Por Eduardo Cesar Maia
[dropcaps]A[/dropcaps]ntes de que pudéssemos contar com os hoje já comuns “sebos virtuais”, alguns livros, apesar de não tão velhos e nem tão raros, viravam objeto de verdadeiras caçadas pelo simples fato de estarem esgotados na editora. É o caso de O livro dos insultos, uma compilação de textos do polêmico jornalista norte-americano Henry Louis Mencken (1880-1956), organizada por Ruy Castro e fora de catálogo há mais de 20 anos. Agora, para os admiradores do “sábio de Baltimore”, uma boa nova: a Companhia das Letras reeditou a obra numa edição bem cuidada e que, de quebra, além do prefácio do próprio Ruy Castro, traz um texto de Paulo Francis sobre “o mais poderoso cidadão privado na América” daqueles tempos, como o definiu Walter Lippmann, do New York Times.
Neto de imigrantes alemães e filho do dono de uma fábrica de charutos, Mencken se interessa pela literatura a partir da leitura de Mark Twain, escritor e também jornalista, de quem herda o humor irônico e o espírito libertário — Huckleberry Finn foi seu livro preferido durante toda a vida. Iniciou a carreira como foca no jornal Baltimore Morning Herald, em 1899, e posteriormente foi contratado pelo Baltimore Sun, em 1906. Sua verve de crítico cultural começou a ser destilada na revista The Smart Set, em 1908.
Em 1924, já consagrado e com algum dinheiro, Mencken pode fundar uma publicação própria, o magazine The American Mercury, que teve sua primeira edição circulando no mesmo ano, e, em pouco tempo, começou a ser distribuída com sucesso em todos os Estados Unidos. Entre seus amigos íntimos — os quais nem sempre escapavam de seu sarcasmo —, estavam importantes artistas e escritores da época, como George Jean Nathan, Theodore Dreiser, F. Scott Fitzgerald e Alfred Knopf.
Mencken entendia o jornalismo como uma atividade essencialmente de combate e de oposição ao poder constituído. Suas únicas crenças inamovíveis eram a defesa da liberdade de consciência e a preservação dos direitos civis dos indivíduos contra a força do estado e contra a “tirania da maioria”. Ficou célebre uma anotação em seu diário no dia da morte de um presidente americano: “Foi o primeiro americano a penetrar nas profundezas da estupidez do vulgo. Nunca cometeu o erro de superestimar a inteligência da multidão”. Referia-se assim a Franklin Delano Roosevelt, único presidente eleito por quatro vezes na história americana.
Sua capacidade de falar mal dos outros não tinha limites: desmoralizou políticos e acadêmicos, humilhou seus pares jornalistas inúmeras vezes; vilipendiou judeus, puritanos, católicos, filósofos; menosprezou os negros e ao mesmo tempo combateu a Ku Klux Klan e o fundamentalismo cristão. Afirmava que sempre odiara os pastores protestantes, mas começava a compadecer-se deles tão logo conhecia suas mulheres… Enfim, não poupava ninguém. Um de seus alvos preferidos era o que ele chamava de boobsie, o homem médio americano, deslumbrado, cheio de superstições, ignorâncias e medos — o Homer Simpson da época.
[dropcaps]A[/dropcaps] fama de polemista e “elitista preconceituoso” é rigorosamente merecida, mas o destaque unilateral dessa faceta acaba distorcendo seu perfil e diminuindo a amplitude de seu pensamento. De fato, Mencken foi o jornalista mais mordaz e influente de seu tempo, mas também foi crítico literário, tradutor, editor e lexicógrafo — autor do monumental The american language, obra filológica em que mostrava que o inglês falado na América se diferenciava cada vez mais do britânico e adquiria identidade e dinâmica próprias.
O homem foi ao mesmo tempo retrato e antítese do espírito americano: livre-pensador, mas que nutria um profundo desprezo pelas massas e pelo sistema democrático, pois desconfiava do bom-senso e da inteligência das maiorias. Disse certa vez que a democracia era “a arte e a ciência de administrar o circo a partir da jaula dos macacos”. Detestava os militantes e sua única mandeira era o ceticismo, ou melhor, a capacidade que o indivíduo tem de não acreditar, de não seguir a manada, de pensar por si mesmo. Era um adepto do princípio “Hay gobierno? Soy contra!”, e acreditava que todo homem decente deveria se envergonhar do governo sob o qual vive.
Como Nietzsche, na Alemanha, e Ortega y Gasset, na Espanha, Mencken combateu ferozmente o democratismo, a crença de que a maioria — por ser maioria — estava necessariamente certa. O jornalista conhecia muito bem a obra de Nietzsche e foi um dos seus primeiros tradutores para o inglês. Pode-se dizer que Mencken reconhece no pensador alemão uma personalidade de intelecto e temperamento semelhantes aos seus: alguém que não se rebaixava a ídolos — fossem religiosos, ideológicos ou românticos.
O que dá unidade à visão crítica desse intelectual sui generis é a sempre presente desconfiança em relação ao homem e suas supostas grandes capacidades e dotes. Para Mencken, as principais características da espécie humana são a preguiça, a vaidade sem propósito, o espírito de rebanho e, a mais destacada entre todas, a covardia. Sem exceções, do gari ao mais pomposo acadêmico de Harvard, a cretinice uniria em comunhão sagrada esse animal que se coloca na hierarquia natural como o ápice da criação.
Durante os anos 1920, ele se destacou como crítico cultural e literário implacável. Jogava com valores: construía e destruía méritos e reputações, e não perdoava os renomados e famosos. Os jovens literatos ansiavam por sua apreciação, que podia ser o começo — ou o fim precoce — de suas pretensões artísticas. Edmund Wilson o chamou de “crítico impressionista”, por seu personalismo, e acusou-o de não ter consistência por não obedecer a normas maiores, exteriores a seu próprio juízo e sentimento. Mas reconheceu que Mencken, por um lado, e T. S. Eliot, por outro, fizeram a cabeça dos jovens literatos americanos de sua época. O filósofo espanhol Fernando Fernando Savater enfatizou que a condição de autodidata deixou várias brechas na formação intelectual de Mencken, mas isso era perfeitamente compensado pelo seu virtuosismo retórico e pelo estilo contundente de seus escritos.
Em 1948, H. L. Mencken foi vítima de uma trombose cerebral, da qual nunca se recuperou completamente. Manteve-se ainda consciente, mas era incapaz de ler e de escrever e caiu numa inevitável depressão. Um dos mais brilhantes — e, com certeza, o mais polêmico — jornalistas americanos faleceu em 1956, convicto de que seu corpo apodreceria na terra e nada restaria dele, neste ou em outro mundo. Mesmo em seus dias finais, ao contrário de muitos arrependidos de última hora, Mencken continuou afirmando a falta de sentido que cerca a existência do homem — e zombando disso.
Mencken produziu — e continua produzindo — inumeráveis seguidores no jornalismo, inclusive no Brasil, mas certamente nenhum deles ainda conseguiu igualá-lo em brilho, ousadia e no poder de sacudir as pessoas, retirando-as da tranquilidade e do conforto do senso comum por meio de textos tão desconcertantes. A reedição de O livro dos insultos é uma oportunidade para que velhos admiradores e novos leitores brasileiros entrem em contato com alguns dos melhores textos e reconheçam seu legado: a lição de que ninguém merece ser tão reverenciado a ponto de não podermos rir dele.
Um personagem assumidamente inspirado em H. L. Mencken foi levado ao cinema pelo diretor Stanley Kramer, no filmeHerdarás o vento (Inherit the Wind), de 1960. A obra, baseada num episódio real, ocorrido em 1925, que ficou conhecido como Caso Scopes ou O julgamento do macaco, relata o processo jurídico contra um professor de segundo grau, interpretado por Fredric March, que cometeu o “pecado” de ensinar darwinismo a seus alunos, numa cidade (Dayton, no Tennessee) onde as leis estaduais, influenciadas pelo fundamentalismo cristão, não admitiam teorias científicas que concorressem com a explicação bíblica — o criacionismo.
[dropcaps]O[/dropcaps] estilo sarcástico e libertário de Mencken é homenageado na figura de E. K. Hornbeck, interpretado por Gene Kelly, um jornalista do Baltimore evening sun que se empenha em defender os direitos do réu — bancando inclusive os honorários do advogado de defesa —, com o intuito maior de provocar os religiosos do que propriamente para salvar a pele do professor. Não obstante as semelhanças entre a ficção e a realidade, a obra foi adaptada livremente e não teve a intenção de documentar a história. Alguns críticos enxergaram no teor crítico do filme um alerta contra o mal que o macarthismo estava causando na liberdade de expressão e de pensamento.
Outro destaque da adaptação cinematográfica é o elenco, que contou com atores como Spencer Tracy, Fredric March e o próprio Gene Kelly. O filme concorreu a quatro Oscars e permanece atual e instigante, mesmo porque os fervorosos debates entre criacionistas e darwinistas ainda ocorrem em tribunais, na imprensa e nas escolas americanas.
Publicado originalmente no Café Colombo