanismos que geravam a inflação, substituindo-a posteriormente. Esse artigo, escrito com André Lara Resende, foi a base do Plano Real e a moeda virtual ganhando o nome de URV .
Giannetti não formulou um dos planos econômicos mais importantes da história do país, mas nem por isso sua importância deve ser subestimada. Chamado de “guru de Marina Silva” pela imprensa, nenhum intelectual teve tanta influenciável sobre a presidenciável nos últimos anos.
Com uma carreira como professor da USP, Cambridge e Insper, Giannetti é uma espécie rara na profissão de economista. Talvez fosse mais adequado chama-lo de pensador econômico, dado seu gosto por situar-se na fronteira entre filosofia e economia. Poucos economistas brasileiros, e se é que houve algum, tiveram tanto sucesso no mercado editorial, atingindo um público além da academia. A participação no debate público rendeu admiradores, como Caetano Veloso, mas também detratores como Guilherme Boulos e Rodrigo Constantino.
Pérsio Arida e Eduardo Giannetti tem uma semelhança na formação: ambos são ex-marxistas. Pérsio foi preso pela ditadura. Seu ato mais violento como militante comunista, punido com tortura, foi estender uma faixa na Avenida Nove de Julho, em São Paulo. Giannetti militou na Libelu, grupo trotskista de destaque nos anos 70 e 80. De lá, também saíram Miriam Leitão, Antonio Palocci, Luiz Gushiken, Reinaldo Azevedo, Clara Ant e diversos integrantes da elite brasileira nas últimas décadas.
O livro “Conversa com Economistas” reuniu entrevistas com os principais nomes da profissão no Brasil, de Celso Furtado a Roberto Campos, e fez a Pérsio e Giannetti uma mesma pergunta: o que está morto e o que está vivo em Marx?
As duas respostas são distintas, mas interessantíssimas. Giannetti é mais completo, analisa sistematicamente diversos pontos do pensamento de Marx, sendo extremamente crítico a algumas das bases mais importantes. Pérsio é pontual: discute a grandes falhas, como uma teoria do desenvolvimento, mas admira ambições do velho alemão.
Acho que a questão pode ser enfrentada em dois planos: o das ciências humanas como um todo e outro restrito à teoria econômica.
[D]o ponto de vista da teoria econômica stricto sensu tendo a achar que pouca coisa está viva. Não falo do Marx historiador, cativante e admirável, mas do Marx teórico. E a vida é pouca ou nenhuma porque não houve seguimento efetivo.
Marx é a única tentativa explícita de rompimento do individualismo metodológico, da afirmação de realidades ontologicamente existentes que determinam o comportamento individual sem que os agentes delas tenham conhecimento, uma sociedade na qual as relações sociais entre os indivíduos atomizados lhes aparecem autônomas.
Não há quem, tendo lido Marx, não tenha ficado com a percepção de que ali existe um veio fértil de reflexão, totalmente distinto da tradição neoclássica. Nada a ver com as leis de desenvolvimento, essa herança do século XIX, mas com uma percepção de que há algo profundo a ser explorado nas teorias do capital como valor dotado do atributo da autovalorização.
O fato é que lecionei vários cursos sobre Marx, refleti um bocado, mas nunca consegui elaborar algo que me fizesse sentido. Minha frustração é porque, por paradoxal que pareça, nunca consegui convencer-me de que [a ambição marxista com sua Teoria do Capital] trata-se de uma falsa promessa.
O que está errado é mais fácil de dizer do que o que está vivo (risos). O que mais me interessa em Marx atualmente são algumas passagens brilhantes nos Manuscritos de 1844 e nos Grundrisse sobre a alienação micro: o problema do indivíduo que só se sente ele mesmo quando não está trabalhando e que transfere para o consumo e a posse de bens posicionais a sua expectativa de realização humana, de justificação existencial.
O que me parece definitivamente morto em Marx é essa pretensão de ter descoberto o enredo secreto da história e, ainda por cima, de dar à sua filosofia da história um caráter normativo, como se houvesse um caminho para o qual as “leis históricas” apontassem o dedo. Poucos autores levaram tão longe quanto Marx o péssimo hábito de transformar tudo aquilo que eles desejam para o futuro da humanidade em prognósticos movidos a leis inexoráveis.
Um check-list de coisas mortas em Marx poderia incluir: a teoria do valor trabalho; a idéia de que a busca do conhecimento científico, inclusive na Economia Política, tem um caráter de classe; o economicismo grosseiro; as previsões sobre o fim iminente do capitalismo e sobre o uso do “tempo livre” pelos trabalhadores; o tratamento de questões ligadas a demografia e meio-ambiente; a arrogância descabida diante de povos e culturas não-ocidentais; o abuso do coletivismo metodológico, etc, etc.
Vivas estão certas descrições muito detalhadas que Marx fez das mudanças tecnológicas e do processo de trabalho de seu tempo, ainda que ele não tenha analisado corretamente a relação entre ciência e tecnologia, porque o que ele chamava de ciência era algo muito vago e indefinido.
Não há sentido em dizer, como Marx costumava fazer, que a primeira revolução industrial é resultado da revolução científica do século XVII ou da Mecânica newtoniana. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A termodinâmica que explica o funcionamento da máquina a vapor só foi criada depois da sua invenção. Watt fez a máquina a vapor sem saber como e por que ela poderia funcionar, na base da tentativa e erro. Foi só no final do século XIX, quando Marx já estava morto, que a ciência passou a ser diretamente relevante para a inovação tecnológica, em indústrias como a química e a eletricidade.
Outro ponto em que o pensamento de Marx ficou totalmente ultrapassado é na questão do capital humano. Ele via um mundo em que o trabalhador seria cada vez mais reduzido a um apêndice da máquina, a trabalho simples, homogêneo e mecânico. Mas o que acabou acontecendo foi a progressiva eliminação desse tipo de trabalho. Todo trabalho está se tornando, cada vez mais, resultado de investimento prévio, ou seja, capital humano. A “composição orgânica do trabalho” é mais importante que a do capital.
Em suma, tenho a impressão de que estamos apenas começando a rever o mobiliário conceitual herdado do marxismo. Uma coisa que eu me pergunto muito, atualmente, é se o capitalismo existe ou jamais existiu. Tenho sérias dúvidas.
Nós nos acostumamos a pensar nessa sucessão bem comportada de modos de produção, mas ainda faz sentido isso? Penso que foram ficções úteis durante certo tempo, mas talvez esteja na hora de buscar outras ficções, outros mitos organizadores do nosso descontentamento e mal-estar.
Duvido que ajude muito continuarmos sentados nesse mobiliário intelectual marxista, para não falar dessa verdadeira praga que é o hábito de tantos intelectuais brasileiros de personificar o capitalismo, como se ele fosse um agente dotado de vontade própria, como se ele agisse e perseguisse os seus desígnios inconfessáveis.
No meu tempo de faculdade, até uma epidemia de meningite refletia, “em última instância”, é claro, as “contradições do capitalismo”. Agora parece que é a vez do “neoliberalismo”. Será que existem pelo menos duas pessoas no mundo que têm exatamente a mesma coisa em mente quando falam em “capitalismo” ou em “neoliberalismo”?