Não é nova no imaginário de certa esquerda a imagem do capitalismo como um sistema de castas disfarçadas, onde famílias riquíssimas acumulam mais e mais, garantindo boa vida para futuras gerações.
Em seu livro “O Capital no Século XXI”, famoso por ser muito mais comentado do que lido, o renomado economista Thomas Piketty alerta: se ignorarmos as soluções que ele propõe, corremos o risco de afundar o mundo num “capitalismo hereditário”. Nele, as fortunas seguem de pai para filho e, de tão grandes, permitem que os herdeiros vivam apenas com os rendimentos da herança, acumulando mais e mais riqueza sem sequer precisarem trabalhar.
Quando olhamos menos para os discursos políticos e mais para os dados disponíveis sobre famílias ricas, tudo indica que o mundo se parece menos com as projeções apocalípticas e mais com um episódio da série Arrested Development, que retrata a hilária falência da família Blunt.
No Brasil, o exemplo mais famoso é o da família Guinle. Eduardo Guinle, o patriarca, morreu com uma fortuna de 20 bilhões de reais em valores atuais. Para uma comparação mais clara, basta dizer que ele estaria entre os 10 brasileiros mais ricos de hoje, com uma fortuna semelhante à de um dos irmãos Marinho, donos da Rede Globo.
Seu herdeiro, Octávio Guinle, era dono do Copacabana Palace, hotel-símbolo do Rio de Janeiro. Já o herdeiro de Octávio ficou famoso por organizar festas homéricas onde circulava com algumas das mulheres mais bonitas do mundo – a icônica Marilyn Monroe, por exemplo. Hoje, seu filho trabalha como inspetor do presídio de Bangu.
Os dados mostram que o caso das famílias Blunt e Guinle tendem a ser a regra, e não a exceção. Fortunas multimilionárias geralmente não duram muitas gerações. De acordo com uma pesquisa recente do Williams Group publicada pela revista Time, nada menos do que 70% das famílias ricaças dos EUA perdem boa parte da sua riqueza na segunda geração, e incríveis 90% dos herdeiros deixam de pertencer à elite da elite na terceira geração.
Grande parte dos casos parece se resumir a uma irracionalidade que talvez não tenha sido estimada nos modelos teóricos: eles talvez se expliquem pela má educação financeira dos herdeiros, já que muitos dos filhos de milionários não são preparados adequadamente para assumir os negócios da família, o que lhes deixa propensos a erros em sequência. Uma pesquisa do Banco U.S. Trust revelou que 78% dos clientes com mais de 3 milhões de dólares na conta corrente sentem que seus herdeiros não serão capazes de gerir a herança.
O mundo – sim, este mundo imperfeito onde você e outras pessoas vivem – passa neste momento pelo maior ciclo de combate à miséria da história humana, com mais de UM BILHÃO de pessoas saindo da pobreza em duas décadas.
Assustada com a diminuição assustadora do número de miseráveis ao redor do mundo nos últimos anos, a revista The Economist e outros formadores de opinião influentes acreditam que alcançaremos um mundo sem pobreza no futuro próximo. Hoje, o abismo entre ricos e pobres está se fechando em velocidade recorde quando olhamos para a economia global.
A bem da verdade, não há como negar que em países do dito “primeiro mundo”, como os Estados Unidos, a desigualdade de renda é cada vez maior. Movimentos políticos locais, como o conservador Tea Party e o esquerdista Occupy Wall Street, lembram disso a todo o tempo.
As estatísticas sobre mobilidade social, porém, indicam que a situação não é tão distópica quanto alguns sugerem: 77% dos americanos passam, em algum momento da vida, pelo grupo de 20% mais ricos do país; 56% fazem parte dos 10% mais ricos em algum momento da vida e 39% fazem ou farão parte dos 5% mais ricos.
Ademais, muitos economistas sugerem que o crescimento da desigualdade interna em países desenvolvidos seja uma espécie de efeito colateral da redução da desigualdade no resto do mundo. Com a globalização, os mais ricos dos países mais ricos passam a ganhar dinheiro com investimentos em países pobres, que ajudam a diminuir a pobreza local.
A tese, defendida por economistas como Gregory Mankiw e Xavier Sala-i-Martin, é sustentada pelos dados. Nas últimas décadas, os muito ricos de países ricos ganharam muito dinheiro, mas esse pode ter sido o preço de um fenômeno que permitiu que os muito pobres de países pobres ganhassem proporcionalmente ainda mais.
Isso nos leva a outro ponto, igualmente ignorado em muitos espaços: bilionários podem acumular mais e mais riqueza sem que isso piore a vida de quem é pobre.
Nem mesmo a imprensa progressista dos Estados Unidos parece ignorar. O jornal Washington Post, tradicional reduto da esquerda americana, publicou recentemente uma reportagem sobre a pesquisa de Sutirtha Bagchi e Jan Svejnar, pesquisadores da Columbia University, onde eles apontam que o surgimento de bilionários em um país não prejudica os mais pobres e nem mesmo pressiona a desigualdade de renda para cima. Bilionários podem fazer justamente o contrário e ajudar a diminuir a desigualdade.
Segundo o artigo publicado por eles no Journal of Comparative Economics, o que importa de verdade é saber como a riqueza foi acumulada, e não qual o tamanho da fortuna de um Bill Gates ou Warren Buffett. Em sua pesquisa, Bagchi e Svejnar buscaram separar os bilionários que ficaram ricos graças a conexões políticas daqueles que acumularam seus bilhões pela via de mercado, ofertando bens e serviços baratos à população. O resultado apontou que bilionários que enriqueceram graças a conexões políticas tendem a prejudicar toda a população, mas o mesmo não acontece com o “resto”.
No Brasil, onde Eikes e Odebrechts ganham rios de dinheiro do governo com empréstimos do BNDES, não dá para começar a discutir o problema sem levar isso em conta.
Um estudo dos economistas Marcelo Medeiros e Pedro Souza, publicado pelo insuspeito IPEA, tenta apontar as causas da desigualdade de renda no país. A conclusão: o governo é um dos principais responsáveis pela desigualdade e seu impacto é bastante superior ao do setor privado se levarmos em conta a participação de cada um na economia.
Nós mesmos já publicamos um artigo com as cinco medidas do governo brasileiro mais regressivas sob o ponto de vista da desigualdade. Nosso sistema tributário, por exemplo, faz com que pobres paguem proporcionalmente mais impostos do que ricos.
Ao gastar o que arrecadou com esse sistema tributário repleto de distorções, o governo piora consideravelmente o problema que já era grave. A remuneração e, principalmente, a previdência dos funcionários públicos formam uma máquina criadora de desigualdade. O sistema educacional que privilegia universidades públicas, gratuitas e elitizadas em detrimento do ensino básico, também contribui decisivamente para a injustiça social. Por fim, os subsídios a grandes empresas completam o elenco.
Justamente por ser um problema grave, a desigualdade merece um debate mais sério, mas os dados que citei aqui dificilmente são discutidos pelo grande público. Enquanto os cenários apocalípticos e caricaturais dos filmes de ficção científica prevalecerem sobre os estudos e dados que conhecemos hoje, não será possível discutir isso a sério.
Se você se preocupa com o abismo entre ricos e pobres, procure entender o tema de verdade ou corra o risco de, tal como um Dom Quixote, esquecer a realidade e acabar numa luta épica contra moinhos de vento.