Por Rodrigo Viana
Entre grande parte dos brasileiros que costumam acompanhar as andanças políticas dos Estados Unidos, percebo que eles geralmente caem em erros conceituais de teoria política e do próprio cenário político americano. E isso independe do grupo em qual tal pessoa se identifica. Por isso resolvi elucidar alguns pontos importantes sobre o tema, mas sem aprofundar neles. Ser simples, porém objetivo.
Dentro do cenário político americano os dois maiores grupos são dos conservatives e dos liberals. O Partido Republicano, de direita, defendendo os interesses dos conservatives e o Partido Democrata, de esquerda, defendendo os interesses dos liberals[1]. Porém há subgrupos dentro dos próprios partidos que diferem dos grupos majoritários mencionados. Irei mencioná-los depois com foco na esquerda.
Os liberals não são e não devem ser confundidos com o que chamamos no Brasil de “liberal” (às vezes, liberal clássico), que são os defensores do estado mais limitado, da livre concorrência e da propriedade privada. O equivalente ao liberal por lá é chamado de libertarian (em alguns livros pode-se encontrar os termos classical liberal ou market liberal, mas só em casos bem específicos) e não deve ser confundido com o “libertário” em seu sentido tradicional, defensor do anarquismo político. O libertarian tende a estar mais inclinado ao cenário político da direita[2], como sendo representado por grupos internos do Partido Republicano ou atuando de forma autônoma no Partido Libertário.
Assim, os liberals defendem o que no resto do mundo é chamado de “liberalismo social“, um tipo de liberalismo mais atrelado à tradição rousseauniana[3]. Assim como seus “primos” libertarians, os liberals defendem a democracia liberal, o sistema republicano americano, o estado de direito e a economia de mercado. Contudo, eles são mais críticos às ideias absolutas da propriedade privada e da liberdade irrestrita dos mercados dos libertarians. Por este modo, defendem um papel maior do estado para intervir quando assim acharem necessário, sem, no entanto, interferir na própria existência do sistema de mercado. Por exemplo, o fornecimento de benefícios assistenciais para os mais fragilizados economicamente como auxílio-desemprego, bolsa de estudos, etc. Um bom exemplo disso pode ser encontrado na época que se colocou em prática as diversas políticas econômicas contra a crise de 1929 na era da Grande Depressão.
Muitos brasileiros que se identificam com as ideias liberais e conservadoras olham este tipo de esquerda como equivalente à nossa esquerda tradicional, baseada na social-democracia (seja a moderna, de terceira via ou a “clássica”, do socialismo democrático). Isso é um erro! Não existe representante equivalente no cenário político brasileiro das ideias dos liberals. Este grupo é bem específico da tradição anglo-saxônica.
No Reino Unido, por exemplo, isso é mais fácil de perceber. Defensores das ideias dos liberals americanos em terras britânicas são representandos pelo Partido Liberal-Democrata. Já defensores britânicos da social-democracia estão mais atrelados ao Partido Trabalhista.
Mas os social-democratas americanos também estão presentes no cenário político de seu país, embora em número menor. Geralmente eles são chamados de left-liberals e constituem um grupo bastante representativo dentro do Partido Democrata. Left-liberals são os apoiadores do sistema escandinavo de gestão pública, em que defendem o fornecimento e universalização de serviços estatais como saúde, educação e previdência, assim como os programa assistenciais normalmente defendido pelos liberals. E assim como seus companheiros liberals mais moderados, left-liberals também defendem o estado de direito, o constitucionalismo, uma aproximação com organizações populares como sindicatos e ativismo e compartilham de uma visão de sociedade mais progressista como: favoráveis ao direito ao aborto, casamento homossexual e a liberação das drogas; apoiam comunidade formadas por minorias, são críticos às políticas bélicas no exterior, porém tendem a ser mais críticos que os liberals quanto ao papel das corporações na economia.
Mas perceba a diferença. Os left-liberals podem desejar que o estado ofereça uma rede de saúde universalizada para todos, sem distinção de classe e sem atuação do poder privado nesta área. Com os liberals tais políticas soam diferenciadas e não possuem um apelo único entre seus apoiadores: alguns podem defender um sistema estatal de rede de saúde, contudo não retirando o papel das empresas privadas no setor, e outros nem mesmo isso, preferem excluir a ideia de uma rede de saúde estatal, mas apoiando programas assistenciais concedidos pelo governo como um vale-saúde, algo para ser usado em redes privadas como forma de suprir a demanda das pessoas mais fragilizadas economicamente. Mas isso não quer dizer que os left-liberals defendem que o estado tome conta de toda a vida econômica. Não, eles não defendem uma economia do tipo soviética. Na prática, o que diferencia liberals de left-liberals é a concepção do quão o estado deveria atuar na vida social, uma vez que não existe uma cartilha a ser seguida entre os dois grupos.
Então quando se for comentar sobre a esquerda americana, Partido Democrata e liberals, tente evitar certas comparações com a nossa realidade política. Não dá para enquadrá-los no nosso cenário, uma vez que a própria esquerda deles seria até mais moderada que a nossa. Tais questões são bem específicas da cultura de cada povo e por isso mesmo devem ser vistas como únicas.
Notas:
[1] Existe também um grupo de tendência conservadora no Partido Democrata, eles são chamados de Blue Dogs Democrats. Os Blue Dogs adotam um estilo de vida mais conservador, porém são mais moderados, preferindo aderir ao estilo dos liberals na atuação da esfera economia. A maioria dos conservadores do Partido Democrata vem dos estados do sul, pois existe uma tradição de sulistas americanos votarem no Partido Democrata.
[2] Embora os liberais tem se alinhado mais com as facções da direita americana, vale mencionar que dentro do próprio Partido Democrata existe uma pequena facção liberal chamada Libertarian Democrat. Estes liberais, por vezes chamados de liberaltarians, se diferem dos liberais do Partido Republicano e Libertário por adotar políticas diferenciadas como justiça social liberal, imposto único sobre a propriedade (a maioria defende o modelo de propriedade proposto por Henry George e não o modelo de John Locke), foco nos cortes de subsídios às empresas e não da população carente (contrário à tendência pró-corporativa de liberais do Partido Republicano e Libertário), apoiam um estilo de vida mais progressista (diferente dos liberais de tendência mais mais conservadora do Partido Republicano e de alguns do Partido Libertário) e são mais combativos em defender os direitos individuais do que os liberais do Partido Republicano, dado que, historicamente, o Partido Democrata tem atuado mais firmemente nestas questões. Contudo, a influência deste grupo no Partido Democrata ainda é mínimo.
[3] Em tempos modernos, dois dos principais teóricos que mais influenciaram o pensamento dos liberals foram o filósofo político John Rawls e o economista John Maynard Keynes.
Rodrigo Viana é programador, tradutor e escreve para o Portal Libertarianismo, A Esquerda Libertária e Libversiva!. Em seus interesses incluem disciplinas como história, sociologia, economia e filosofia política. Quando não está falando sobre política, provavelmente está falando de música ou algum assunto relacionado a cultura pop. Siga seu twitter: @VDigo