Por Carlos Góes

O título desse artigo talvez tenha tomado você de surpresa. No Brasil, a palavra [“neo”]liberal se tornou alcunha pejorativa. Parece estranho, portanto, que o Bolsa Família, que neste ano completa dez anos como o programa social de maior sucesso no Brasil, tenha um DNA liberal.  Contudo, olhando além do véu da verborragia política comum, não é difícil entender o porquê dessa relação.

O Bolsa Família é um programa de transferência condicional de renda que tem como objetivo ajudar indivíduos que vivem abaixo da linha da miséria e inseri-los socialmente ao permitir que eles ajam como consumidores no mercado. A grande vantagem do programa é que ele não dá poder discricionário aos governantes para que estes decidam pelo povo.

Numa política social centralizadora, o governo decide o que os pobres precisam e quando eles vão receber. O governo vai, ele próprio, prover esses produtos. Eu pude ver um programa nesse modelo enquanto crescia em Brasília. Quando Governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz tinha como um dos trunfos de seu programa de governo o Programa Pão e Leite. O paternalismo é claro: como diz o nome, o governo comprava pão e leite e dava aos pobres. Roriz queria ser Pai dos Pobres e, como benefício extra, ganhava a “vantagem” de decidir quais seriam as empresas que forneceriam pão e leite e quem seriam as pessoas que trabalhariam nos postos de distribuição dos alimentos: mais uma porta aberta para a corrupção.

Política social estatista: “Roriz é bão, dá leite e dá pão”

Já o Bolsa Família é uma política social descentralizada, onde a decisão sobre como o benefício será gasto é tomada pelos beneficiários, no mercado. É uma política social liberal. O papel do governo resume-se tão somente a transferir recursos com base em uma regra clara, pública e universal: uma linha da pobreza. A decisão sobre o que, como e quando comprar passou aos indivíduos. Com o Bolsa Família, os recursos ainda são públicos, mas privatizou-se a escolha – e os pobres é que se beneficiaram dessa privatização..

Não é de se espantar, portanto, que um dos maiores liberais do século XX tenha desenhado os alicerces modernos dos programas de transferência condicional de renda. Milton Friedman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, menciona três coisas importantes no capítulo sobre redução da pobreza em seu livro Capitalismo e Liberdade, publicado em 1962. Por causa de externalidades, seria aceitável que o governo estabelecesse um piso mínimo (definir qual é o piso é um julgamento moral e social) necessário à vida digna. Um programa para atingir esse objetivo deveria ser uma política focalizada diretamente nos pobres – e não em uma política de subsídio a empregadores com o objetivo indireto de manutenção do emprego. Por último, deveria ser uma política puramente de transferência, que não distorcesse o sistema de preços.

Ele chega a conclusão de que o melhor sistema é um sistema de “imposto de renda negativo”. Nesse sistema, se as pessoas ganhassem abaixo de determinado nível de renda, ao invés de pagar imposto de renda elas receberiam dinheiro do governo. Não receberiam pão e leite. Receberiam dinheiro. E iriam no mercado escolher o que elas preferiam. Soa familiar?

É bem verdade que Friedman não foi a única pessoa a defender essa ideia. Mas sua opinião certamente foi essencial para sedimentar a importância de políticas sociais focalizadas como um modelo a ser buscado pelas instituições multilaterais. O primeiro programa no modelo do Bolsa Família implantado em nível nacional foi o Progresa/Oportunidades, do México, que tem origem em 1997. O programa teve amplo apoio do Banco Mundial, que posteriormente intermediou consultas entre os governos brasileiro e mexicano para expandir o então existente Bolsa Escola, criado em 2001, e criar o Bolsa Família. Para seu espanto, leitor, saiba que diversos acadêmicos mexicanos consideram o Progresa/Oportunidades, co-irmão do Bolsa Família, uma política pública “neoliberal”. De lá pra cá, programas similares se espalharam pelo mundo.

Captura de Tela 2013-11-02 às 16.46.07

Programas de Transferência Condicional de Renda pelo mundo

Outras políticas sociais liberais que tornam escolhas privadas e descentralizadas – como a adoção de vouchers educacionais em substituição às escolas estatais – são claramente reconhecidas como liberais. O mesmo deveria valer para o Bolsa Família. Ele é um programa barato (custa cerca de sete vezes menos que os desembolsos anuais do BNDES) e é eficiente em retirar as pessoas da miséria (que cai ininterruptamente desde a implantação do programa).

Ele é um programa que empodera indivíduos – não burocratas. Ele amplia a capacidade de decisão individual e escolha dos mais pobres enquanto os ajuda a sair da miséria. Ele amplia a liberdade dos mais pobres, já que desenvolvimento e inserção no mercado de consumo são, em si, uma ampliação das liberdades. Ao mesmo tempo, sendo mais livres e participando livremente do mercado, os mais pobres passam a ter instrumentos para inovar, poupar, investir e se capacitar. Com isso, eles podem prosperar e criar o caminho para que não necessitem mais do auxílio governamental (12% das famílias beneficiadas já deixaram o Bolsa Família).

No fim das contas, ao adotar um modelo liberal de política social, o que estamos dizendo é que nós confiamos nos pobres. As decisões sobre a vida deles devem ser deles, como agentes soberanos no mercado. São eles que devem decidir seu próprio destino: onde e o que comprar. Isso, vimos nos últimos dez anos, custa menos para a sociedade e atinge seus objetivos de forma mais eficiente.

 

Compartilhar