Por Gabriel Costeira Machado e Cristiano Aguiar de Oliveira [1]

No início deste ano, um taxista foi preso após se envolver em uma briga com um motorista da Uber em Curitiba. Em Teresina, o confronto se dava de forma anunciada: os motoristas trocavam farpas (e áudios) por meio de um aplicativo de mensagens instantâneas. Um dos encontros culminou no atropelamento de um taxista. Algo muito parecido com o que aconteceu em Novo Hamburgo, Região Metropolitana de Porto Alegre, nas últimas semanas. Já em Fortaleza, um protesto organizado por motoristas do aplicativo que reivindicava o fim da violência terminou, ironicamente, em violência. Não são poucos os casos de confrontos entre os motoristas de táxi e motoristas da Uber desde a chegada do aplicativo no Brasil, em junho de 2014, quando o país sediou a Copa do Mundo – basta uma rápida pesquisa pela internet para se obter comprovação.

A relação controversa, embora recente, se enquadra em uma conversa antiga: o impacto da inovação no mercado de trabalho e, sobretudo, em setores tradicionais da economia. Pondo de outra forma, os motoristas de táxi veem os seus concorrentes como inimigos que lhes roubam clientes, empregos e dinheiro e, disto, se desencadeia uma verdadeira guerra por território. A crença acaba sendo reforçada pelo argumento de que os serviços oferecidos pelos aplicativos se encontram aquém da regulação do Estado e, portanto, operam ilegalmente, sob menores custos e, consequentemente, desempenhando uma “concorrência desleal” para o setor.

Tal regulação sobre os serviços de transporte urbano por carros, nos quais se inclui o serviço de táxi, tem o papel de garantir um número ideal de táxis capaz de atender à demanda de passageiros e assegurar seu bem-estar, levando em conta questões referentes à mobilidade urbana e proporcionando uma remuneração suficiente para que o motorista cumpra as exigências. Para isso, o Estado se utiliza de um conjunto de mecanismos que vai desde o controle de entrantes, cobrança de licenciamento e seguro obrigatório e o estabelecimento de preços fixos – a chamada bandeira.

O motorista de táxi, por vez, para exercer seu trabalho deve, periodicamente, apresentar certificação de treinamento e de qualidade do veículo, uma série de condições que acabam recaindo sobre o custo do serviço e o preço pago pelo consumidor. Logo, nos bastidores desta trama, estão as empresas responsáveis por outorgar as licenças e prestarem cursos de atualização, um serviço de alto custo concedido por um forte grupo de interesse que parece pouco disposto a abrir mão de privilégios assegurados pela legislação – o que Anne Krueger convencionou chamar de rent-seekers, ou rentismo.

Além destes, os efeitos da modernização do setor atingem os interesses de um terceiro agente: o próprio regulador, isto é, a autoridade estatal. Trazendo a discussão para os moldes da contribuição de George Stigler, a concentração de poder discricionário nas mãos de um pequeno grupo, formado por burocratas ou políticos, cria margem para um comportamento oportuno, pondo à frente seus próprios interesses, seja garantir vantagens pecuniárias ou apoio político, e não agindo em vista do bem-estar da sociedade, nesse caso, ocorre captura do regulador pelo regulado.

Diante das críticas ao modelo de regulação estatal expostas, o leitor pode se perguntar – e até mesmo saber, caso já tenha experimentado – qual o diferencial do serviço de transporte da Uber. A primeira vantagem, e a mais aparente, é o custo, o que significa um serviço mais barato para o consumidor. A redução dos custos atrelados a licenças e fiscalização permite preços mais baixos capazes de gerar ganhos de bem-estar para o consumidor sob forma de excedente de consumidor – algo em torno de US$ 6,8 bilhões só em 2015 nos Estados Unidos, de acordo com o estudo de Peter Cohen e outros autores.

Para se entender o que está por trás do baixo custo, é importante, porém, compreender qual é a proposta da empresa. Segundo a própria, trata-se de uma match-maker, ou seja, uma empresa responsável por facilitar o encontro entre motorista e passageiro. Ao contrário do que possam pensar (e ainda há quem o faça), a empresa não utiliza nenhum veículo para transporte de passageiros, sua única função é garantir que o consumidor se desloque de um ponto a outro de forma segura, confortável, a um preço transparente, sem correr o risco de ser ludibriado ou ter sua corrida negada – situações já presenciadas por inúmeras pessoas em algum momento no serviço de táxi; do outro lado, garante a quem desejar trabalhar como motorista autônomo um mercado consumidor, contanto que ele cumpra alguns requisitos (começando por possuir um carro em bom estado para a tarefa). Basta um smartphone (e acesso à internet), o aplicativo se encarrega do resto com o auxílio da tecnologia de georreferenciamento.

Muitas das suas características se assemelham à forma de precificação do serviço de táxi, e até mesmo de pagamento, no entanto, um elemento-chave que concede à plataforma o pulo do gato é o mecanismo de surge pricing. Trata-se de uma forma de precificação estabelecida por um algoritmo de machine learning que se baseia em big data para determinar a quantidade de motoristas disponíveis e passageiros requisitantes em dado local e momento e, pelas forças de oferta e demanda, determinar o preço dinâmico que equilibra essas quantidades. Desta forma, garante-se que não haja escassez e nem excesso. Além disto, a empresa oferece pagamentos fixos ou a garantia de valores mínimos aos motoristas a fim de garantir que oferta do serviço de forma ininterrupta.

Outro benefício para o usuário é a grande probabilidade de se deparar com um serviço de qualidade. Caberá ao motorista se esforçar para oferecer ao passageiro a melhor experiência de transporte possível, valendo-se até mesmo de regalias ao longo do percurso – como balas, água mineral e direito a escolha da música de preferência. A explicação para isso se deve a um fato simples, mas relevante (e que passa despercebido para muitos dos trabalhadores do setor tradicional de transporte): o passageiro é como o patrão e, sendo assim, possui o poder de avaliar o desempenho do motorista em função da qualidade do carro, da qualidade do atendimento e da segurança da corrida, de modo que, se houver “queixas” em excesso (uma nota inferior a 4,6/5), o motorista é excluído da plataforma. Ou seja, o consumidor é o próprio fiscal do serviço, o que dispensa os custos de monitoramento, bem como as brechas para captura de reguladores estatais e prevalência de grupos de interesses. Por assim dizer, e após enumerar todas essas características, pode-se concluir que a Uber é uma agência reguladora de serviços de transporte público privada e, sendo assim, visa ao lucro – o que é obtido a partir de uma parcela do que é cobrado em cada corrida (cerca de 20% no caso do UberX, a modalidade mais competitiva oferecida).

Claramente a regulação desenhada pela Uber possui custos sociais inferiores àqueles atrelados à regulação estatal, pelas características já discutidas aqui e, em função disto, o serviço gera uma grande aceitação por parte dos usuários, o que explica tamanha preocupação para os rivais incumbentes, sobretudo, para os proprietários de licenças de táxi; porém, não explica o comportamento daqueles motoristas de táxi que não possuem licença e que, teoricamente, poderiam escolher em que serviço trabalhar a seu bel-prazer (leia-se aquele que lhe trouxer maior rendimento).

A fim de trazer um pouco de luz (além de dados e resultados) ao debate, buscamos responder qual foi o impacto da chegada do aplicativo sobre os rendimentos por hora dos motoristas de táxi em um grupo de cidades brasileiras – a citar, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Goiânia, Recife, Curitiba, Salvador e Fortaleza. A escolha desta variável, rendimento por hora, se deve à expectativa de que, diante de um potencial efeito, a chegada do aplicativo envolveu tanto mudanças nos rendimentos quanto nas horas trabalhadas, uma vez que, pelo menos inicialmente não se espera mudanças no nível de emprego, pois o número de motoristas de táxi é determinado pelo número de licenças e turnos trabalhados. Para realizar este exercício, contamos com os dados fornecidos pelas Pesquisas Nacionais por Amostras de Domicílios (PNAD) realizadas entre 2014 e 2016.

Do ponto de vista metodológico, cuidados foram tomados a fim de garantir resultados os mais robustos e confiáveis possíveis. Para uma análise mais detalhada das estratégias empíricas adotadas, você poderá acessar o working paper aqui. Além disso, buscamos capturar o efeito levando em consideração a ocorrência de outros fatores que pudessem afetar os rendimentos por hora dos motoristas de táxis, mesmo na ausência da Uber. Nesse caso, seria de se supor que tal fenômeno afetaria o rendimento de outras modalidades de transporte de passageiros, como o de ônibus, vans, micro-ônibus e até mesmo serviços de moto-táxi.

Todos os resultados obtidos no estudo serviram de evidência de que a entrada da Uber não causou impactos sobre os rendimentos por hora dos trabalhadores do setor de transporte de passageiros, em especial dos motoristas de táxi. Resultados semelhantes foram encontrados por economistas da Universidade de Oxford, que realizaram um estudo para as maiores 50 cidades americanas e pelo então economista-chefe do CADE, Luiz Esteves, que avaliou os impactos da entrada da Uber no número de corridas dos aplicativos Easytaxi e 99taxis.

Uma explicação comum, possível e plausível a todos esses estudos é que os motoristas da Uber passaram a atender uma parcela nova de consumidores que, até então, não eram usuários de serviços de transporte e, em razão disto, não afetou os rendimentos dos motoristas de táxi. Embora não haja estudos sobre, é possível caracterizar um suposto perfil dos usuários da Uber, bem como de seus pares: geralmente, jovens e adultos de classe média que viram nas vantagens imediatas do serviço uma razão para tornarem-se consumidores dele. Trazendo para o economês, o custo mais baixo do serviço permitiu um aumento do excedente do consumidor, que se traduziu por um aumento da quantidade demanda e, logo, não houve uma captura da parcela de mercado, mas sim, o atendimento a uma demanda, digamos, reprimida. De certa forma, o serviço de táxi permanece ativo, mantendo um número de clientes – pense na senhora que vai às compras no supermercado, por exemplo.

Com base na evidência (ainda escassa, é verdade) de que não existe efeito sobre o rendimento-hora do motorista uma possível explicação para os conflitos entre os motoristas destas categorias está na exigência por maior qualidade e menor custo que a inovação proporcionou aos consumidores, isto é, o toque de concorrência que estava faltando.

Agora, motoristas de táxi (e proprietários de licenças, principalmente), por não serem os únicos ofertantes do mercado, são obrigados a sair da zona de conforto e disputarem pelos consumidores. Alguns primeiros esforços começam a surgir, no entanto, a regra geral entre os motoristas de táxi é “nenhum direito a menos”. Embora, como já mencionado, motoristas autônomos de táxi possuam a prerrogativa de optar por trabalhar em qualquer das opções que lhe confiram maiores rendimentos, a sua atuação na linha de frente desta briga leva a crer que seu principal papel é, justamente, lutar pelos interesses dos maiores prejudicados: os proprietários de licenças de táxi, os donos de empresas de cooperativas de táxi, os políticos e burocratas que lutam pela proibição dos aplicativos e pela manutenção do status quo, algo há muito diagnosticado nos manuais de ciências políticas e econômicas sobre o interesse público. Isso tudo implica, caso não tenha ficado claro para o caro leitor, maiores lucros para um seleto grupo à custa de maiores custos para os consumidores.

[1] Gabriel Costeira Machado é economista e professor na Universidade Federal do Rio Grande. É mestre em economia pelo Programa de Pós-Graduação em Organizações e Mercados da Universidade Federal de Pelotas. Cristiano Aguiar de Oliveira é economista e pesquisador na área de Análise Econômica do Direito e Economia do Crime. É doutor em economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atualmente é professor do programa de pós-graduação em Economia Aplicada da Universidade Federal do Rio Grande.

 

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