A dívida pública do governo federal é um dos temas mais presentes em qualquer discussão política no país – das páginas das seções de economia dos jornais às mesas de bar. Isso não é algo inesperado, pois a gestão da dívida pública é um dos temas que mais diretamente influenciam os cidadãos brasileiros. Afinal, o governo toma emprestado dinheiro em nosso nome e a conta de tais empréstimos também fica para a gente (ou para nossos filhos).
Uma administração responsável da dívida pública pode significar a diferença entre um país próspero, com um bom ambiente de negócios, uma carga tributária justamente distribuída e baixa inflação e outro em que o governo é forçado a impor altos impostos e tolerar alta inflação – matando assim o dinamismo econômico necessario para a redução da pobreza – para lidar com uma dívida muito alta. Parece evidente, portanto, que a dívida é um assunto muito importante – e que deve ser debatida por todos.
Mas há tantas dúvidas, mitos e desinformacão a respeito do assunto que é difícil ter um debate racional sobre o assunto. Por exemplo: o governo realmente gasta 50% dos seus impostos com juros da dívida? O Brasil realmente pagou sua dívida externa? Declarar moratória da dívida é uma boa opção? Temos respostas pra todas essas perguntas abaixo.
O propósito desse artigo é servir como guia para o cidadão interessado que se sente perdido com as tecnicalidades da discussão. Cada uma das seções pode ser lida de forma independente e todos os dados que são apresentados abaixo estão disponíveis nessa planilha aqui, que você pode baixar para explorar tanto os dados brutos quanto os cálculos intermediários. Explorando esses dados, você pode fazer sua própria auditoria dos dados da dívida pública federal, ver se as percepções que você tem sobre o assunto condizem com a realidade e mesmo discordar desse texto.
Este é um trabalho em construção. Por favor, sinta-se livre pra criticar e sugerir ajustes.
Imagine que você queira um computador mas não tenha dinheiro para comprá-lo hoje. Mas, como você espera continuar a receber seu salário todos os meses, você pode fazer um crediário nas Casas Bahia, passar a usar seu computador hoje e pagá-lo aos poucos. Ao fazer o crediário (que é um empréstimo), você está antecipando sua renda futura para consumir hoje. Você aumentou seu bem estar presente – afinal, sem o crediário você não teria o computador – mas, para isso, vai ter que consumir um pouco menos no futuro, pois você vai ter que separar uma parte do seu salário nos meses seguintes para pagar as prestações de sua dívida.
Não há nada inerentemente bom ou ruim com a dívida. Olhando para trás, em seis meses, pode ser que você tenha tomado a decisão correta e utilizado seu novo computador para aprender a fazer boas planilhas no Excel e com isso ser promovido no emprego. Mas pode ser que você não consiga guardar dinheiro suficientemente para pagar as prestacões e seu nome vá parar no SPC. Tudo isso depende primordialmente de duas coisas: de como você faz a gestão da sua dívida e de como você investe o dinheiro que você tomou emprestado.
Com o governo, não é muito diferente. Idealmente, a dívida pública seria utilizada de forma responsável, primordialmente para: (a) financiar investimentos de longo prazo usufruídos por múltiplas gerações; e (b) suavizar os impactos sociais das crises econômicas. No primeiro caso, é fácil perceber: se uma estrada ou uma ponte dura décadas e é utilizada não só por mim como também por meu filho, faz sentido que nós dois paguemos por ela. No segundo caso, como crises econômicas podem ter implicações sociais e políticas importantes (um aumento no desemprego e na pobreza pode causar protestos, violência e instabilidade política, por exemplo), muitas vezes países criam mecanismos para suavizar esses impactos. O outro lado da moeda é que, se a dívida aumenta durante uma crise, para ela se mantenha em equilíbrio, durante os períodos de expansão econômica o governo deve poupar dinheiro para reduzir a dívida.
Na prática, a gestão da dívida pública na maioria dos países está muito longe desse ideal. Por exemplo, durante a década de 1970, o governo brasileiro se endividou não para fazer investimentos, mas para subsidiar o preço da gasolina. Em outras palavras, a geração dos meus pais – que já dirigia na década de 1970 – aumentou seu bem estar com gasolina mais barata e deixou a conta pras gerações futuras.
Igualmente, são poucos os países que conseguem poupar dinheiro nos momentos de bonança depois de gastar numa crise. A experiência recente do Brasil deixa isso claro. O governo aumentou seus gastos de forma significativa durante a crise de 2009, mas não conseguiu poupar muito quando a economia voltou a crescer – o que interrompeu a trajetória de reducão da dívida e levou à situação de crise fiscal atual.
A dívida atual do governo federal é atualmente (em meados de 2015) cerca de 2,2 trilhões de reais. Ouvindo um número tão imenso assim parece realmente surreal, mas um dos motivos para esse número ser tão grande é o fato de o Brasil ser uma economia grande. Por exemplo, para termos base de comparação, o governo arrecada em tributos 1,2 trilhões de reais por ano.
Para a gente poder comparar a dívida brasileira com a dívida de outros países, nós precisamos ajustar esses dados pelo tamanho da economia de cada um deles. Ao fazer isso, a gente observa que a dívida brasileira é relativamente alta em comparação a outros países emergentes. Dentre 146 países listados como emergentes pelo Fundo Monetário Internacional, o Brasil tem a 27ª maior dívida. Com dívidas menores, estão todos os grandes países da América Latina, como por exemplo, México (51), Venezuela (72), Equador (105), Peru (123) e Chile (134).
E o que tem ocorrido com a dívida ao longo do tempo? Houve um período de queda significativa da dívida brasileira na última década – em especial durante o primeiro governo Lula. Contudo, após a crise internacional, o governo passou a desmontar a lógica de manter a estabilidade econômica com economia de gastos, câmbio flutuante e inflação sob controle. Com isso, no primeiro governo Dilma a dívida parou de cair e recentemente passou a aumentar.
Você já deve ter visto divulgada na Internet a ideia, propagada pela Auditoria Cidadã da Dívida Pública, de que o governo federal gasta metade de seus impostos com juros da dívida. Isso é uma distorção deliberada da verdade. Eles misturam deliberadamente o refinanciamento da dívida (“rolagem”) – isto é, emitir dívida nova para pagar dívida antiga – com o pagamento de juros e amortização.
Embora seja contabilmente parte do orçamento, quando o governo rola dívida ele não está alocando recursos públicos pra dívida, já que ele esta tomando recursos emprestados (ou seja, que não foram arrecadados por meio de tributos) para saldar obrigações passadas.
A anedota abaixo ajuda a mostrar porque essa lógica é errada.
Vamos dizer que esse ano você tome um empréstimo de R$100, a juros de 10% ao ano, de mim. Quando chega ao fim do ano, você me deve R$110. Só que você não guardou dinheiro. Então você toma R$110 emprestados com o Deco, também por 10% ao ano, e me paga. Quando chega no fim do ano que vem você também não guardou dinheiro e agora você deve R$121 pro Deco. Aí você pede esse dinheiro emprestado com o Nicolas e paga o Deco. No fim do outro ano, você deve R$133,10 pro Nicolas. Você toma outro empréstimo, dessa vez do Davi, e paga o Nicolas. Depois de um ano você vai dever R$146,41 pro Davi.
Quanto você gastou pagando sua dívida? Nada, já que você não guardou nenhum dinheiro pra saldar a dívida. Se você misturar rolagem com amortização, você teria “gastado” R$364,1. Aí alguém pode falar: “mas a gente já pagou essa dívida mais de três vezes, como é possível que a gente deva R$146,41?”
Misturar rolagem com serviço e amortização significaria contar o dinheiro que você tomou emprestado do Davi para pagar o Nicolas como parte do seu salário e denotar a renovação da dívida como um gasto enorme, como se fosse uma nova dívida! É isso que a Auditoria Cidadã faz.
A melhor forma para ver qual parte dos seus tributos vai para o pagamento de juros da dívida é ver quanto o governo economizou, após realizar todas as suas despesas, para pagar esses juros. A esse montante, economistas dão o nome de “superávit primário”. E, ao ver os dados do último ano em que o governo teve um superávit primário, em 2013, observa-se que o governo gastou uma parte significante dos recursos arrecadados com os juros da dívida, cerca de 6% do orçamento – mas está longe de ser 50%.
Ao se discutir como fazer uma reforma nos gastos públicos, uma observação se torna clara: possíveis cortes nos gastos chamados de “discricionários” (como saúde, educação e desenvolvimento social) têm efeito muito reduzido sobre os gastos totais. Não vai ser possível conseguir alcançar um equilíbrio das contas do governo sem a participação da sociedade e do congresso, por meio de reformas nos dois maiores gastos do governo federal: (1) a previdência social e (2) os gastos com servidores públicos federais. Veja abaixo.
Uma outra coisa importante é entender que o governo, atualmente, não economiza sequer o suficiente para pagar todos os juros da dívida. Se ele assim o fizesse, a dívida sempre cairia em relação ao tamanho da economia brasileira. Foi a política de economia dos gastos públicos que ajudou a reduzir a dívida pública durante os anos 2000. Mas, recentemente, essa política foi revertida e todos os juros da dívida passaram a ser financiados com emissão de nova dívida. Isso é uma garantia de que a dívida vai aumentar – e não diminuir – no futuro.
Sim. Todos os meses, a Secretaria do Tesouro Nacional publica um Relatório Mensal da Dívida com informações significativamente detalhadas, inclusive sobre isso. Quem diz que o governo não sabe quem são os donos da dívida está simplesmente dizendo algo falso. Essas operações são e devem ser públicas e estão registradas junto ao Tesouro Nacional. Você vai perceber pelo gráfico abaixo que a maioria dos títulos está nas mãos de instituições financeiras e fundos de investimento.
E por que isso acontece? Porque, afinal, instituições financeiras e fundos de investimento agem como intermediários entre poupadores e o governo. Bancos e outras instituições financeiras se especializam em fazer investimentos para seus clientes. Logo, os bancos detêm os títulos públicos, são remunerados por eles – e, por sua parte, eles remuneram seus correntistas com parte da remuneração dos títulos.
Em tese, todo mundo que tem uma conta de poupança recebe (ao menos em parte) uma remuneração da dívida pública. Pois todo mundo que tem uma conta no banco é credor do banco (tem uma reivindicação de ativos com o banco).
Alguns críticos dizem que nós deveríamos saber quem são os credores dos bancos. Mas talvez eles não tenham pensado quais as implicações disso. Isso significaria que seria necessário quebrar o sigilo bancário de todos os brasileiros. Esse tipo de operação seria ilegal, pois violaria a privacidade de cidadãos brasileiros comuns. Significaria expor publicamente quanto a Dona Maria, que tem uma conta de poupança na Caixa Econômica Federal, detém em sua conta – e, por consequência, qual a parte proporcional que ela indiretamente detém da dívida.
E note que mesmo isso não resolveria o problema. Quem são os credores da Dona Maria? Cairíamos em um ciclo sem fim. O importante é que as operações do Tesouro Nacional são públicas e nós sabemos exatamente quem detém esses títulos.
Em 2010, o Congresso Nacional conduziu uma CPI sobre a Dívida Pública Federal. Entre as assessoras da CPI, estava a Sra. Maria Lúcia Fattorelli, a maior expoente da Auditoria Cidadã da Dívida Pública. Diversos expositores alinhados com a filosofia da Auditoria Cidadã foram convocados, inclusive pela forte presença do deputado Ivan Valente (PSOL-SP) durante os trabalhos da CPI. A todos esses expositores foi perguntado se eles tinham conhecimento de algum indício de fraude na gestão da dívida pública federal. A conclusão da Comissão, descrita no relatório aprovado pela CPI, está abaixo:
É sempre possível que haja algum tipo de irregularidade da qual os especialistas convocados pela CPI não tenham conhecimento. Mas não deixa de ser curioso perceber que nenhum deles tenha conseguido mencionar nenhuma irregularidade.
Outro fato que se menciona é que a dívida pública brasileira proveniente da época da ditadura seria ilegítima. Esse é um argumento razoável. De fato, o governo brasileiro não era democraticamente eleito – o que compromete sua legitimidade. Contudo, isso não significa, necessariamente, que os atos de um governo presumidamente ilegítimo devam ser simplesmente apagados. Por exemplo, apesar da ditadura ter tido um governo ilegítimo, a sociedade brasileira decidiu por assumir a responsabilidade de justamente indenizar as vítimas da ditadura por meio da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
Similarmente, alguém poderia argumentar que as obrigações contraídas pelo estado brasileiro durante as décadas de 1960-1980 continuam sendo de responsabilidade do estado brasileiro após o fim da ditadura. Essa é a interpretação que se dá, por exemplo, para as obrigações diplomáticas do Brasil. Os tratados ratificados durante a ditadura continuaram em vigência quando o país voltou à democracia.
Mas, independentemente dessa interessante discussão moral, é importante notar que, segundo dados do Banco Central, ao fim da ditadura, a dívida pública externa brasileira – que correspondia à maior parte da dívida pública – era de cerca de 180 bilhões de dólares em valores atualizados pela inflação. Isso é apenas uma fração do total do montante da dívida pública brasileira. Embora não haja indícios de fraude, mesmo que esses 180 bilhões fossem ignorados, a dívida pública brasileira ainda seria um grande problema.
Sim – mas depende de como você mede essas coisas. Há duas informações importantes que você precisa ter em mente quando você analisa a mudança do perfil da dívida pública brasileira. O primeiro é que o governo, nos últimos anos, fez um esforço para internalizar a dívida – isto é, para substituir a dívida emitida em moeda estrangeira por dívida emitida em moeda nacional. A vantagem dessa mudança de perfil é que há menos risco de exposição a crises do câmbio: isto é, com a dívida em real, se a moeda brasileira se desvaloriza muito isso não significa que a dívida vai aumentar na mesma proporção. Na última década, a porcentagem da dívida federal em moeda estrangeira caiu de cerca de 15% a menos de 5%.
Mas, se cerca de 5% da dívida pública federal ainda é externa, por que dizem que a dívida externa acabou? Acontece que o governo não tem só dívidas (passivos), mas também investimentos (ativos) em moeda estrangeira. Uma grande parte desses ativos estão nas “reservas internacionais” do Banco Central. Como essas reservas aumentaram muito nos últimos anos, em determinado ponto elas passaram a ser maiores que o estoque da dívida externa pública. A partir desse momento, pode-se dizer que a dívida líquida (que considera também os ativos), passou a ser zero (ou negativa).
E a dívida com o FMI? Sim, ela acabou. Desde março de 2005 que o Brasil já não tem nenhum empréstimo com o Fundo. Isso é uma coisa boa? Depende. Há dois fatos a se considerar. Por um lado, deixar de ter qualquer dívida com o FMI garante mais autonomia para o governo brasileiro. Por outro, significa que a dívida pública se torna mais cara. Enquanto a taxa de juros cobrada em Outubro de 2015 pelo FMI era de 1% ao ano, o governo brasileiro, ao emitir dívida interna, paga cerca de 14% ao ano. Logo, é uma escolha política entre custos mais baixos e autonomia.
Uma das críticas que se faz à gestão da dívida pública brasileira é que a cobrança de juros sobre juros seria ilegal. A ex-auditora da Receita Federal Maria Lúcia Fatorelli diz o seguinte: “Nossa Constituição proíbe o que se chama de anatocismo”. Esse tal anatocismo é a cobrança de juros compostos – que ocorre quando um contrato reajusta o estoque da dívida antes do fim do próprio contrato, adicionando a esse montante o total de juros devidos.
Imagine, por exemplo, que você não pague seu cartão de crédito. Você vai ter que pagar juros sobre o montante devido. Se, ao fim do mês, você também não pagar nem sequer os juros devidos sobre aquele período, os que você não pagou são incorporados à sua dívida. Ao fim do mês seguinte, portanto, você vai ter que pagar juros sobre o novo montante da dívida (a dívida inicial mais os juros não pagos no primeiro mês). É esse fenômeno que a Sra. Fatorelli diz que seria ilegal se aplicado à dívida pública.
Para verificar se essa crítica procede, portanto, há duas coisas a serem verificadas: (1) se essa cobrança de juros compostos é realmente ilegal; e (2) se parte significante da dívida pública federal adere a essa prática.
Ocorre que, segundo o Supremo Tribunal Federal, a cobrança de juros compostos é completamente legal. A alegação do governo e o entendimento dos Ministros foi que a dívida assumida, caso fique em atraso, precisa ser corrigida por uma remuneração. Usualmente, essa remuneração corresponde a uma atualização monetária (incorpora, portanto, a inflação no período) e também ao retorno correspondende à perda que esse investidor tem em não poder colocar seu dinheiro em outro lugar (chamado por economistas de “custo de oportunidade”).
Outra coisa interessante é que a maior parte dos títulos públicos da dívida não têm esse formato que foi questionado no STF. Na verdade, eles têm um valor nominal fixo (normalmente R$1.000) e são remunerados com juros pagos semestralmente ou anualmente tendo com referência o valor nominal. É somente entre um contrato e outro que os juros podem ser financiados com nova emissão de dívida – o que já era considerado legal pelo STF há muito tempo. O diagrama abaixo ilustra esse processo.
Um outro ponto seria que juros flutuantes seriam “injustos” para com o governo. Essa é uma crítica estranha, por dois motivos. Primeiro, porque é o próprio governo que decide que tipos de títulos usar quando for levantar dívida. A diferença básica entre juros pré-fixados e pós-fixados é que enquanto aqueles têm uma taxa de juros fixa, estes variam confome algum índice (normalmente o índice de inflação ou a SELIC). O segundo motivo é que, no longo prazo, a remuneração de títulos com juros flutuantes é bem parecida com aquela com juros pré-fixados. Por sua própria natureza, eles são mais voláteis: por vezes rendem mais que os pré-fixados, por vezes rendem menos. Mas a trajetória dos dois tipos é bem parecida. Veja abaixo.
Por que não deixar os bancos ficarem com o prejuízo? Por que o governo não pode simplesmente deixar de pagar a dívida pública? Essas são perguntas que feitas o todo o tempo quando esse assunto é debatido. A realidade é que… ele pode. Pagar ou não a dívida é uma decisão política. Todo empréstimo é um investimento e vem com um risco embutido. O risco é não receber o dinheiro de volta.
Mas, se o governo fizer isso, ele vai perder acesso aos mercados financeiros e durante muito muito tempo não vai poder emitir dívida para nada. Por quê? Porque ninguém emprestaria para um governo que dá calote. É como se o governo que dá calote estivesse entrando para a lista do SPC. Ele teria uma marca negativa no seu registro de crédito: um sinal de que não cumpre com sua promessa de pagar suas dívidas. E, naturalmente, isso afugenta investidores.
Se você tivesse um amigo que nunca pagasse as dívidas e depois fingisse que não tinha tomado empréstimo das pessoas, você emprestaria dinheiro pra ele? Pois é, quem empresta dinheiro para o governo tem a mesma reação que você teria. Sem poder emitir dívida, o orçamento do governo seria restrito aos impostos que ele arrecada. Nesse caso, o governo seria ser forçado a fazer a tão temida “austeridade” de qualquer jeito, uma vez que não poderia gastar mais do que arrecada com impostos. Ou teria que aumentar impostos; ou teria que cortar gastos. Não tem como revogar a matemática.
Esse é o caso do Brasil atualmente. O governo federal, teve em 2014 (e terá em 2015) o que se chama de “déficit primário” – isto é, mesmo antes de pagar os juros da dívida, o governo tem gastado mais do que arrecada. Se, na situação atual, o governo deixasse de pagar os juros da dívida – isso não liberaria nenhum centavo para gastos adicionais do governo. Na verdade, ele seria forçado a cortar gastos – pois sua fonte de financiamento, via emissão de dívida nova, não estaria mais disponível.
Um grupo de pesquisadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento estudou 23 casos de moratória da dívida pública e verificou estatisticamente que calotes na dívida estão associados a menor crescimento e maior desemprego futuros. Além disso, quando há muito risco de que um país não pague sua dívida (como no caso de um governo que acabou de dar calote), os juros tenderão sempre a aumentar.
Um exemplo interessante é o do Equador, que em 2008 deixou de pagar alguns de seus títulos – e é usualmente citado como exemplo por quem advoga a moratória. Como o risco de se emprestar para aquele governo aumentou, mesmo após o fim do período da moratória, quando o governo precisou levantar mais dinheiro, ele precisou pagar muito mais por isso. Se no ano anterior ao calote o governo pagava em média um “prêmio de risco” de 6,2%, no ano imediatamente posterior ao fim da moratória, esse prêmio passou a ser de 9,2%.
O maior problema é que esse aumento nos juros do governo também aumenta significativamente os juros que todos os bancos e empresas nacionais pagam para conseguir crédito. Isso acontece pois os juros do governo são sempre uma referência para os juros do setor privado. Veja o gráfico abaixo para ver como essa relação é de quase um para um.
Consequentemente, os juros subiriam também para todos que pegam empréstimos com bancos e as empresas investiriam menos. No fim das contas, seria prejudicada a Dona Maria, que não conseguiria pegar um crediário nas Casas Bahia.
Além disso, é importante olhar para nossa própria história. O Brasil também já experimentou o rechaço ao pagamento das dívidas e anulação de parte delas. Em fevereiro de 1987, o Presidente do Brasil se rebelou contra o pagamento de uma dívida insustentável e se recusou a enviar recursos aos credores internacionais. Sem acesso a moeda estrangeira, o país enfrentou um corte profundo nas importações e no consumo da população. Diversos produtos essenciais, como remédios, passaram a ser inacessíveis para a população. Com medo de crises bancárias, a população aumentou sua demanda por moeda, mesmo num país com alta inflação, e a taxa de juros disparou.
Nos anos seguintes o país enfrentaria hiperinflação, a total falência do sistema de preços, e o assalto público à poupança popular. Ainda seria necessário mais de uma década para que os brasileiros vivessem em um ambiente em que trabalhadores e empregadores podem fazer planos, poupar e investir sem medo de perda do poder de compra e com o mínimo de racionalidade.
E, apesar de todas essas crises que se seguiram à moratória, a questão da dívida pública não foi solucionada pelo calote.
Não. Transparência é um dos princípios basilares da administração pública. É verdade que já estão disponíveis, sobre a dívida pública, muito mais dados do que diversas partes do governo, pois a Secretaria do Tesouro Nacional publica seu Relatório Mensal da Dívida e o Banco Central também publica mensalmente detalhadas estatísticas fiscais. Esse nível de transparência é muito melhor do o que existe com as operações de crédito subsidiado que o BNDES faz com empresas privadas, por exemplo.
Mas, a despeito dessa ampla disponibilidade, quanto mais transparência houver, melhor. Compete ao Tribunal de Contas da União fazer uma auditoria permanente da dívida pública – e é importante para a solidez institucional brasileira que ele cumpra essa função. Para tanto, é necessário que o debate se baseie em estatísticas claras e honestas e que a função de fiscalização externa da dívida pública não seja privatizada por grupos claramente ideológicos – como a Auditoria Cidadão da Dívida – que tentam insuflar uma agenda com conclusões pré-determinadas a um debate tão importante, ou pelos próprios bancos, que são agentes interessados.
É essencial que a dívida pública seja não apenas publicamente audidata pelo TCU, mas também ser publicamente auditável, por qualquer cidadão que tem acesso aos dados públicos, e por uma multiplicidade de órgãos. Organizar os dados disponíveis para você, leitor, poder chegar a sua conclusão, é um dos objetivos essenciais desse artigo.