Por André Ichiro

Escrever sobre a experiência de andar pela rua – depois de sair do cinema – e sentar em um bar com amigos é quase que uma injustiça com a branquidão das páginas vazias, pecando com signos que não retratam o extraordinário, mas que ocupam espaço. Um conto qualquer. Sinta-se livre para relatar experiências alcóolicas mais ricas, do tipo “what happens in vegas stays in vegas”; esse conto é mais sobre outra espécie de vivência: vamos chamar de “libertarianismo de boteco”.

Toda aquela caminhada aleatória arrisca e risca qualquer solidez, confiabilíssima – tal qual políticos – enquanto incipiência analítica das bocas apressadas em exclamar réplicas de tudo aquilo que não deu certo: enquanto vou andando, fica claro que o establishment é um cacto que se abre muxoxo, em movimentos quase que gentis, liberando ranços de fugazi na aridez dos prédios e das ruas, que agora parecem caules secos (“fugazi”: sim, acabei de assistir “Wolf of the Wall Street”; sempre achei as gírias italianas bem maneiras, e é um termo que designa algo ilusório, fake). Apesar de gostar das luzes dos prédios, quase todas as calçadas expressam um tipo de relação de oásis, como se fossem os últimos pedaços disponíveis para acolher beduínos cansados – a estatização da mobilidade urbana deixa a cidade feito desertos, só que com amontoados de carros –, criando isolamentos urbanos que recebem as tempestades de poeira que brotam do cimento das bolhas imobiliárias intermináveis. É como se as cidades estivessem revelando que seus castelos são de areia. Para os moradores mais ingênuos, que nunca descem dos últimos andares, as cidades estão intactas. Não percebem as rachaduras.

“Chegamos ao bar”, comenta a minha consciência. Ou seja: cerveja.

Um brinde rápido e acontecem as mais estranhas rupturas do cotidiano, que em seu silêncio revela a si próprio como um joguete barulhento, da onde brotam evidências – feito um Cronos que come os próprios filhos – de que há algo muito errado na existência imediata de um mundo que já gira antes dos pés tocarem o chão (ok, pode ser que seja eu; mas foram só duas cervejas), feito um carrossel de non-sense que arrebata todos os conceitos por onde orbitam as convenções que pululam das 9 às 18: ainda estamos engatinhando e logo tratam de vender a idéia de que o desejo de transcendência – que alguns chamam de ganância – está no ato de subir degraus que não dão a lugar algum.

“O que não dá em lugar nenhum é essa escada; como colocaram o banheiro lá em cima? Bêbados e escadas.. que tipo de desafio é esse?”

Enquanto me ajeito na mesa, penso que ser ganancioso não é querer almoçar todas as stocks de Wall Street (no bar, peço uma porção); isso é, na melhor das hipóteses, ser comum. O que você faz depois? Confunde a comida – o dinheiro visto como meio – com o fim, que é matar a fome? A idéia desses pratos todos deveria ser, sempre, regurgitar o status quo; chame de inovação ou de reformismo, ou até de destruição criativa. Use o nome que preferir, mas de qualquer forma é só a expulsão gástrica daquilo que está pulsando em nosso espírito, saindo pela boca e coroando o mundo com uma fluidez anormal. Uma fluidez que, nos dias de hoje, é visto como se fosse mesmo um atentado aos bons costumes.

“Quem atenta contra os bons costumes é aquela bela ragazza da mesa ao lado. (…) Atenta em favor dos bons costumes. Tá olhando pra cá.”

É que a ganância está nessa fluidez. Ser ganancioso é perceber que o materialismo é só um instrumento de troca a ser manejado por te permitir fazer fluir a gaiola da criatividade, liberando bestas que alçam voos que fluem para abrir novos caminhos – mais rápidos, mais bonitos –, mas que ao mesmo tempo desviam dos obstáculos que já são conhecidos pelos antepassados mais sábios, evitando velhos erros. A fluidez está na permissão de seguirmos outros tipos de evolução, ainda que estas dependam de um suporte material: é domesticar os nossos animais psicológicos até que estes aprendam a estruturar as reais metas da vida, coordenando a atribuição de propósito (o “eu” simbólico que pertence ao horizonte dos significados), com a selvageria inata de nossa espécie (o “eu” da animalidade, que pertence a finitude de um corpo que pode aprimorar a cognição através as emoções).

“Começou a música ao vivo. Daqui a pouco vem a tal da animalidade e pedem “toca Raul”…”

Balancear espírito e matéria é uma virtude tão grande quanto equilibrar canecas viking cheias de cerveja, ao contrário do patrimonialismo vazio – do qual, aliás, o Brasil está cheio, fruto da cultura estatista que nos assombra continuamente – que nos acostumou a ganhar dinheiro sem entregarmos, em troca, o nosso melhor, como se a parte importante disso tudo não fosse justamente uma realização profissional que deveria demarcar uma parte importante daquilo que podemos oferecer ao mundo e a nós mesmos. A compreensão da fluidez implica saber administrar as forças – internas e externas – que formam a percepção intersubjetiva de valor, entendendo que é esta a responsável por dar utilidade aos bens, e não o contrário.

“Que isso? Apenas beba e pare de pensar tanto.”, questiona a voz da consciência, fazendo o papel da sensatez que alerta: prosseguir com a lucidez pode ser um hábito perigoso. É o “sentido aranha” do bêbado.

Com cervejas de R$ 50, acho que minha percepção intersubjetiva de valor pediu divórcio da carteira. Mas são cervejas excelentes, é quase “an offer you can’t refuse”. A história é mais ou menos essa: deixar que as forças externas – incontroláveis, mas flexíveis – que atuam no mundo sigam, de modo natural, os movimentos das forças que jazem internalizadas (“o que está dentro é como o que está fora”), ou seja, compatibilizar auto-realização com as ferramentas que estão disponíveis (mesmo que disponíveis para serem criadas), isso é fluidez.

Ah. Como esse termo – “fluidez” – tem uma sonoridade legal (sim, a bebida te abre um novo mundo de vocabulários), vou deixa-lo aqui para designar a minha própria experiência de embriaguez: a fluidez é como a água (ou a cerveja), que se adapta ao ambiente por usá-lo a seu favor, transformando obstáculos em caminhos e fluindo livremente, criando soluções por se unir aos problemas e dissolve-los neles mesmos. O oposto da fluidez é a arrogância do ditador, cego pelo desejo de controlar fatores externos que são complexos demais até para serem compreendidos, quanto mais dominados. O ditador, na verdade, é como uma criança que não entende a fluidez, querendo transgredir as forças externas – até que tenha a ilusão de dominá-las – para conservar as suas próprias forças internas, com seus desejos fazendo às vezes das regras (externas, complexas e incontroláveis) do jogo. O ditador não tenta compatibilizar o interno com o externo. Mas, se for assim, como a compreensão da fluidez pode mudar os rumos desse jogo de dominação?

“Pausa dramática para um gole. Faz a pergunta anterior parecer mais importante.”

Chegam mais alguns amigos, que por sua vez trazem mais amigas; e é óbvio que esqueço esses papos sobre fluidez. Mas, depois de um tempo de conversa, retomo o raciocínio: a fluidez, diriam alguns, é algo bem diferente das transgressões. A transgressão supõe a ordem, e essa dualidade cria a limitação própria de qualquer movimento pretensioso o bastante para querer subverter o “ser” com os caprichos da rebeldia, substituindo-o por um “vir-a-ser” que os aspirantes a revolucionários – e também os ditadores, já que essas duas pontas sempre tentam se encontrar – sabem ser uma exploração da miséria, mas tudo bem, já que nesse caso há, para eles, uma questão de poder, e não de progresso. Aspirantes a revolucionários – futuros ditadores – querem, do alto de suas críticas escritas dos smartphones mais modernos, tornar todos (os outros; eles devem ocupar a posição de controladores da propriedade alheia) igualmente pobres, já que clamam por regulações que inviabilizam o acesso, por parte daqueles que carecem dos serviços mais básicos, de todos os direitos econômicos possíveis. Se pudessem, com certeza obrigariam, violentamente, que o dono desse bar distribuísse cervejas trapistas, de graça, para todos os camaradas, em nome do “bem comum”. Um ambiente onde todos consigam desenvolver seus próprios empreendimentos – nos bares, ajudaremos com demanda – não seria melhor?

Por escapar do jogo entre ordem e transgressão, a fluidez está livre dessas limitações: se por um lado a transgressão protege a ordem por criar resistência – e a resistência cobra seu preço em desgaste –, como uma espécie de profecia que se auto-realiza por criar ordens apenas com o intuito de desafia-las com mais desordem (até que uma substitua a outra), a fluidez, por outro lado, vence por fazer as regras do jogo reconhecerem a necessidade de incrementos necessários para que o jogo continue. A fluidez atua em movimentos contínuos, e faz o jogo perceber seus próprios erros e consertá-los, feito um sistema de feedbacks. Seria bom se tudo fosse assim: mulher bêbada, no bar, dando aqueles gritinhos agudos, com sistema de feedbacks de silêncio.

“É bem melhor pensar sobre feedbacks e liberdade bebendo cerveja, e ao lado de amigas bonitas. Te faz ser sensato e ver o lado bom das coisas. Deve ser por isso que movimentos políticos, no Brasil, tem opiniões tão ruins: as reflexões saem dos DCE’s.”

Mas a postura da fluidez também não exige aceitar as regras do jogo de cabeça baixa. Está mais para entender o tabuleiro de modo a não permitir que ninguém nunca possa nem deter o monopólio das peças, nem eliminar a concorrência através das suas próprias regras (a fluidez é como um solvente universal que não admite concentrações excessivas e indevidas). Esses dois últimos problemas, que podemos resumir como psicoses de monopolização, são alguns dos grandes responsáveis pelas impunidades que rondam o mundo – a violência nasce quando a mobilidade própria das regras da liberdade morrem –, e são tão antigos quanto ele.

“Problemas tão antigos só podem ser combatidos com receituários igualmente estabilizados ao longo do tempo: as primeiras cervejas nasceram no período neolítico! Um brinde.”

Daí em diante, a leve falta de sobriedade me fez ponderar sobre o risco da lógica do escravo, que no fundo (do copo?) é a contraparte dos problemas da monopolização, anteriormente pincelados. Apesar da conversa sobre a fermentação na garrafa estar incrível, o que me preocupava mesmo, naquela mesa (além da demora para as porções chegarem), eram aquelas pretensões das nossas zonas de conforto – pras romarias que a ela migravam só restava uma falsa idéia de que, se tudo passa, então seria melhor preocupar-se apenas com os riscos daquilo que é imediato, como se abolir a insegurança própria do futuro fosse resultar em uma autêntica sensação de existência: por se entenderem como espasmos do presente, a humanidade passou a viver de shit talking – ironicamente, penso nisso ao mesmo tempo em que pseudo intelectuais da mesa à esquerda comemoram alguma vitória de algum político corrupto –, acumulando momentos fugazes numa toada onde tudo é trivialmente passageiro, de modo que pareça ser mais simples ter senhores que resolvam os assuntos mais importantes enquanto cuidamos de depositar na conta das nossas responsabilidades apenas as festividades mais óbvias.

“Melhor pedir mais uma. Você não pode vir a um bar, criticar o shit talking e sair impune.”

A lógica do escravo permitiu que a figura do engenheiro social passasse a formatar o futuro – de todos nós – a seu bel prazer: vivemos na época em que o dirigismo abocanhou a própria continuidade do tempo. E não falo isso pelos altíssimos impostos que recaem sobre a cerveja; a memória – da cidade, das pessoas – agora é planificada por burocratas que mal conseguem resolver os desafios de uma partida de campo minado, quanto mais os jogos de coordenação entre milhões de pessoas. O risco disso é óbvio: se a memória nada mais é do que um conjunto de processos que permitem a fenomenologia das histórias através dos atos de lembrar (que seria a reconstrução de eventos em uma conexão que permita identifica-los como pertencentes ao “antes”) e esquecer (adormecer eventos, reproduzindo apenas a fórmula, sem executá-la, das conexões passadas, o que acaba dando espaço para exames de consistência temporal mais urgentes), então demos carta branca para que o ímpeto da monopolização cartelizasse a nossa própria história, ilustrada nos atos de lembrar e de esquecer; deixamos a memória e a nossa psique sofrer todos os ataques, e esquecimentos seletivos se unem a lembranças de fatos que são trazidos à baila de forma totalmente distorcida. Como se isso não fosse abrir mão de si, parece que as demais pessoas decidiram viver à distância de suas próprias liberdades. Ao mesmo tempo, noto que o bar ficou bem mais cheio.

“Começou a pensar sobre distorções históricas e perda de memória.. é um jeito diferente de dizer que um coma alcoólico não cairia bem…”

Taí. Eis o grande mal da humanidade, que timidamente se profissionalizou em um automatismo maluco: a idolatria a esse dogmatismo – contra a fluidez e a favor da lógica do escravo – não fazia sentido sequer aos tropeços de um bêbado. Meu copo jazia vazio como se estivesse quebrado e a minha idéia era clara: “é, precisa de conserto”, e o mercado prontamente satisfez a demanda. A essa altura, o surrealismo da espuma transbordou a caneca, feito uma espécie de controle de qualidade das reflexões. Com a pausa, notei que falavam sobre como monges trapistas transitavam perto de um rio chamado St. Lawrence. Na mesma hora pensei que alguns da mesa pareciam felizes com o shit talking. Até que o assunto era interessante, mas ficariam relegados a não entender a tal da fluidez? “Talvez queiram assim”, pensei.

Outro gole. O último.

(veja esse vídeo e conheça melhor algumas metáforas explicativas do texto: http://www.youtube.com/watch?v=jF-moYGN7j8) 

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