Bernardo diz que escreveu seu livro por causa “daquela sensação de frustração que todo economista tem ao ver o país decidindo seus rumos sem saber direito o que está escolhendo”. Mas essa sensação parece surgir com mais força em sua carreira.

Apesar de dedicar boa parte do seu tempo à atividade de pesquisador na FGV de São Paulo, com equações complicadas e publicações que sequer seriam compreendidas pela maior parte dos brasileiros, o economista Bernardo Guimarães parece fazer questão de manter o contato com o público leigo. Não é raro – especialmente no Brasil – ver os mais respeitados pesquisadores e professores de economia saírem da academia para ocupar cargos de comando no governo ou na iniciativa privada. Em entrevista para a Folha, ele nega ter essa ambição, diz que “ajuda mais o país ensinando as pessoas”.

Bernardo completou seu Ph.D na Yale University, dos Estados Unidos, e de lá seguiu para Londres, onde foi professor da famosa London School of Economics and Political Science (conhecida como LSE), um dos centros de ciências sociais mais importantes do mundo, que já teve em seu quadro alguns dos pensadores mais influentes das últimas décadas, como Friedrich Hayek, Ronald Coase, Karl Popper e Amartya Sen. Desde que voltou ao Brasil em 2011, “ajudar o país ensinando as pessoas” parece ser um de seus objetivos.

Ao invés de lecionar apenas algumas matérias avançadas para alunos de mestrado e doutorado, ele decidiu também dar aula de Introdução a Economia aos alunos de primeiro semestre na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo; ainda criou uma versão mais simples do curso, que hoje é ministrado para alunos do ensino médio na cidade. Escreveu também três livros destinados ao público leigo, em linguagem extremamente simples. O último deles, “A Riqueza da Nação no Século XXI”, foi resultado direto de sua angústia com o modo como se discutiu economia no Brasil durante as últimas eleições presidenciais.

O título faz uma referência sutil a um famoso livro lançado no ano passado pelo economista francês Thomas Pikketty. As semelhanças, porém, ficam aí. Enquanto Piketty usou o título do mais icônico livro de Marx para escrever sobre distribuição de renda, Bernardo foi a uma fonte usualmente tratada como contraponto ao marxismo: Adam Smith, o escocês a quem se atribui a responsabilidade pelo estabelecimento da economia como uma área do conhecimento.

Adam Smith escreveu sobre a riqueza das nações, no plural; Bernardo foi ao singular e abordou a riqueza de uma nação específica em um tempo específico: o Brasil do século XXI. Lançado por apenas 8 reais na Amazon, o livro é constituído de três partes: a primeira, e menor, discute brevemente as ferramentas utilizadas pelos economistas para analisar o mundo; a segunda discute de forma mais ampla a questão brasileira, abordando temas como o papel do BNDES na economia, reforma política e política monetária com a responsabilidade de um bom pesquisador e a linguagem clara de um bom professor; no terceiro, e último, Bernardo discute as idas e vindas da economia política brasileira, contando casos da história recente do país para esclarecer a louca trajetória do país dos anos 90 a 2015.

Eu, que já conhecia o trabalho de Bernardo, confesso que me assustei quando soube da publicação de “A Riqueza da Nação no Século XXI” de forma independente, sem acompanhamento de uma editora profissional. Isso se reflete no resultado final, mas não prejudica a leitura, extremamente proveitosa para leigos e entendidos.

Apesar do lançamento tímido e da ausência de um acabamento editorial mais apurado, não demorou até que a imprensa também prestasse atenção no que há de mais relevante no livro: o conteúdo. Desde então, Bernardo assumiu o blog “Economia no Século 21” no site da Folha de São Paulo, e deve estrear em breve como colunista fixo no caderno de economia às sextas-feiras.

Algumas semanas atrás, publicamos neste Mercado Popular um capítulo de “A Riqueza da Nação no Século XXI”. Agora, batemos um papo com Bernardo sobre temas como crescimento econômico, desigualdade, corrupção e as lições que podemos aprender com faculdades públicas de ponta do exterior, como a London School of Economics, onde ele trabalhou.


Mercado Popular: “O Capital no Século XXI”, de Thomas Piketty, com a diferença de que o clássico para dar nome a sua obra foi “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Em entrevista recente, você disse que há também uma diferença no foco, já que você buscava entender como o Brasil poderia crescer, ficar mais rico, enquanto Piketty estudava como distribuir a riqueza produzida…

Bernardo Guimarães: Isso. Distribuição é um tema importante, mas as discordâncias entre propostas econômicas hoje não são fundamentalmente sobre isso.

Existe algum conflito entre crescer e combater a desigualdade?

Teoricamente, pode existir. Por exemplo, um programa de distribuição de renda maior requer mais impostos e estes, de modo geral, desestimulam a produção e as trocas. Mas não é isso que está em jogo no debate econômico brasileiro. Transferir renda para os mais pobres é importante, é o que defendo, mas seria possível fazer isso com um Estado muito mais enxuto que temos hoje.

Na dúvida, é mais importante crescer ou combater a desigualdade?

O mais importante é melhorar a vida dos mais pobres. Em princípio, tanto o crescimento quanto o combate à desigualdade servem a esse fim. Agora, centenas de milhões de pessoas saíram da pobreza nas últimas décadas (ou seja, deixaram de ganhar menos do que a linha da pobreza) e isso se deve primordialmente ao crescimento econômico. Na China, por exemplo, a desigualdade aumentou bastante, mas isso veio com uma grande redução na pobreza.

É possível orientar a política econômica do Brasil para que possamos atender aos dois fins?

Sim, sem dúvida. Precisaríamos de mais liberalismo econômico, de um estado mais enxuto, para que o setor privado possa criar e inovar. O aumento da produção e da produtividade é o que vai gerar maiores salários. E também continuar, mas aperfeiçoar, os programas de transferências para os mais pobres.

Não vale a pena ter uma grande quantidade de políticas sociais que não focam em quem é pobre. Isso atrapalha mais que ajuda. Políticas sociais focalizadas são bem vindas e podem ser conciliadas com um Estado mais enxuto.

A gente discute bastante sobre universidades públicas por aqui. O Brasil gasta muito com suas universidades estatais, com o gasto por aluno chegando a níveis nórdicos em alguns casos, mas o investimento não parece trazer tanto retorno em termos de produtividade, produção de patentes, destaque em rankings internacionais… Você acha que esse modelo de universidade pública acaba defasando e isolando a produção acadêmica do país?

Pelo que vejo em Economia, sim. Não conheço tão bem outras áreas. Dizem que os professores das universidades públicas ganham muito mal. Eu discordo. Muitos de fato ganham mal, mas outros muitos ganham muito mais que deviam. E não porque haja muita diferença entre os salários dentro da universidade. Na verdade, a diferença salarial é muito baixa.

Assim, o professor é contratado e pode ficar o resto da vida em seu emprego, mesmo sem publicar nada. Pelo menos em economia, muitos professores são “pesquisadores em tempo integral”, mas nunca publicaram nada decente, ou não publicam há décadas e passam o tempo todo fazendo consultoria. A única contribuição desses para a universidade são as aulas (muitas vezes, ruins). Esses ganham muito mais que deveriam ganhar.

Outros de fato fazem pesquisa, publicam artigos. Esses ganham menos que merecem.

Você foi professor da London School of Economics and Political Science (LSE), uma das faculdades de ciências sociais mais importantes do mundo. E é uma faculdade pública. O que acha que poderíamos aprender com o modelo de gestão de faculdades públicas de ponta do exterior?

A LSE é pública, mas precisa mostrar resultados para conseguir recursos [do governo]. A pressão da competição está presente. Os professores são muito cobrados, principalmente em termos de pesquisa. E o ensino não é gratuito.

Você também é professor da FGV, em São Paulo, e cursou o doutorado em Yale. Faculdades privadas de ponta, como essas duas, se preocupam menos com o interesse da sociedade do que as universidades estatais?

Não há diferença nesse sentido. As escolas privadas não conseguem fornecer o ensino “gratuito” para todos. Precisam cobrar do aluno, mas a diferença acaba aí. Seria até estranho dizer que a [universidade] que fornece educação paga pelo contribuinte está mais interessada em atender ao interesse público. Mas devo dizer que tanto FGV quanto Yale recebem fundos públicos para pesquisa.


 

Edifício da London School of Economics, uma das melhores faculdades públicas do mundo

Edifício da London School of Economics, uma das melhores faculdades públicas do mundo


 

Num contexto de ajuste fiscal para onde você acha que deveríamos olhar na hora de cortar gastos?

A grande maioria dos subsídios do BNDES não faz sentido. Cobrança de mensalidades para os alunos de universidades públicas que podem pagar também seria muito bem vindo. Creio, porém, que é preciso conter o crescimento dos gastos do governo. Para isso, outras reformas são necessárias, especialmente na área da previdência.

Idealmente, deveríamos mudar para um sistema de previdência em que cada um tivesse sua própria conta de poupança individual. A previdência não deveria ser responsável por transferências de recursos de uma pessoa para outra. Esse deve ser papel de outros programas do Estado.

Ao lado de outros economistas – como Filipe Campante (Harvard) e Quoc-Anh Do (Sciences Po) -, você ajudou a escrever uma série de artigos que sugeriam uma relação entre capitais geograficamente isoladas, como Brasília, e fenômenos como má gestão, corrupção e concentração do poder entre elites dirigentes. Acha que é o caso do Brasil (e de Brasília)?

Capitais isoladas isolam os políticos da pressão popular e incentivam as más práticas. Esse efeito provavelmente é relevante no caso do Brasil. Quanto mais democrático é o país, menor é o impacto da capital isolada. Mesmo assim, existem estudos utilizando evidências dos 50 estados americanos, indicando que mesmo neste caso as capitais mais isoladas levam a mais corrupção.

De forma mais ampla, por que a corrupção floresce com tanta facilidade no Brasil?

É uma questão importante cuja resposta eu não tenho, nem caberia aqui, mas posso destacar algumas coisas. É muito bom notar que o Brasil tem boas instituições e liberdade de imprensa. O ponto negativo recente é o modo como se dá a discussão política, que divide o país de tal forma que escândalos enormes de corrupção são “perdoados” por uma grande quantidade de eleitores. São como torcedores de um time que não se importam se o seu centroavante faz um gol de mão.

E o Estado brasileiro é muito grande. Em setores que tendem a ter mais corrupção, o tamanho “ideal” do Estado deve ser menor. Não faz sentido que esses setores tenham tanta intervenção, se o dinheiro do governo tende a cair nos bolsos errados.


De acordo com uma série de artigos publicados por Bernardo ao lado de outros economistas - como Filipe Campante (Harvard) e Quoc-Anh Do (Sciences Po) - o isolamento dos políticos em Brasília permite que eles fujam da pressão popular.

De acordo com uma série de artigos publicados por Bernardo ao lado de outros economistas – como Filipe Campante (Harvard) e Quoc-Anh Do (Sciences Po) – o isolamento dos políticos em Brasília permite que eles fujam da pressão popular.


Os primeiros parágrafos de “A Riqueza da Nação no Século XXI” contam o relato de um estudante cambojano, que quase foi morto pelo Khmer Vermelho por portar um livro em francês, um “objeto da burguesia” na visão dos soldados que o revistaram. Em seguida, você faz um paralelo com o debate sobre economia no Brasil, que rechaça algumas propostas irrefletidamente, apenas por considerar que elas “atendem aos interesses da burguesia” (ou da CIA, como você fala no livro).
Quais são as boas ideias sobre as quais a gente deixa de conversar por puro preconceito?

O liberalismo econômico é o grande exemplo. Em sua essência, liberalismo econômico significa mais concorrência e, portanto, menos poder de monopólio para grupos estabelecidos. Mas o liberalismo é normalmente identificado como a defesa dos ricos.

Em alguns casos, essa analogia é bizarra. Por exemplo, eu defendo uma drástica redução nos subsídios do BNDES. Os subsídios fazem sentido em alguns casos, mas esses casos são uma parte pequena do tamanho do BNDES. Mas pelo menos até 2014, o governo e alguns de seus defensores empacotavam o BNDES junto com a defesa dos mais pobres. Quem era contra era neoliberal, e isso parecia suficiente como argumento. O que é bizarro, pois além do efeito negativo sobre a economia como um todo, o BNDES distribui renda aos mais ricos.

Sua pesquisa acadêmica se concentra em áreas como economia política e macroeconomia, assuntos cada vez mais frequentes nas mesas de bar em todo o país. Obviamente, existem diferenças gritantes entre o modo como a população leiga e os economistas especializados abordam esses temas.  Se você tivesse o poder de esclarecer, para todos os brasileiros, um ou dois debates econômicos urgentes e frequentemente mal abordados, quais você escolheria?

O primeiro é que o jogo político é basicamente um jogo de soma zero. As pessoas dizem que algumas propostas beneficiam “os trabalhadores” ao prejudicarem a “elite”, enquanto outras fazem o contrário, como se só isso estivesse em jogo. Não é verdade! Alguns países são dezenas de vezes mais ricos que outros, uns têm crescido muito, outros estão estagnados ou decaindo e isso reflete diferentes escolhas de política econômica. No atual momento (e na última eleição), as discordâncias entre economistas não são (e não eram) sobre temas como o Bolsa Família, mas sobre as políticas que vão tornar o Brasil um país mais rico como um todo.

O segundo mito relaciona intervencionismo estatal na economia a distribuição de recursos aos mais pobres. Diz-se que quem é a favor de um, deve ser a favor do outro; e quem é contra um, deve ser contra o outro. É a ilusão de que o debate político deve ser dividido em um mundo em que só há uma dimensão, que vai da “esquerda” à “direita”. Isso não faz sentido. Não há nada errado em combinar a defesa do liberalismo econômico com ações diretas do governo para mitigar a pobreza.

Então dá para combinar economia livre e justiça social?

Sim, sem dúvida. Economia livre não significa que o governo fecha os olhos aos pobres. Significa que o governo deixa a economia funcionar da melhor forma possível, interfere apenas quando de fato vale a pena para corrigir as falhas de mercado. Isso é bom para a economia como um todo. Se não resolve o problema da pobreza tão rapidamente quanto gostaríamos, que governo tome ações diretas para mitigar a pobreza.

 

 

Compartilhar