Dívida pública é um dos assuntos favoritos de Ciro Gomes. Seu discurso tem sido influenciado pelo grupo ‘Auditoria Cidadã da Dívida’, liderado por Maria Lúcia Fattorelli.
Apesar do grupo ter introduzido nova linguagem neste debate, suas ideias na prática se aproximam do velho PT dos anos 90. Em 2002, o ex-presidente Lula fez questão de afastar-se dessas ideias, na Carta ao Povo Brasileiro. Não por acaso, a Carta foi o primeiro passo para que uma ala mais extremista do partido saísse do PT. Pouco tempo depois, surgiria o PSOL.
Fattorelli foi candidata a deputada federal pelo PSOL em 2014. É o único partido do Congresso que abraça suas ideias como parte do programa. Mesmo economistas de esquerda, como Laura Barbosa de Carvalho, reconhecem que a Auditoria Cidadã é outro nome para calote.
Nas palavras da própria Laura, que prefere usar o termo em inglês para ‘calote’ (default):
Dilma Rousseff, cuja demonização política pela esquerda também é difícil, vetou uma proposta de auditoria cidadã feita pelo PSOL.
Ciro Gomes, por outro lado, se comprometeu com a auditoria cidadã.
Dentre os economistas brasileiros com produção acadêmica relevante, é praticamente impossível encontrar quem corrobore os números e teses apresentadas pelo grupo. Apesar de apresentar-se como um candidato moderado no debate público, Ciro Gomes tem divulgado o trabalho da Auditoria Cidadã e defendido ideias muito semelhantes, inclusive sob companhia de Fattorelli.
Os argumentos produzidos pela Auditoria Cidadã, com frequência, valem-se de números falsos, justificados com definições que apenas o grupo usa – em contraste com o significado consagrado de algumas palavras. São, portanto, manobras que ajudam na propagação de mentiras.
Para o terceiro texto da nossa série de mentiras de Ciro Gomes, vale a regra de sempre: qualquer dado falso, distorção que induza o leitor a erro ou omissão de fato crucial para entender o tema será imediatamente corrigida por este Mercado Popular.
Classificação: Falso
O número utilizado por Ciro foi repetido por Ciro em diversas palestras e na propaganda eleitoral do seu partido, o PDT. O trecho acima pode ser encontrado neste vídeo.
Para chegar aos 48,3%, a Auditoria Cidadã utiliza um conceito de “orçamento público” que passa longe do que a maioria da população considera razoável. Seja no debate acadêmico ou nas publicações técnicas do Tesouro Nacional, este conceito não é utilizado.
A maior parte dos 48,3% é formada pelo refinanciamento da dívida – ou “rolagem”. Trata-se de uma operação financeira que troca a dívida que vence neste ano por dívida de prazo mais longo. Esta operação não consome recursos públicos. O governo simplesmente emite nova dívida para pagar a antiga.
Apesar de constar no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), o refinanciamento está classificado numa parte separada. É a única das três seções da PLOA que não recebe o nome de “orçamento”. As outras são o Orçamento Fiscal e o Orçamento da Seguridade Social.
Neste documento do Tesouro Nacional, você pode ler por que a rolagem não é considerada como parte integrante do orçamento.
Uma forma simples de entender é a seguinte: caso o Brasil deixasse de “rolar” a dívida pública, não haveria recursos adicionais à disposição do governo. Como o calote provavelmente impediria o governo de se financiar, é provável que existissem ainda menos recursos à disposição.
Isso é especialmente relevante porque Ciro relaciona a rolagem ao tamanho do Estado.
Outros dois erros na frase de Ciro estão em três palavras “juros para bancos”. A rolagem não envolve propriamente o pagamento de juros, mas do principal da dívida. Além disso, bancos não são os únicos clientes. Em julho de 2017, as instituições financeiras (grupo do qual os bancos fazem parte, mas não formam o todo) detinham 22,3% da dívida pública interna. É menos do que os 25,3% sob controle de fundos de previdência, por exemplo.
Além do mais, é importante ressaltar que bancos compram títulos públicos por diversos motivos além do lucro. Os títulos servem como seguro para depósitos em conta corrente, por exemplo. Se você tem conta num banco, é provável que ele tenha comprado parte da dívida pública para garantir a liquidez do seu dinheiro.
Por fim, é importante responder: quanto o governo gasta com a dívida pública? Depende do modo como a pergunta é formulada. Por ser uma questão complicada, a clareza da formulação é parte fundamental de uma resposta correta.
Em geral, a população entende o orçamento como a destinação do dinheiro que o governo recebe em impostos. Nesse caso, a resposta seria: o governo gasta zero reais dos seus impostos com a dívida pública.
Quando se diz que o Brasil tem “déficit primário”, isso significa que a arrecadação do governo não é suficiente para pagar os gastos que não tem a ver com dívida – previdência, pessoal, educação, saúde, etc. Em outras palavras, o governo está endividando a população para sustentar esses gastos – e se comprometendo a, no futuro, cobrar mais impostos ou imprimir dinheiro para pagar essa conta.
Não é que a gente esteja sofrendo com impostos que vão para pagar dívida: estamos endividando nossos filhos porque os impostos não são suficientes para bancar as despesas primários. É assim desde 2014 e deve continuar, segundo o IFI/Senado, até 2023.
Uma última forma de notar o absurdo dito por Ciro está numa conta simplificada: o Estado brasileiro absorve entre 35% e 40% (arredondados) da renda nacional, a depender do conceito utilizado; a dívida pública, hoje, é de cerca de 80% do PIB; se metade do Estado brasileiro estivesse mobilizado para pagamento da dívida, ela seria paga em poucos anos, mesmo com juros absurdamente altos.
Classificação: Falso
A afirmação acima pode ser encontrada numa entrevista para a Carta Capital. Existem três falhas principais nela:
O estudo no qual Ciro se baseia se chama “Os Ricos no Brasil” e foi publicado por Márcio Pochmann, economista ligado ao PT e ex-presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Alguns veículos de imprensa citaram o estudo na época, mas nenhuma referência mais sólida.
Aparentemente, todos repercutiam uma declaração de Pochmann enquanto presidente do IPEA, inclusive informando incorretamente que “o IPEA” teria feito tal afirmação.
Não há referência no site do IPEA, que costuma liberar o acesso integral a todas as publicações. Mesmo em trabalhos acadêmicos que citam o estudo, como “Crescimento da Dívida Pública e Política Monetária no Brasil (1991 – 2014)”, de Pedro Paulo Zaluth Bastos (UNICAMP), o estudo é citado de maneira muito estranha, através de um link para uma notícia na internet – e não a citação bibliográfica em si, como é padrão na academia. Vale ressaltar que esse é um Texto para Discussão (working paper), um tipo de artigo acadêmico que não passa pelo processo de revisão por pares comum a periódicos sólidos.
O estudo citado por Pochmann foi realizado em 2004. Ele afirma que 20 mil clãs familiares recebem 70% dos juros da dívida pública.
Utilizando dados recentes, é impossível que as conclusões do estudo se mantenham até hoje. Fundos de previdência, com três milhões de beneficiários, possuem 25,3% da dívida pública. O governo possui 4,9%; estrangeiros possuem 12,8%; e seguradoras possuem 4,7%.
Ainda que todo o restante – 22,3% de instituições financeiras, 24,4% de fundos de investimento e 5,6% de “outros” – estivesse com os tais 20 mil clãs familiares brasileiras, o que é muito improvável, o percentual seria próximo a metade da dívida pública, e não 70% desta.
Mesmo ignorando todos esses problemas, a afirmação de Ciro continuaria sendo falsa. Duas diferenças fazem são gritantes, independente de qualquer análise sobre o que dizem os estudos.
Primeiramente, clãs familiares são muito diferentes de famílias. Um clã é composto por 50 pessoas com vínculo familiar. É um conceito muito diferente de família, podendo incluir pessoas com história muito distinta entre si. 20 mil clãs familiares correspondem a até um milhão de pessoas.
Além disso, Ciro cita 10 mil famílias, enquanto o estudo fala em 20 mil – o dobro, portanto.
Ainda que se aceite cegamente os resultados, esta é mais uma dos inúmeras mentiras compiladas nesta série.