Me considero liberal e sou a favor da política de cotas. Não sei se há mesmo uma contradição inconsolável entre uma coisa e outra, mas por algum motivo a intersecção entre os dois grupos mal consegue encher uma kombi. Meu argumento é simples: se o governo vai custear o ensino superior de alguém, que o escolhido seja um estudante que não conseguiria chegar à universidade sem esta ajuda.
É impossível julgar com perfeição quais candidatos teriam condições de cursar o ensino superior de outra forma, mas parece razoável supor que a renda seja o critério mais óbvio. Estudantes pobres certamente teriam mais dificuldade de cursar uma universidade paga – mesmo que alguns consigam através de bolsas de estudo. E basta não ignorar a realidade brasileira para reconhecer que estudantes negros e pardos de colégios do governo quase sempre são mais pobres do que os brancos de colégios particulares.
Não se trata de uma divisão perfeita, o mundo é mais complexo do que isto, mas esta certamente é uma regra que pode ser generalizada sem grandes problemas. Confesso que não me sinto confortável com o fato de muitas universidades adotarem a herança genética do aluno como critério de escolha. Sou dos que prefeririam cotas exclusivamente sociais, baseadas na renda da família.
Ainda assim, a segregação racial histórica faz com que a realidade corrija este erro abstrato: no Brasil, negros são mesmo mais pobres do que brancos em quase todos os estratos sociais. Aposto um dedo que, dentre os estudantes de colégios estatais, os mais pobres são majoritariamente negros. Num mundo ideal, a política de cotas seria desnecessária ou ignoraria a cor do candidato. Não sendo isto possível, melhor conviver com uma política de cotas como a que vigora no Brasil do que sem ela.
E por que é melhor que o governo destine as vagas em universidades estatais para estudantes pobres? Os motivos são muitos. O primeiro, mais frio e óbvio, é que isso aumenta o número de brasileiros com ensino superior sem aumentar o orçamento destinado à educação superior. O custo de um estudante é o mesmo, não importa qual seja a renda de sua família. A diferença é que quando um estudante de família rica perde o vestibular da universidade federal, ele provavelmente procurará uma faculdade particular para seguir seus estudos. No caso do estudante de família pobre, esta opção inexiste. Quando o estudante rico vai para a universidade estatal, o dinheiro público é gasto sem que o número de estudantes com acesso à universidade aumente. No caso do estudante pobre, a história é outra – a ele, sem o subsídio, quase sempre restaria a opção de procurar um emprego compatível com sua formação deficiente.
A partir daí podemos derivar um outro argumento, mais humanitário. Todo imposto retira das famílias uma possibilidade de consumo, dado que o dinheiro que foi para o governo certamente seria utilizado em outra coisa. O efeito não é o mesmo sobre todas as famílias. A família pobre deixa de comprar carne por conta do imposto; a rica talvez deixe de gastar com lazer, viagens, etc. Tratam-se de fins legítimos, é claro, mas não de mesma urgência. Se o dinheiro dos impostos será investido na educação de uma pessoa, que seja com aquela que mais prejudicada pela cobrança.
No caso da família pobre, este dinheiro provavelmente seria destinado a suprir uma necessidade mais básica do que a da família rica. No Brasil, onde pobres pagam mais impostos do que ricos, esta equação ganha contornos ainda mais cruéis. O governo brasileiro atua rotineiramente como uma máquina que transfere dos pobres aos ricos, lhes negando qualquer possibilidade de ascensão social. Vejo como inteiramente legítimo que, neste caso, os mais prejudicados por esta dinâmica tenham preferências nas vagas de universidades estatais.
Opositores da política de cotas afirmam que trata-se apenas de um paliativo, um instrumento para mascarar as péssimas condições do sistema estatal de ensino médio. Este argumento, porém, não aborda o meu ponto central: mesmo que o estudante pobre tivesse uma educação formal idêntica à do estudante rico, ainda assim faria sentido reservar vagas àqueles que sem elas não chegariam à universidade. Argumenta-se também que todo processo seletivo deve privilegiar o mérito, selecionando os melhores alunos independente da renda familiar ou situação social de suas famílias. O argumento também parece bom, mas estudos recentes demonstram que o desempenho dos cotistas não é inferior ao dos não-cotistas.
Quando estudantes de famílias pobres tem acesso a uma educação tão boa quanto a destinada aos estudantes de famílias ricas, o rendimento deles passa a ser semelhante. E quem disse que o vestibular privilegia o mérito? Muitas vezes, a vaga na universidade é disputada entre alunos ruins ou medianos dos melhores colégios e os melhores alunos dos piores colégios.
O vestibular em geral privilegia o primeiro, que recebeu uma formação direcionada para a prova, em detrimento do segundo, que se virou sozinho sem grande ajuda das circunstâncias. É provável que o estudante da rede pública tenha estudado mais, e nada nos permite afirmar que há uma diferença de capacidade entre os dois. O desempenho de um aluno dentro faculdade depende de muitos fatores que vão além da sua colocação num exame vestibular.
A rejeição dos liberais contemporâneos à política de cotas é estranha. Durante anos, o debate sobre políticas sociais se dividiu entre defensores de políticas focalizadas e universalistas. Como diz o nome, uma política social focalizada é aquela que foca a distribuição de seus benefícios/subsídios em apenas uma parcela das famílias, quase sempre as mais pobres e vulneráveis, enquanto a universalizante beneficia toda a sociedade, sem olhar a quem. A imensa maioria dos liberais, mesmo os mais radicais que não enxergavam legitimidade em nenhuma política social, sempre reconheceram a superioridade de políticas focalizadas.
Milton Friedman, que por tantas vezes adotou uma retórica proto-anarquista, reconhecia isto. Quais as propostas mais importantes de Friedman sobre políticas sociais? A implantação do sistema de voucher educacional, um “vale-educação” como o ProUni, e a transferência direta de renda (ao invés da provisão de serviços públicos), como o Bolsa Família. Duas políticas sociais focalizadas. O insuspeito John Kenneth Galbraith, com suas inquestionáveis credenciais de esquerda, considerava o pensamento de Friedman como “a proposta previdenciária mais radical apresentada depois da Segunda Guerra; poucos economistas de esquerda podem ostentar a proposição de uma inovação tão impressionante”.
A ideia é simples: se você quer que o Estado garanta o acesso de todos à educação formal, não é necessário fazer com que o Estado construa escolas, basta subsidiar aqueles que, hoje, não tem acesso à educação formal; se você quer que todos tenham acesso a uma renda básica, não passe leis que garantam um salário mínimo, mas complemente diretamente a renda de quem ganha pouco ou nada; se você quer que todos tenham acesso a saúde de qualidade, não construa um SUS com sua burocracia jurássica, mas subsidie apenas o acesso de quem não o tem hoje. Se você acha que não cabe ao Estado promover nada disso, reconheça ao menos que nem toda política social é igual e algumas delas são, sim, melhores do que outras.