Após o atentado terrorista de Orlando, no dia 11 de junho, um ponto recorrente de debate voltou à tona nos Estados Unidos: o controle de armas. Ponto central da agenda da candidata Hillary Clinton e foco contínuo do atual presidente Barack Obama, as armas são tomadas como os grandes vilões em casos de ataques terroristas ou tiroteios em massa. Do outro lado do espectro político, entre os Republicanos, o foco se dá na defesa praticamente incondicional da Segunda Emenda da Constituição Americana, que garante o direito à posse e ao porte de armas.

Um dos pontos mais comentados pela mídia é a suposta prevalência do uso de armas de assalto e automáticas em crimes, em especial nas situações de tiroteios em massa e atentados terroristas. Antes de qualquer análise séria, precisamos definir os termos para não cairmos em confusões de discurso.

Clarificando alguns aspectos sobre armas

Primeiramente, vamos classificar as armas:

  • Armas automáticas (machine guns): toda e qualquer arma que atira mais de um projétil com um único apertão do gatilho. Exemplo: as famosas AK-47, utilizadas pelos exércitos da URSS e pelos traficantes do Rio de Janeiro;
  • Armas semiautomáticas: armas que recarregam o barril após o disparo, mas que só disparam um único tiro por apertão do gatilho. Exemplo: pistolas como a Glock 17 e rifles como o AR-15.

A definição sobre o que seria uma arma de assalto é extremamente nebulosa, não havendo nenhuma regra clara para tal. A legislação de 1994 que proibiu a venda desse tipo de armas por 10 anos — até 2004 — focava apenas em elementos estéticos das armas, como: protetor do barril, tipo de pente utilizado, tipo de mira, entre outros fatores. Ela foi passada usando linguagem pouco clara e se aproveitando da falta de entendimento da maior parte da população sobre armas. Assim, a definição utilizada de armas de assalto fazia pouco ou nenhum sentido e resultou em, praticamente, nenhuma alteração na taxa da queda do número de homicídios durante o período da proibição. É importante lembrar que o massacre de Columbine aconteceu durante o período da proibição das armas de assalto, mas ela não foi capaz de impedir que dois adolescentes matassem 13 pessoas.

Além disso, os valores de mortes por rifles são bem menores hoje do que eram no último ano em que a legislação proibitiva estava em vigor, mesmo com o número de armas nas mãos de civis tendo crescido significativamente desde 2004. Portanto, defender novamente a proibição gera críticas de defensores do porte de armas, e com justiça.

Por fim, outro fator extremamente importante é que, diferentemente do que o comentarista do jornal brasileiro — ou mesmo do que grande parte dos políticos  americanos vai falar –, armas automáticas têm sua venda praticamente banida no país. A única exceção são armas fabricadas antes de 1986, que exigem um longo processo de investigação de histórico criminal e psicológico, numa avaliação que leva cerca de 9 meses para ser completada e que exige um pagamento de uma taxa de US $200,00, sem a garantia da aprovação, sem contar o custo da arma que está na casa de alguns milhares de dólares.

Atualmente, a definição de armas de assalto ficou ainda mais imprecisa, praticamente qualquer rifle é chamado de arma de assalto, e essa é a linha editorial usada na maior parte das publicações. Portanto, ao longo do artigo, usaremos indistintamente os termos arma de assalto e rifles, visto que as notícias apresentadas para o público, infelizmente, já apresentam esse viés.

Tiroteios em massa

O próximo ponto é tentar entender o que são tiroteios em massa (mass shootings). Muitos grupos progressistas tentam definir como tal qualquer troca de tiros que deixe pelo menos três pessoas feridas — podendo estar incluso nessa conta o atirador inicial. Já o FBI trabalha com uma definição mais rigorosa — e que faz mais sentido para os casos alardeados publicamente: qualquer situação de tiros em que três ou mais pessoas sejam feitas vítimas fatais — excluindo o atirador. Graças à diferença nessas duas definições — e à existência de várias outras –, podemos ver manchetes de veículos de comunicação alegando que aconteceram mais mass shootings em um ano do que o número de dias, ou algo mais próximo das situações que realmente geram clamor popular, como o guia publicado pela revista Mother Jones (expoente da esquerda americana) — que considera apenas 4 situações de tiroteio em massa no ano de 2015, por exemplo.

Alguns fatos, entretanto, são incontroversos:

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Assim, antes de cair de cabeça no clamor dos analistas políticos, o certo é analisar os dados para não correr o risco de sair falando besteira.

Homicídios nos EUA

Apesar do aumento da criminalidade recente nas grandes cidades do país, em grande parte por causa de um fenômeno que vem sido chamado de Ferguson Effect, os índices de homicídio e crimes violentos estão em níveis bem menores do que aqueles dos anos 90 e continuam a cair no país como um todo.

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Para identificar qual a relevância das armas de assalto na criminalidade, vamos, então, começar analisando a lista de homicídios na América para o ano de 2014 — o último ano para o qual todas as estatísticas do FBI estão disponíveis:

  • Tivemos 11.961 homicídios nesse ano;
  • 8.124 foram cometidos com armas de fogo;
  • 1.567 com armas brancas (facas);
  • 660 com partes do corpo (punhos, pés, mãos, barriga);
  • 435 com objetos contundentes (como martelos);
  • 199 por privação de oxigênio (afogamento, estrangulamento, asfixia).

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Dentre os homicídios cometidos com armas de fogo:

  • 5.562 foram cometidos com pistolas e revólveres;
  • 262 com shotguns (escopetas);
  • 248 com rifles (ou, como são popularmente conhecidos, armas de assalto);
  • 93 com outros tipos de arma de fogo;
  • 1.959 com armas de fogo não determinadas/mencionadas.

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Logo, no pior dos cenários, em que todos os homicídios cometidos com armas não mencionadas fossem cometidos com rifles, teríamos 2.207 assassinatos com esse armamento. Isso levaria a um número ainda menor que 50% daqueles cometidos com pistolas e revólveres.

Todavia, se a proporção de uso de armas em homicídios for praticamente a mesma para aquelas em que as armas foram mencionadas e para os que não foram, o que é um cenário muito mais provável, teríamos um acréscimo dos homicídios com rifles em 78 e com escopetas em 83. Já com pistolas e revólveres, esse acréscimo seria de 1.765.

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Isso levaria aos seguintes dados:

  1. 22.5x mais pessoas morreriam por causa de revólveres e pistolas do que por causa de rifles (armas de assalto): 7327 vs 326.
  2. 1.3x mais pessoas seriam assassinadas com objetos como martelos do que com rifles: 435 vs 326.
  3. Facas matariam 5x mais pessoas do que rifles: 1.567 vs 326.
  4. Partes do corpo seriam usadas para matar pessoas em 2x mais homicídios do que rifles: 660 vs 326.

Fazendo uma análise por Estados, há grande variabilidade do número de pessoas mortas com rifles por 1 milhão de habitantes em Estados com legislação mais liberal ou restritiva quanto ao porte e posse de armas — classificação essa feita tendo como base a nota no ranking da Brady campaign. Por exemplo, NY — um estado extremamente restritivo quanto à posse de qualquer arma — teve apenas 1 morte com rifle em 2014, enquanto a Califórnia — também extremamente restritiva — teve 1.03 morte para cada milhão de habitantes (40 mortes para 38.8 milhões de pessoas).

Por outro lado, a Geórgia, um estado bem mais liberal sobre a posse de armas — inclusive rifles — teve 1.1 morte por milhão de habitantes (11 para 10 milhões). Já o Alabama — também muito mais liberal — apresentou 0 (zero) mortes por rifles, assim como outros estados liberais em sua legislação sobre armas, como Alaska, Idaho, Maine, Montana — um dos estados com proporcionalmente mais mortes por arma de fogo em 2013 –, South Dakota e Wyoming — outro estado no top 10 de mortes por arma de fogo em 2010.

Vale ressaltar que mais estados com legislação liberal sobre armamentos não apresentaram mortes por uso de rifles em comparação a estados com legislações restritivas (7 contra 6). Ohio, o último estado a não apresentar assassinatos com rifles em 2014, tem uma legislação intermediária (não tão restritiva, mas não liberal). Ou seja, uma legislação extremamente restritiva sobre rifles não necessariamente impacta a taxa de mortes por esse tipo de arma.

Outra estatística terrível de ser observada e extremamente relacionada à violência com armas (em especial a homicídios) é o tempo médio para a resposta policial: 9 minutos. Durante esse tempo, um atirador, mesmo com uma pistola, conseguiria vitimar algumas dezenas de pessoas. Por exemplo, considere o caso em que cada pente tenha 17 balas (Glock 17) e a troca de pentes demore cerca de dois segundos: em um minuto a pessoa poderia atirar, pelo menos, 30 vezes. Assim, com a demora de resposta policial, retirar a possibilidade das pessoas se defenderem de crimes é algo temerário, para dizer o mínimo.

Comentários Sobre os Dados

Ao analisar os dados, no melhor cenário possível, banir as armas de assalto — ou seja, os rifles — geraria uma redução em no máximo 3% dos homicídios, um número de 326 assassinatos por ano. Claro que 3% é uma redução significativa e que deve ser objetivada. Todavia, quais seriam os custos de se conseguir esse resultado? Esse banimento alcançaria o resultado desejado? Os ganhos — redução a aproximadamente zero mortes por rifles — seriam maiores ou menores do que os custos?

Por exemplo, uma parte — pequena — dessas mortes se dá por uso de rifles por traficantes que dificilmente estariam dispostos a entregar seu arsenal para os burocratas estatais. Além deles, provavelmente muitos cidadãos que têm esse tipo de arma não aceitariam por bem entregar seus rifles e munições para o governo, sendo necessário que o Estado invadisse diversas casas para tomar à força as armas. Um cenário desse com certeza geraria um número significativo de mortes e de ferimentos que deveriam ser colocados na conta do governo. Eles valem o preço? E essa medida realmente alcançaria o fim alardeado de reduzir a zero as mortes por rifles e em tiroteios em massa?

Então a próxima pergunta que fica: mesmo que fosse possível tomar todos os rifles das mãos dos cidadãos sem antecedentes criminais e dos criminosos, deveria ser essa medida a prioridade do governo? Ou será que é possível fazer políticas públicas que foquem realmente naquilo que é o maior problema: homicídios cometidos com pistolas e revólveres em comunidades repletas de criminalidade — as quais concentram a maior parte dos casos de homicídios — cuja falta de policiamento é crônica?

Finalmente, uma outra situação deve ser lembrada: quando pessoas treinadas têm posse de armas, elas podem ser e são usadas para evitar que tragédias maiores aconteçam. Um exemplo disso foi o ataque terrorista à cidade Israelita de Tel Aviv-Jaffo poucos dias antes do atentado de Orlando. No caso, dois terroristas abriram fogo contra pessoas que estavam num restaurante que fica em um dos mercados da cidade, matando quatro pessoas. Os atiradores foram detidos por cidadãos armados que conseguiram evitar que os danos fossem maiores. Existem alguns outros casos famosos em que armas foram usadas por civis para impedir tragédias maiores que podem ser lidos: aqui e aqui.

Mencionar esses dados e os fatos associados a eles não quer dizer que nada deve ser feito ou que toda e qualquer legislação sobre o porte/posse de armas é ruim. Também não é dizer que os Estados Unidos não podem fazer nenhuma outra coisa para melhorar a situação, porque sempre que há um problema há medidas a serem tomadas. Todavia, devemos sempre levantar a questão: as pessoas estão colocando como meta as políticas e as atitudes certas?

Armas são instrumentos. Sem os criminosos — ou os negligentes — por trás, elas não matam ninguém, por mais que aparentem ser assustadoras. Há muita coisa a ser feita para melhorar o cenário, principalmente no tocante ao combate de homicídios e à guerra às drogas. Todavia, considerando que a maior parte dos assassinatos acontece em áreas bem definidas — grandes cidades como Nova Orleans, Las Vegas, Chicago, Los Angeles, Baltimore, Washington DC, St. Louis, Detroit –, onde o policiamento e o sistema judicial não têm feito o seu trabalho direito, é possível enxergar formas de salvar muitas vidas sem abolir direitos negativos dos cidadãos. Nova Iorque foi um exemplo de combate à criminalidade nos anos 90 e 2000, e o modelo pode e deve ser expandido para o resto do país a fim de salvar várias vidas que são tomadas todos os anos.

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