Por Sheldon Richman
Traduzido por Pedro Menezes
[dropcaps]L[/dropcaps]iberais são individualistas. Mas dado que a palavra “individualista” pode ter significados diferentes e até opostos, confesso que esse não é um rótulo muito informativo.
O individualismo faz dos liberais inconformistas por natureza? Longe disso. Alguns liberais flertam com a rebeldia, mas grande parte vê o inconformismo como um obstáculo para alguns objetivos mais importantes. A maior parte dos homens liberais não vê problema em vestir terno e gravata quando este for o traje esperado por outros para a situação.
Praticamente todos os liberais seguem os costumes sociais mais comuns, e também se adequam às convenções linguísticas simplesmente por serem úteis à comunicação – e não conheço um só liberal que veja nisso uma tirania. Na verdade, conforme a apreciação de alguém pelo pensamento liberal se aprofunda, também se aprofunda a compreensão do mecanismo crucial pelo qual moldamos nosso comportamento através da evolução dos costumes e regras que nada têm a ver com o estado – as verdadeiras leis. É exatamente isso que forma nossa noção de sociedade.
Liberais são individualistas também em outros sentidos da palavra. Falo do individualismo metodológico, segundo o qual toda análise de fenômenos econômicos e sociais deve observar o fato de que apenas o indivíduo age. Em outras palavras: apenas indivíduos têm preferências, valores, intenções, propósitos, aspirações, expectativas, entre outras coisas. Sendo mais preciso, essas palavras nem mesmo se referem a coisas que nós temos, mas a coisas que nós fazemos. Nós não temos valor, nós valorizamos; não temos preferências, mas preferimos; não temos propósitos, mas agimos propositadamente. Aqui me lembro da frase de Thomas Szasz, segundo quem a mente não é um substantivo, mas um verbo. (Disso segue que não podemos perder nossa mente.) Um dos meus livros favoritos sobre este o assunto é The Concept of Mind, de Gilbert Ryle.
A partir daqui, basta um pequeno passo para chegarmos à conclusão de que a única unidade moral é o indivíduo. A moralidade abarca aquilo que indivíduos devem ou não fazer, e qual o estilo de vida mais apropriado para os seres humanos. Dentre outras coisas, a moralidade interpessoal trata de quando o uso de força é permitido (se for), do que decorre ideias como direitos, compromissos e deveres, todas elas atribuíveis apenas ao indivíduo.
Nada disso diminui a importância das comunidades, sejam elas baseadas em pequenos grupos ou por grandes sociedades. O que o individualismo metodológico nos lembra implicitamente é que será impossível analisar a dinâmica de um grupo sem antes compreender seus componentes. É razoável falar sobre as ações de uma turma de faculdade. Mas será impossível evitar os mal entendidos se não pudermos entender que turma indica apenas um grupo de estudantes que se relacionam com colegas e professores, com uma instituição específica e com a sociedade. Quando dizemos que “A turma saiu da sala”, não nos referimos a um massa única que passou pela porta, mas a vários indivíduos que fazem parte desta turma e saíram da sala.
Trata-se de um argumento simples e difícil de ser mal interpretado. Mas o individualismo moral e metodológico com frequência é desconsiderado a cada vez que a imprensa, intencionalmente ou não, atribui preferências e ações “aos Estados Unidos” ou “ao governo americano”. A informação seria mais clara e precisa se lembrássemos que é o indivíduo, dotado de interesses e preferências, quem age. Substantivos coletivos são válidos desde que lembremos por quem eles são formados.
Nenhum aspecto do pensamento liberal adere àquilo que os críticos chamam de “individualismo atomístico”. Seria no mínimo curioso descrever assim justamente um conjunto de ideias claramente simpático ao comércio e à divisão do trabalho. Foi por isso que, tempos atrás, propus um rótulo alternativo: individualismo molecular. Liberais em geral concordam com os antigos filósofos gregos que reforçavam a natureza social dos seres humanos. Junto a isto está o fato de os humanos serem, inespecavelmente, usuários da razão e da linguagem. Um legítimo indivíduo atomístico não seria inteiramente humano, e jamais se desenvolveria por completo por não ter contato com outros indivíduos que com ele compartilham o uso da razão e da linguagem. A capacidade de levar nosso pensamento além de um nível primitivo depende principalmente da linguagem, que é social por natureza.
É ridícula a tentativa da esquerda de caracterizar liberais como pessoas rudes, auto-suficientes, anti-sociais, misantropas, residentes numa montanha isolada do mundo – quase um Ted Kaczynski sem explosivos. Os liberais, ao menos aqueles que não ignoram os fundamentos do liberalismo, também se importam com os fenômenos sociais, e é isso o que explica o fascínio pela economia, especialmente pelo pensamento da Escola Austríaca.
Não creio que esteja ignorando nada do que escrevi acima se disser que a sociedade como um todo é maior do que a soma de suas partes. A economia não é uma máquina, mas pessoas trocando coisas. Nós somos a economia que os políticos tentam controlar. Nossa continua interação social gera espontaneamente – de baixo para cima – uma ordem vasta e complexa de instituições inter-relacionadas que nenhum grupo ou indivíduo seria capaz de absorver ou planejar.
O mundano sistema de preços surge como exemplo perfeito, mas mal compreendido. Preços são essenciais para nosso bem-estar porque eles nos permitem planejar nosso cotidiano. Eles surgem através dos sinais que enviamos quando produzimos ou consumimos bens e serviços. Os preços guiam nossas decisões sobre o que produzir para vender, quanto produzir e como produzir. Os lucros ou prejuízos resultantes revelam como o produto foi aceito pelos consumidores que tentamos servir. Realizar trocas sem preços seria como tentar voar com os olhos vendados, como demonstrou Ludwig von Mises em sua demolição do planejamento central da economia. Este é o primeiro passo do famoso debate sobre o cálculo econômico no socialismo cálculo econômico no socialismo.
Mises tinha muito a dizer sobre o processo de mercado e sua consequente refutação da crítica esquerdista ao liberalismo como um conjunto de ideias hiper-individualistas. Por exemplos, diz-se metaforicamente que um mercado liberto deslocaria recursos daqueles que produzem mal para aqueles que produzem bem. Não se trata de enxergar o mercado ou a economia como entidades unas e independentes de indivíduos, pois como disse anteriormente, apenas indivíduos podem agir utilizando meios para atingir fins determinados. Uma análise séria deste deslocamento (ou alocação) de recursos certamente fará referência às preferências dos consumidores, que podem comprar ou não os produtos disponíveis.
Mas nenhum indivíduo sozinho decidiu, por exemplo, que empresas como Varig e Mesbla deveriam falir. Esta certamente foi uma decisão coletiva, mas não se deu através de uma imensa reunião com pessoas discursando e votando no que deveria acontecer com elas. A falência de uma empresa (e, consequentemente, a transferência do seu patrimônio a terceiros) é o resultado de muitas decisões individuais, quase todas elas sem qualquer coordenação consciente. Os consumidores simplesmente podem ter preferências que não condizem com o plano de negócios e o modo de gestão da empresa. Com isso, seus executivos são obrigados a procurar outros empregos, não importa o quanto reclamem do que aconteceu.
Reflita sobre isso: Quando um mercado é realmente livre e competitivo, ao invés de submisso políticos que o controlam para proteger interesses privilegiados, somos nós – coletivamente – quem decidimos quem controlará os meios de produção. E isso sem precisar apelar aos meios jurídicos – ou seja, à expropriação dos bens de uns para redistribui-los a terceiros. É esta a principal consequência da verdadeira livre competição e liberdade individual.
Um mercado liberto daria à esquerda tradicional aquilo que ela diz almejar: uma sociedade onde a cooperação livre, voluntária e pacífica é responsável pelo controle dos meios de produção em nome do bem de todos.
Alguém que queira o bem da humanidade certamente não poderia pedir mais do que isso.
Este artigo foi originalmente publicado no site da Future of Freedom Foundation.
Sheldon Richman é vice-presidente da Future of Freedom Foundation, ex-editor da revista Freeman, da Foundation for Economic Education, e já publicou artigos em grandes veículos como o Washington Post, Wall Street Journal, Reason e, é claro, o Mercado Popular.