Por Valdenor Júnior

 

Há exatos 50 anos, em 08/01/1964,  o presidente dos Estados Unidos Lyndon B. Johnson deu início à chamada “guerra à pobreza” nos EUA, em um discurso que introduziu uma ampla legislação federal de programas de combate à pobreza, logo depois aprovada pelo Congresso, o chamado “Economic Opportunity Act“. (você pode ler e ouvir a íntegra do discurso aqui).

O presidente chamou atenção para o fato de que muitos americanos estavam, por conta da pobreza, alijados de esperanças básicas que precisavam ser satisfeitas: esperanças tais como as de estar empregado em tempo integral com um salário correspondente, de um lar decente para sua família em uma comunidade decente, de boas escolas para seus filhos com bons professores e de segurança quando confrontados com doença, desemprego e velhice. Por isso ele conclamou:

“Este governo, hoje, aqui e agora, declara guerra incondicional à pobreza na América.

Palavras fortes, sentimento intenso, um fim legítimo: acabar com a pobreza. Mas as pessoas mais pobres dos EUA e de qualquer lugar do mundo precisam muito mais do que palavras, muito mais do que sentimento. Precisamos saber quais foram as consequências reais das políticas, ao invés de pressupor que toda pessoa bem intencionada ou de bons valores saberia intuitivamente que elas são boas:

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(Sábio da montanha: “Criar empregos? Consertar a economia? Eu pensei que você fosse perguntar algo mais fácil, como o significado da vida!” / Site do cartoon aqui)

 

Então, vamos analisar alguns pontos, que poderão esclarecer-nos  sobre como sistemas de bem-estar social podem falhar ou ser insatisfatórios, e que inclusive podem ajudar a tirar lições para o Brasil (aliás, se quiser ouvir falar no Brasil, pule para o “8” e se surpreenda):

1 – 19% da população dos EUA estava na pobreza, em 1964. De fato, atualmente, esse número diminuiu para 15%. Contudo, o nível de dinheiro gasto ao longo desse período – aproximadamente 16 trilhões de dólares – traz à tona o questionamento se, na verdade, é a pobreza quem está vencendo essa guerra. A promessa de acabar com a pobreza não se concretizou, mesmo passados 50 anos, mesmo sendo despendidos U$16 trilhões. A pergunta é: por que?

2 – Um dos problemas mais evidentes é o arranjo claramente ineficiente do sistema de bem-estar norte-americano.  Em 2012, o governo federal gastou U$668 bilhões para financiar 126 programas anti-pobreza separados. Perceba o detalhe: 126 programas diferentes.  E ainda temos os programas estaduais  e locais, acrescentando U$284 bilhões à soma total. Em panorama histórico: o que começou como uma simples pensão federal para mães solteiras (Aid to Families with Dependent Children – AFDC), se tornou 126 programas federais distintos, muitas vezes com requisitos de elegibilidade obscuros e gerenciados por burocratas. Ligado a isso, as pessoas pobres podem se “perder” nas obscuridades do sistema, tendo em vista as nuances dos procedimentos burocráticos.

3 – O problema mencionado acima é um fenômeno que pode ser explicado por meio de um conceito mais geral: kludgeocracy (kludge pode ser traduzido como “gambiarra”, “improvisação”, “remendar”). Esse tipo de governo é caracterizado, não tanto pelo escopo de suas atividades, mas sim pela sua complexidade e incoerência, como se suas várias atividades e programas fossem sendo criados sem uma “linha organizadora”, remendados uns aos outros de modo que o resultado final é confuso. Isso torna difícil entender o que o governo está fazendo, e oculta uma tendência crescente da política pública em redistribuir recursos para os mais ricos e organizados às expensas dos mais pobres e menos organizados.

Joshua McCabe chega a dizer que, dada a estrutura singular do Estado americano (múltiplos pontos de veto, sistema presidencial, partidos fracos, etc.), há pouca esperança de escapar dessa kludgeocracy. Robin Hanson argumenta que a regulação excessiva (over-regulation) do governo pode ser um mal: por exemplo, pessoas veem algo de errado nas escolas (públicas), e acrescentam mais regras para “fazer algo”, mas tais regras complicam sua própria implementação, requerindo muitos administradores e assim por diante. (Pense nas brechas que isso abre) Também lembra o visionário William Graham Sumner: a maior ameaça da democracia americana era sua fragilidade frente à plutocracia, aos interesses  concentrados de alguns mais ricos, propiciadas pelas novas relações entre governo e indústrias desde a revolução industrial, de modo que novas garantias constitucionais precisariam ser inventadas.

4 – Outro fator característico do sistema de bem-estar americano: o paternalismo. O escrutínio dos hábitos, vizinhanças, relações de parentesco, compras, dietas dos empobrecidos é constante, bem como há tentativas de ajustar os recebedores de benefícios para um comportamento “apropriado”. De um ponto de vista liberal, isso é insatisfatório, pois representa a transformação do Estado-providência em um Estado-ingerência (ao que muitos liberais ou libertários diriam, “eu avisei!”).

5 – Uma outra característica importante do sistema de bem-estar americano está correlacionada com a ideia de apenas atingir aquelas pessoas que precisam mesmo de ajuda governamental: o alto grau de segmentação, de seletividade. Alguns dos programas principais, dentre eles o já abolido Aid to Families with Dependent Children – AFDC, tinha como destinatários principalmente mães solteiras.

Eu já elogiei a segmentação/seletividade no bem-estar social em outro texto neste blog, levando em conta como todos os sistemas de bem-estar tendem a beneficiar desproporcionalmente a classe média (lembrando que os EUA também tem esse tipo de benefício, como as escolas públicas, o financiamento do ensino superior, o sistema de aposentadoria…), ou seja, pessoas que poderiam arcar com seus próprios custos. Contudo, a segmentação nos EUA foi geralmente mal projetada, tanto pela profusão de programas separados, como pelos incentivos à dependência: uma vasta literatura atesta a dependência de beneficiários (especialmente mães solteiras pobres) ao AFDC, e Edmund Phelps defende que o sistema de bem-estar tem efeitos colaterais prejudiciais aos trabalhadores por seus impactos na disponibilidade de empregos, na recompensa em geral do trabalho e na moral de comunidades mais pobres, criando barreiras à inclusão destas pessoas em uma economia de livre iniciativa e inovação.

Tanto isto é verdade que a legislação federal que vinha desde a época do presidente Johnson foi alterada no mandato do presidente Bill Clinton, com o chamado “Personal Responsibility and Work Opportunity Act“. Houve a constatação, na década de 90, de que o AFDC havia sido um fracasso em tirar seus destinatários da linha da pobreza. Em 1996, o AFDC foi substituído pelo mais restritivo “Temporary Assistance for Needy Families” (TANF) e o objetivo principal da reforma era atrelar o sistema de bem-estar social à busca por empregos e à inserção no mercado de trabalho. Aqui foi enfatizado um promissor programa (que já existia, mas em escala menor) que realmente poderia ajudar as pessoas a sair da pobreza, inspirado no Imposto de Renda Negativo do Milton Friedman: o Earned Income Tax Credit (EITC).

6 – Os dois programas mais promissores para uma reforma ainda mais completa do bem-estar norte-americano são, segundo John McCabe, o “Child Tax Credit” (CTC) e o”Earned Income Tax Credit” (EITC), já mencionado acima. Ambos são créditos fiscais (como se fosse uma devolução de receita tributária), sendo o CTC ligado aos dependentes e o EITC um subsídio salarial, no sentido de que o destinatário deste benefício (que necessariamente é um trabalhador de baixa renda) recebe um percentual a mais em cima do seu salário. (o percentual depende de status civil, de ter ou não filhos, e assim por diante; e você tem de comprovar certos requisitos) Existem evidências de que ambos são mais efetivos em tirar as pessoas da pobreza, em especial o EITC. (veja aqui, aqui e aqui) Então minha aposta seria para reformar esses dois, especialmente o EITC, de modo que eles realocassem a (quase) totalidade dos demais. Tornaria o bem-estar como um todo mais eficiente e muito mais amigável aos mais pobres.

7 – Agora, também é importante não exagerar a dimensão da pobreza (absoluta) nos EUA. A linha da pobreza usada nos EUA cobre uma renda maior que aquela usada para os países subdesenvolvidos, de 2 dólares por dia. Muitos dos pobres nos EUA não são pobres nesse sentido absoluto. Ainda mais, comparando-se as pessoas pobres de 1964 com as pessoas pobres de 2014, mesmo que o percentual não tenha mudado tanto (de 19% para 15%), as pessoas que são pobres em 2014 estão melhor do que as pessoas que foram pobres em 1964, levando-se em conta o crescimento econômico e o acesso a maiores oportunidades, inclusive em termos de consumo e inovação.

O Steven Horwitz defende que a guerra à pobreza tem sido vencida no front que diz respeito à operação dos mercados. O que também repercute que existem certas intervenções governamentais que devem ser eliminadas para que os mercados beneficiem ainda mais os pobres nos EUA, como exemplo, o fim de várias formas de licenciamento ocupacional e mesmo o salário mínimo, a abertura das escolas à competição e o fim da guerra às drogas (no artigo tem a justificativa dele para isso) Eu mencionaria aqui também, seguindo o Matthew Iglesias, a reforma da política urbana nos EUA, de modo que acabe a restrição artificial à oferta de habitação e valores como o de aluguel sejam reduzidos por mecanismos de mercado. (lembrar que o Anthony Ling, colaborador deste blog, comenta exaustivamente sobre isso em seu blog pessoal, e já falou aqui mesmo de questões similares em relação a outro país desenvolvido: a Dinamarca)

Então, você deve lembrar que, se a guerra contra a pobreza for medida em termos de redução percentual da população na pobreza, em 50 anos a redução foi apenas de 4%. Mas, se medirmos em termos de quão bem (ou quão mal) estão os pobres hoje nos EUA relativamente aos pobres de 50 anos atrás, a conclusão é que a guerra à pobreza tem sido bem-sucedida, pela simples operação de mecanismos de mercado (suplementados por programas como o EITC , o CTC e mesmo os vale-alimentação), ainda que existam barreiras à atuação dos mercados, levando-se em conta a intervenção governamental nos EUA (inclusive sua kludgeocracy de que falamos). O livre mercado promove justiça social.

8 – Por fim, lembre o seguinte: tenha sido a guerra à pobreza mal sucedida como foi nos EUA, os 5% mais pobres dos EUA (ou seja, os mais pobres entre os pobres) tem, na média, renda superior à 68% da população mundial e também superior à de aproximadamente 50% da população brasileira. Ser pobre em uma sociedade rica é muito diferente de ser pobre em uma sociedade pobre ou de renda média. Basta conferir neste gráfico* aqui:

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  (A discussão sobre esse gráfico, com dados de 2005, pode ser encontrada aqui e aqui)

 

*P.S: se você não entendeu o gráfico acima, pode reler o meu primeiro texto aqui do Mercado Popular. Transcrevo um trecho: “Milanovic divide a população desses países em vinte “vintis” (grupos de 5% da população), ordenados de forma crescente em relação à renda (Ex: O primeiro vintis representa a parcela mais pobre da população, enquanto o vigésimo representa a mais rica). Esses “vintis” estão representados no eixo horizontal do gráfico. No eixo vertical, a população do mundo inteiro é dividida em grupos de 1% (“percentis”), também ordenados de forma crescente em relação à renda. Com isso, ele calcula a renda média de determinado “vintil” e verifica em qual “percentil” do mundo esse “vintil” fica.”

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