Por Nelson Rodrigues

“Ontem, o Wilson Figueiredo faz-me o apelo dramático: — “Não misture o Brasil com o escrete!” Segundo o caro confrade, há todo um abismo entre a pátria e a seleção. Deixo o telefone numa amarga perplexidade. E das duas uma: — ou é o colega que não enxerga o óbvio ou sou eu que vejo uma relação. Falsa. Mas com uma pertinácia bovina reafirmo: — o escrete é o Brasil; é a pátria dando botinadas.

Confesso, porém, que sou um brasileiro obsessivo e repito: — um brasileiro delirante, que precisa ver o Brasil, por todas as partes. Há pouco, numa exposição em Bruxelas, premiaram uma das nossas marcas de fósforo. Pois bem. A partir de então, uma caixa de fósforos passou a ser, aos meus olhos, um símbolo nacional, dos mais válidos e incisivos. Era a pátria em palitos. De uma outra feita, houve um concurso de gado, em Uberaba. Selecionaram um dos animais e lhe enfiaram pelo pescoço uma fitinha, com uma medalha pendurada. E a vaca premiada foi, por um momento, o Brasil, a pátria viva.

Agora é a vez do escrete. E não importa que o Wilson Figueiredo proteste, com escândalo e irritação: — “Futebol é clube e não pátria!” Lá fora, quando se quer conhecer um povo, o sujeito recorre à ficção. Mas no Brasil, não. O nosso romance é ralo, é escasso de grandes símbolos nacionais. Quer-se um Tartarin e não temos um Tartarin, quer-se um Peer Gynt e não temos Peer Gynt, um Karamázov e não há um Karamázov. É verdade que temos um Paulo Francis, ressentido como um Raskólnikov de galinheiro. Mas o Paulo Francis ainda não está impresso.

Eis a verdade: — no Brasil, o futebol é que faz o papel da ficção. O sujeito quer um herói de botas e penacho? um supertipo? ou mau-caráter, em dimensão gigantesca? Encontraremos tudo isso e muito mais nos clássicos imortais ou nos amistosos caça-níqueis. Lembro-me de uma pelada a que assisti, faz tempo. Um dos adversários era o brioso Rosita Sofia. E o outro devia ser o Manufatura, ou Mavilis, sei lá. De repente, a coisa começou a crescer em campo. Tudo adquiriu um dramatismo inesperado e colossal.E me doeu não ser um Camões, ou um Sófocles, ou um Tolstói. Eu via, ali, todo um material abundantíssimo para uma Guerra e paz.

E, no entanto, não há em toda a já vasta obra de Guimarães Rosa uma única e mísera pelada. Todo o seu monumento romanesco não inclui uma vaga e lírica botinada. Nada. O ficcionista ainda não desconfiou que os nossos descobridores, os nossos argonautas de cristal, os nossos lusíadas, os nossos mares — estão no futebol. Toda a experiência vital e romanesca do Guimarães Rosa vai se enriquecer quando ele descobrir o Maracanã.

Amigos, aí é que está: — o sujeito que quiser conhecer o Brasil terá de olhar o escrete. Não há nada mais Brasil do que Pelé. E repito: — todo o Brasil estava no goal que Pelé marcou, de cacetada, contra o País de Gales. Também a desgraça venta no futebol. Pior do que Canudos foi a vergonha épica de 50. No Maracanã inaugurado, o uruguaio Obdulio Varela venceu, no palavrão, o escrete e toda a nação.

A ressurreição nacional data de 58. Que era o brasileiro antes da Jules Rimet? Um humilhado, um ofendido. No seu amargo cotidiano, sofria desfeitas da mulher, da criada e, até, do caçula. Pois bem. A vitória de 58 mudou até as nossas reações domésticas. O brasileiro já entra em casa dando patadas. Agora é ele quem ofende, é ele quem humilha. E toda essa nova e triunfante disposição vital nós devemos ao escrete.

Eu queria dizer, ainda, que o Brasil também está no arremesso lateral de Djalma Santos, o negro. É um grave, um transcendente arremesso lateral. Amigos, imaginemos a cena. A bola está no chão. E vem Djalma Santos. Ele se curva. Apanha a bola e a carrega, a mãos ambas, como diria o Eça. Não é um esforço leve e frívolo. Não. Djalma Santos parece estar suspendendo um piano. Ele ergue a bola. Balança o corpo. E aí é que está o sortilégio: — o seu arremesso lateral é solene, forte, herói — como um tiro de meta. É uma bomba. Amigos, pode-se ligar a potencialidade manual de Djalma Santos à nossa epopeia industrial”.

 

Nelson Rodrigues foi um dramaturgo e escritor. Apesar de ter morrido em 1980, suas frases ainda resumem bem o que aconteceu durante a Copa. A Dilma, ele diria que, no Brasil, vaia-se até o minuto de silêncio. A Suárez, diria que não se faz política, literatura ou futebol com bons sentimentos. E depois da reação coletiva aos 7 a 1, repararia como o Brasil é impopular no Brasil. Nestes dias em que só se fala sobre Brasil e futebol, este Mercado Popular achou razoável publicar uma crônica de Nelson Rodrigues.
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