por Will Moyer

[dropcaps]O[/dropcaps]s limites do liberalismo começam pela sua ética. Liberais limitam sua razão moral a algo que chamado de uma ética legal (ou uma ética política, isto é referente ao uso social da violência). Tal ética, baseada em direitos de propriedade e no princípio da não-agressão (PNA), é a pedra fundamental da moralidade liberal. Mais esse quadro moral é deliberamente restrito.

Murray Rothbard o descreve aqui:

Pois nós não estamos, ao construir uma teoria de liberdade e propriedade, i.e., uma ética “política”, interessados em todos os princípios morais pessoais. Não estamos, com a presente teoria, preocupados se é moral ou imoral para alguém mentir, ser uma boa pessoa, desenvolver suas habilidades, ou ser gentil ou mesquinho com seus vizinhos. Estamos interessados, neste tipo de discussão, somente com aquelas questões “éticas políticas”, como o papel apropriado da violência, a esfera dos direitos, ou as definições de criminalidade e agressão.

Liberais usualmente alocam assuntos que estejam para além de direitos de propriedade e violência para o campo da estética, que Rothbard descreveu como moralidade “pessoal”. Nesses assuntos de moralidade “pessoal”, a teoria liberal se silencia.

Se você aceita as premissas de auto-propriedade e direitos de propriedade, este é um quadro analítico logicamente consistente e significativamente poderoso. Mas se você permite-se a si mesmo ter percepções morais mais amplas, tal quadro analítico torna-se em alguns casos completamente inadequado – senão patentemente grotesco.

Tome, por exemplo, a análise de Rothbard sobre as obrigações [morais] que pais têm em relação a seus filhos:

Os pais, portanto, não podem assassinar ou mutilar seu filho, e a lei adequadamente proíbe um pai de fazer isso. Mas os pais deveriam ter o direito legal de não alimentar o filho, i.e., de deixá-lo morrer.  A lei, portanto, não pode compelir justamente os pais a alimentar um filho ou a sustentar sua vida. (Novamente, se os pais têm ou não têm mais propriamente uma obrigação moral ao invés de uma obrigação legalmente executável de manter seu filho vivo é completamente outra questão.)

Pelo menos Rothbard reconhece que as crianças estão sujeitas ao PNA. Mas, para além da agressão direita (ou talvez somente aquela agressão que resulte em morte ou mutilação), ele enfatiza que a teoria liberal nada diz. Um pai tem o direito de matar seu filho de fome. Podemos achar que isso é moralmente condenável, como Rothbard certamente o achava, mas essa consideração está para além dos confins da ética política.

Walter Block, outro teórico liberal, tentou restringir ainda mais essa lógica, ao afirmar que abandonar uma criança é permitido (quando ninguém quer se apropriar [N.T.: “homestead”] da criança) e que o PNA não se aplica às crianças. Por quê? Porque crianças não são seres humanos completos com os mesmos direitos de adultos. Eles existem num hiato entre animais e humanos. O que significa que seria permissível usar de agressão contra elas.

Tanto Rothbard quanto Block aceitam que algum nível de abuso infantil viola o PNA (na visão de Rothbard) ou deslegitima a posse paterna da criança (na visão de Block), mas o que constitui o limite para que seja considerado “abuso” é um “problema de continuum” para os liberais. Alguma agressão contra crianças é legítima, mas agressão demasiada não seria. É uma grande zona cinzenta.

É um pouco vergonhoso que tantos liberais tenham tão pouca clareza moral nesse assunto.

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[dropcaps]O[/dropcaps] tratamento de animais também estaria fora do domínimo da ética política. Animais não têm direitos  – a não ser que eles consigam peticionar racionalmente por eles – então seres humanos devem ter direito de tratar animais como bem entendem. O mesmo é válido para o planeta e o meio ambiente. Para que a Terra seja levada em consideração na filosofia liberal, ela deve ser propriedade privada. Outros assuntos importantes como religião, raça, gênero, sexualidade e classe ou são analisados exclusivamente pelas lentes dos direitos de propriedade ou são simplesmente ignorados.

Lew Rockwell confirma tal assertiva:

O liberalismo concerne ao uso da violência na sociedade. Isso é tudo. Não há nada além disso. Ele não é feminismo. Tampouco é igualitarismo (excepto num senso puramente funcional: todos são igualmente carentes de autoridade para usar de agressão contra os outros). Ele não tem nada a ver com estética. Nem tem algo a dizer quanto a religião, raça, nacionalidade ou orientação sexual.

Quanto a religião, Rothbard diz:

Não há qualquer ligação entre se apoiar ou se rejeitar o liberalismo e a posição de alguém na sociedade. […] Liberais acreditam que a liberdade é um direito natural incrustado no direito natural quanto ao que é correto para a humanidade, de acordo com a natureza humana. De vem esse conjunto de leis naturais – da natureza em si ou de um Criador – é uma importante pergunta ontológica, mas é irrelevante para a filosofia política e social.

Eu tenho dificuldade em aceitar que religião e as origens da humanidade sejam irrelevantes para a filosofia social. Talvez somente para uma filosofia deliberadamente limitada, com um grande campo socialmente conservador em seu meandro.

De fato, o liberalismo – como um corpo teórico e filosófico – não tem de se posicionar em toda questão social. Ele pode se abster a falar sobre raça, gênero e classe. Ele pode se silenciar quanto a formas não-violentas de hieraquização e violência. Mas, nesse caso, ele será uma filosofia social incompleta.

Não há problema com isso, em especial se essa for uma escolha consciente e intencional por parte dos liberais. “Nós vamos focar nosso trabalho ideológico nesta área e deixar que outros sistemas intelectuais cuidem de todo o resto”. Mas certamente não era algo que de que tinha consciência quando eu era um liberal. Ao contrário, eu achava que o liberalismo oferecia uma análise social completa e robusta. E eu suspeito que outros também o achem.

E esse não é o caso puro de especialização conveniente. Muitos liberais são pró-ativamente hostis contra aqueles que vão além das fronteiras restritas da filosofia moral liberal – ou que procuram expandi-la. Liberais que vocalizam suas objeções contra agressões contra crianças, posicionam-se fortemente em questões religiosas, ou analisam outras questões sociais enfrentaram resistência de outros que preferem uma restrição às fundações do liberalismo “verdadeiro”.

Christopher Cantwell rejeita a expansão do liberalismo ao dizer:

O liberalismo não trata de raça, gênero, religião, sexualidade, ou qualquer grupo que a esquerda gostaria de ver protegida contra ofensas. Nem deve fazê-lo. O liberalismo faz a radical afirmação de que esses assuntos são irrelevantes para além das preferências pessoais, e que nossas perferências pessoais não são como a integralidade da sociedade humanda deve ser organizada. O liberalismo trata de uma coisa e só uma coisa: o uso da força. Ele não pretende nada além do que responder a pergunta sobre quando o uso da violência é permissível. […] Se sua filosofia inclui algo além disso, você tem todo direito de desenvolvê-la, mas dê a ela outro nome. Pare de atrapalhar nossos esforços ao tentar inserir interpretações sem sentido em nossa filosofia, porque elas não tem qualquer espaço nela.

Jeffrey Tucker chama esses liberais de brutalistas. Eles rejeitam perspectiva humanistas de sociedade mais amplas para favorecerem uma aderência estrita e restrita ao núcleo do liberalismo.

Eu consigo entender o desejo de manter o liberalismo com um foco restrito, mas ele é muito raramente apresentado como um corpo altamente especializado e limitado de conhecimento. O liberalismo não é concebido como um campo especializado como a química ou a biologia. Ele deveria ser uma ideologia que descreve (e prescreve) o comportamento humano em sociedade. Mas para tal fim, a restrição a seu núcleo é inadequada.

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[dropcaps]E[/dropcaps]scolha: essa é a questão! Para além de tudo que isso ignora, o quadro analítico liberal inclui uma concepção simplista de consentimento.

Dentro do quadro ético liberal, a escolha é binária. Ou algo foi consentido de forma voluntária ou não foi. Essa concepção de consentimento delineia a diferença entre algo virtuoso e digno de repreensão. De um lado da linha estão os comportamentos socialmente aceitáveis e do outro os comportamentos proibidos.

Roubo, estupro, assassinato e fraude todos caem do lado do não-consentimento – e, portanto, não são “bons”. O outro lado inclui todas as formas de interação humana voluntárias sobre as quais, por nos restringimos a uma ética política, não podemos dizer muito em termos prescritivos. Tudo é permissível.

Mas há muitos tons de cinza no lado voluntário. Um presidente de multinacional está realmente na mesma posição ética que um operário chinês? Na visão liberal, sim. Há muitas diferenças, mas se o operário chinês escolheu voluntariamente trabalhar em sua fábrica, não há diferenças éticas.

Como na questão de matar uma criança por se recusar a alimentá-la, quaisquer objeções morais específicas estão para além do escopo da ética liberal. Eles refletem sua moralidade pessoal, que não deve ser utilidade para ditar comportamentos sociais.

Mas o problema é que escolha nunca é binária. Na verdade, ela é um espectro. Há um degradê que pode ser usado para medir o quão restrita a escolha realmente é. Num extremo está a violência física e no outro a liberdade pura e sem restrições. Mas no meio há muitos tons de cinza que consideram as forças econômicas, psicológicas, culturais, biológicas e sociais que influenciam a decisão humana.

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A maior parte dos liberais reconheceria que esse espectro existe, mas ainda há um forte sentimento dentro do liberalismo que atribui uma virtude a qualquer relação não-coercitiva. E – dentro da ética política – mesmo que a relação não seja “boa”, ela ainda é permissível. É por isso que você ainda vê liberais defendendo certas condições degradantes de trabalho.

Mas um operário chinês tem escolhas muito mais restritas que um empresário rico e branco. Ele é menos livre.

O mesmo é verdade a depender de sua raça, classe, ou orientação sexual. O modo como você foi tratado na infância – por seus pais, professores e colegas – é um fator contribuinte. O modo como pessoas que parecem com você são representados na mídia, também. O mesmo é válido para preconceitos sociais e normas culturais. Esses fatores não implicam que as pessoas estão abertamente sendo forçadas a nada, mas simplesmente que elas suas escolhas estão limitadas por sua posição. Todos o somos, em diferentes medidas.

Não temos que sacrificar nenhuma parte de nosso quadro racional moral ao admiti-lo. Ainda podemos dizer que em um extremo do espectro – o da escolha com menos restrições – é “bom” para os seres humanos e que o outro extremo é “ruim”. E ainda podemos concluir que o uso da força só é uma resposta legítima em face a comportamentos humanos que se situam perto do extremo “ruim” do espectro (roubo, estupro, assassinato).

Mas ao aceitar a existência de um espectro, nós podemos aceitar outras relações que, embora não incluam o uso da força física, podem ser exploradoras, hierárquicas e autoritárias. Como antes, a não ser que admita a existência desse espectro, o liberalismo deixa de considerar uma grande parcela do comportamento social dos seres humanos.

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[dropcaps]T[/dropcaps]odas essas deficiências do liberalismo resultam em uma coisa: uma visão limitada para o futuro. Liberais desejam um mundo sem estado. Para além disso, a filosofia diz muito pouco sobre a interação humana. Ela diz somente que ela deveria ser baseada em direitos de propriedade e não-agressão.

Como combater o racismo? Direitos de propriedade e não-agressão. Como seres humanos deveriam lidar com gênero e sexualidade?  Direitos de propriedade e não-agressão. Qual o papel de hierarquias na sociedade, seja nas famílias ou no local de trabalho?  Direitos de propriedade e não-agressão. Qual o papel tem a relgião e as superstições na sociedade?  Direitos de propriedade e não-agressão.

Eu não nego que, se consistentemente aplicada, a ética liberal faria do mundo um lugar muito melhor do que é hoje em dia. Tampouco deixo de notar que eu estou criticando os liberais por “apenas” querer derrubar o maior impedimento à prosperidade humana no planeta: o estado. Num mundo cheio de gente que defende o status quo e criam desculpas para o privilégio dos poderosos, aqueles com ideias radicais merecem a menor parcela de crítica.

Mas para os liberais que vêem o fim do estado como o objetivo último, eu devo discordar. Não é o bastante.

Embora a eliminação do estado seja um projeto multi-geracional de proporções hercúleas, em diversos aspectos ela é somente o primeiro passo. O objetivo último é a prosperidade humana. E se os liberais acham que eles podem lavar suas mãos e ir pra casa só porque o estado finalmente foi reduzido ao pó, eles estão errados.

O estado é a mais óbvia e brutal fonte de poder e hierarquia, mas está longe de ser a única. O estado é um grande motor de deformação da cultura humana – e o que restar depois que ele for destruído não é algo dado.

Será uma missão dos seres humanas recriar a cultura e a sociedade de uma forma que mais nos convenha. Essa missão terá necessariamente de incluir o exame de questões de raça, classe, gênero, sexualidade, relacionamentos, religião, instituições sociais, e tradições na ausência do aparato estatal. Ela terá de incluir o desmonte de outras formas de hierarquia – tanto coercitivas quanto não-coercitivas.

Ter essa perspectiva hoje e começar o trabalho quanto a todos esses outros assuntos importantes para humanidade não é uma perda de tempo ou uma falta de prioridades. Normais sócio-culturais tóxicas são um inimigo muito menos concreto que o estado, mas elas devem ser igualmente combatidas.

A medida em que eu me afastei do liberalismo é a medida em que eu acho que a ideologia está má equipada para travar essas batalhas. Quando seus objetivos se movem além da eliminação do estado, o quadro ético do liberalismo se torna limitado. Sua visão binária de escolha é superficial e inadequada para julgar as nuances das interações humanas e como o poder e a exploração nos afeta.

Meu objetivo não é uma sociedade baseada em direitos de propriedade. Meu objetivo é a prosperidade humana. Eu quero um planeta livre, ético e humano. Um mundo em que pessoas ajudem as outras e tomem conta dos outros seres vivos. Eu busco um mundo de hieraquias horizontalizadas, inclusive aquelas não-coercitivas. Um mundo com dignidade humana.

Esse pode ser um futuro em que os direitos de propriedade – como nós os concebemos – não existem. Pode ser um mundo pós-escassez, cheio de abundância. Pode ser um mundo em que nossas estruturas familiar são amplamente diferentes. Depende do que nós construirmos.

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[dropcaps]P[/dropcaps]ara aqueles que ainda se consideram liberais, eu digo o seguinte: você não tem que renegar seus princípios atuais. Mas você deve expandi-los. A visão estreita do liberalismo é um desserviço a você mesmo e ao mundo. Expanda seu radicalismo até que ele abranja toda a sociedade. Não deixe qualquer status quo sem contestação. Há muito trabalho a ser feito e muitos radicais são necessários para fazê-lo

 

Will Moyer é escritor e designer gráfico que vive em Medellín, Colômbia.

 

Traduzido por Carlos Góes.

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