Temos um pouco mais que um mês de governo Temer, e a política externa já dá alguns indícios de uma clara orientação. O curioso é que se está caminhando para uma retomada da política feita pelos militares — algo que muitos considerariam impossível –, e não para uma volta ao período de FHC, do mesmo partido do atual chanceler José Serra. Isso quebra toda uma cronologia e perspectiva de onde vinha, estava e iria a política externa brasileira, como vamos analisar neste artigo.

Há um amplo consenso acadêmico de que, a partir dos anos 1990, a política externa brasileira é significativamente distinta do que se fez durante a ditadura militar. É bem fácil perceber por que isso ocorre: por um lado, o país se consolidou como um regime democrático, e o poder passou para mãos civis; e, por outro, o mundo viu a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Essa mudança da inserção internacional do Brasil pode ser definida como uma passagem de uma autonomia pela distância, que guiou a política externa dos militares, para uma autonomia pela participação [1]. A segunda, a despeito de certas particularidades, é a política externa seguida por FHC, Lula e Dilma.

A política externa que vimos ser feita nos últimos 30 anos pode ser dividida em dois subgrupos da autonomia pela participação: o da autonomia pela credibilidade [2] e o da autonomia pela diversificação [3]. O primeiro ocorreu durante o governo FHC e significou a volta da participação do Brasil em órgãos multilaterais, com a assinatura e ratificação de diversos acordos, como, por exemplo, o TNP (Tratado de Não-proliferação de Armas Atômicas) e de acordos de direitos humanos. Dessa forma, o Brasil voltou a participar de maneira efetiva da sociedade internacional, após anos de reclusão. Já o segundo ocorreu durante o período petista, em que houve um aprofundamento da inserção nacional na sociedade internacional a partir de uma consolidação de uma dinâmica de integração com países do Sul Global e emergentes. Nesse sentido, surgem inciativas como o IBAS (Índia-Brasil-África do Sul) e o BRICS.

Em que pese essas diferenças, as duas políticas externas estavam calcadas sob pilares comuns: 1) o Brasil deve ser ativo internacionalmente;  2) deve aceitar sua relevância no cenário regional e global; e 3) deve reconhecer a legitimidade de instituições internacionais estabelecidas, como a OMC e a ONU. Essa base comum fica ainda mais evidente na relação com os países sul-americanos. O avanço da integração com a região é o maior esforço brasileiro durante o período democrático. Esse processo começou com Sarney e com a normalização de relações com a Argentina [4], com a consolidação do Mercosul até as atuais iniciativas da Unasul e CELAC. Uma política que, de relações bilaterais, chegou até a CELAC, que integra toda a América, com a exceção de EUA e Canadá [5].

Essas diferenças de políticas são, na verdade, a projeção na política externa da consolidação da política interna democrática. Uma importante característica da democratização brasileira é que a política externa crescentemente se apresenta como uma política pública [6], ou seja, uma política que não está enclausurada dentro dos gabinetes do Itamaraty, mas cada vez mais sofre influências e estímulos de diferentes atores políticos dentro ou fora do Estado.

Essa democratização está vinculada à formação de visões díspares sobre a política externa que, em grande medida, levou as diferenças citadas entre as autonomias. Há a criação de uma disputa política entre uma visão “autonomista” e uma “liberal” [7], em que a primeira “defende uma projeção mais autônoma do Brasil na política internacional e tem preocupações de caráter político-estratégico dos problemas Norte/Sul”; e a segunda, “sem abrir mão das reivindicações da primeira, procura dar maior importância ao apoio do Brasil aos regimes internacionais em vigência” [7]. Em suma, a política externa nos últimos 30 anos estava se consolidando em uma madura disputa democrática, na qual, apesar de haver algumas divergências, elas estavam baseadas em certos pressupostos e princípios comuns.

Toda essa realidade, porém, não tem sido verificada na forma como Serra e Temer estão conduzindo a política externa brasileira. Nesse mês, houve sinais por parte do atual governo interino que vão de encontro com a consolidação democrática que a inserção internacional do Brasil viveu desde os anos 90. Isso pode ser observado em três notícias recentes: (i) a decisão de não se candidatar à reeleição no Conselho de Direitos Humanos da ONU; (ii) a previsão de deixar 34 organizações internacionais; e (iii) a suspensão da negociação com UE sobre o recebimento de refugiados sírios. As três são antagônicas aos espíritos de maior ativismo e relevância que inspiram a autonomia pela participação tanto da visão “autonomista”, quanto da visão “liberal”. Além disso, a decisão de deixar dezenas de organizações, algumas vinculadas ao Mercosul, é um passo atrás em todo o esforço de integração regional que o país teve por décadas e dificultará a capacidade de integração comercial justamente no momento mais propício em que o principal parceiro – Argentina – tem um governo mais pró-mercado, com Macri, possibilitando que finalmente se concluam as negociações de acordo com a União Europeia (travadas há mais de uma década devido, em grande medida, aos governos Kirchner).

Essas ações, na verdade, estão muito mais próximas da visão que os militares empregaram durante a ditadura e que apresentamos como a autonomia pela distância. Uma visão pela qual a política internacional é de pouca ou nenhuma possibilidade de ganhos, mas com vários ônus. Além disso, há “[na autonomia pela distância] a crença no desenvolvimento parcialmente autárquico, voltado para a ênfase no mercado interno”. Ou seja, a política externa de Serra-Temer está restrita a uma simples política de contenção de pautas negativas, mas inativa no tocante a avanços políticos e econômicos para o país. É uma política isolacionista e cética aos benefícios da globalização, como é o caso do ganho econômico advindo de migrantes, refugiados ou não.

Como um dos mais importantes teóricos sobre as relações internacionais já apresentou [8], poder no meio internacional é capacidade: capacidade de atuar em diferentes fóruns internacionais, capacidade de propagar a sua cultura e os seus valores, capacidade de impor regras a partir da força militar e/ou econômica, capacidade de mediar conflitos entre outros Estados etc. As decisões de Temer e Serra, até agora, estão, como aconteceu durante o período militar, no caminho de tolher as capacidades do país. Por exemplo: as violações perpetradas pelo governo venezuelano tendem a ser debatidas com mais influência na Comissão de Direitos Humanos da ONU, e com essa política externa o Brasil, a potência regional não terá influência decisória nenhuma no processo. A decisão de Serra-Temer por tal política de isolamento e a consequente diminuição das nossas capacidades levarão o Brasil a ser menor em relação ao resto do mundo.

[1] FONSECA JUNIOR, G. A Legitimidade e Outras Questões Internacionais. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

[2] LIMA, Maria Regina Soares de. A política externa brasileira e os desafios da cooperação Sul-Sul. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 48, n. 1, p. 24-59, junho 2005.

[3] VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, G. A Política Externa de Lula da Silva: A Estratégia da Autonomia pela Diversificação. Contexto Internacional, 29, n. 02, 2007. 273-335 p.

[4] SARAIVA, Miriam. Encontros e Desencontros: O lugar da Argentina na política externa brasileira. Belo horizonte Editora Fino Traço, 2012

[5] GRATIUS, S.; SARAIVA, M. G. Continental Regionalism: Brazil’s prominent role in the Americas. CEPS Working Document No. 374. Brussels: CEPS. 2013. p. 1-13.

[6] PINHEIRO, L.; MILANI, C. R. S. Política Externa Brasileira: As práticas das políticas e a política das práticas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2012.

[7] SARAIVA, M. G. As estratégias de cooperação Sul-Sul nos marcos da política externa brasileira de 1993 a 2007. Rev. Bras. Polít. Int., 50, n. 02, 2007. 42-59 p.

[8] WALTZ, Kenneth N. Theory of International Politics. Reading: Addison-Wesley, 1979.

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