Fiz um comentário numa rede social sobre a dinâmica tecnológica que nos trouxe um aplicativo como o UBER, saudando esta dinâmica como inexorável e saudável. Óbvio que eu sabia que este comentário agradaria a uns, surpreenderia a outros e desagradaria posicionamentos extremos, unindo tradicionais comunistas e tradicionais liberais em coro uníssono, pois estes jogam uma espécie de partida de futebol de botão que já é um clássico secular. Ambos conhecem suas posições, suas táticas, suas retóricas, seus pontos vulneráveis. Quando veem algo fora do script ou das jogadas já ensaiadas, ameaçando seu debate viciado, vanguardista e guetificado, unem-se em torno das tradições. Nada mais conservador.
Pois os incomodados ficarão ainda mais desconfortáveis. Vai ser duro ouvir de um marxista que Mises (sim, ele mesmo), apesar das importantes diferenças existentes com o pensamento socialista, não era um monstro liberal, mas sim um intelectual refinado e radical, no melhor sentido da palavra, a quem a história do século XX conferiu vários consentimentos.
Vai ser duro ouvir também que o século XX desautorizou grande parte das experiências que se disseram inspiradas no socialismo científico inaugurado por Marx e Engels, e que, ao mesmo tempo, Marx nunca esteve tão atual como neste século XXI. Isso gera desconforto e inquietação nas duas “equipes” e suas torcidas organizadas, que devem cair em campo com paixão e fúria, reação típica de quem há tempos abdicou da condição de reflexão crítica.
Mas este “encontro” ou troca de gentilezas de que trato aqui, entre Marx e Mises, não é o achado de um tesouro que estava soterrado desde o século XX. Ele sempre esteve ao nosso alcance, disponível. Do ponto de vista histórico e no terreno das ciências da economia política, ambos já haviam se encontrado em Adam Smith, no século XVIII. Infelizmente, boa parte do movimento socialista insiste em tratar o “Pai do Liberalismo Econômico” como um histórico inimigo de classe, jogando um dos cientistas mais importantes da humanidade no colo dos ideologicamente de direita.
A ciência que serve ao processo civilizatório – mesmo sabendo que não há ciência neutra -, pode estar acima das rotulagens conjunturais e binárias de esquerda ou direita, até porque esquerda e direita são conceitos relativos e escapam ao contorno das classes sociais. A ciência e as teorias dela derivadas nos ajudam a compreender racionalmente os fenômenos que acontecem ao nosso redor. O que se faz posteriormente com esta compreensão já é outra história.
Logo, abrir mão de Adam Smith é um ato anti-marxista, no sentido de que se abre mão daquilo que Marx tinha de mais radical e vitalício na sua obra: seu método científico, o materialismo histórico e dialético. O pensamento de Adam Smith (economia política inglesa), junto com o pensamento socialista francês e o idealismo dialético alemão de Hegel, fez parte do hercúleo esforço para a síntese dialética que produziu o pensamento de Karl Marx.
No século XX, ninguém menos que Lênin patrocinou mais um “encontro” entre Marx e Mises. Em 1921, após perceber que os camponeses não se adaptavam à produção coletiva e voluntária para abastecer as demandas do povo russo, Lênin elaborou e liderou a implementação da NEP, Nova Política Econômica, que consistia em permitir e incentivar o funcionamento de mecanismos de mercado na economia russa.
Além de “Paz, Pão e Terra” e “Todo poder aos soviets”, a Rússia Revolucionária conheceria mais uma palavra de ordem impulsionada pela cúpula dos bolcheviques: “Camponeses, enriquecei-vos”. Lênin percebeu que a “mão invisível” de Adam Smith não era uma abstração ideológica capitalista, mas uma força avassaladora real na transformação da realidade econômica e social.
No entanto, menos de 10 anos após o início da NEP – período que viu a morte de Lênin -, que em poucos anos conseguiu recuperar a economia russa para os níveis anteriores à entrada na 1ª Grande Guerra, em 1914 -, Josef Stalin trocaria a “mão invisível” por uma mão de ferro, pesada, com açoite e espingarda, abrindo campos de trabalho forçado e escrevendo uma das páginas mais trágicas da história daquele século e talvez da humanidade.
O economista britânico John Maynard Keynes, nos anos 1930, voltaria a empreender um novo “encontro” entre Marx e Mises. A teoria da Demanda Efetiva e os consequentes estados de bem-estar social foram uma sincera e bem pensada engenharia econômica e social que admitia pressupostos das análises de economia política de Marx combinadas com economia de mercado. Ao se meter entre as duas barricadas ideológicas já instaladas, Keynes e seu keynesianismo levaram “pedradas” de ambos os lados. Era acusado de comunista pelos liberais ortodoxos e de capitalista pelos comunistas ortodoxos.
Em seu clássico “O Estado e a Revolução”, Lênin afirmava categoricamente que o futuro do Estado seria desaparecer, definhando à medida em que as forças produtivas e o desenvolvimento tecnológico fossem avançando. Lênin não afirmava isso com pesar, mas com satisfação e com a convicção de quem usava com maestria os ensinamentos do método em Marx. O mesmo Lênin citava Keynes de forma elogiosa por suas análises políticas e econômicas.
A NEP na Rússia e o keynesianismo na Europa Ocidental tinham uma inspiração em comum: encontrar uma economia e uma sociedade livres, que atendesse ao interesse das maiorias sociais. Nesta inspiração, ambos, Lênin e Keynes, estão com Norberto Bobbio, um ícone do pensamento liberal, para quem a melhor organização econômica e política é aquela que consegue conferir à sociedade o máximo de liberdade, democracia e igualdade. Bobbio, só para constar, foi formalmente convidado por um dos maiores filósofos marxistas, o brasileiro Leandro Konder, para contribuir no debate sobre o pensamento socialista.
Mas se no século XX o encontro entre Marx e Mises foi fruto do esforço de pessoas geniais na arena da luta teórica e política, no século XXI este encontro se dá a partir da pressão irresistível exercida pela mudança profunda da dimensão do espaço na vida das pessoas. Uma mudança radical na geografia, que deixa de ser analógica e caminha para ser digitalizada.
Nesta transição está acontecendo uma mudança de Era, em que saímos da Era Industrial e ingressamos na Era da Informação, levando-nos a uma ressignificação radical da linguagem, de valores, de formas de produção, levando-nos a uma nova consciência social, a uma nova ética inclusive nas relações econômicas.
Emerge, objetivamente, a necessidade de um novo contrato social. David Harvey, um renomado teórico marxista, tratou disto quando analisou os efeitos da compressão do tempo/espaço na formação das consciências sociais, no seu clássico “Condição Pós Moderna”, e foi “acusado” de ser pós-moderno pelos mesmos comunistas que atacaram Keynes. Manuel Castells, renomado sociólogo espanhol, pelo que me consta um ex-marxista, trata disto também em suas elaborações. Michel Bawens, um especialista belga em tecnologias da internet e presidente da Fundação P2P, também trata deste assunto. Não estamos trazendo novidades, neste sentido.
Nesta nova geografia, em que a realidade analógica se mixa com uma realidade digital, virtualizada, o que antes se justificava a partir de uma determinada ética, agora pode não mais. A Revolução Francesa trouxe à humanidade o “Fórum da Razão”, em que os dogmas da igreja católica e os certificados de propriedade da monarquia tinham que ser justificados em parâmetros de razoabilidade.
Agora, um novo Fórum da Razão se institui: Por que não se pode baixar um arquivo na internet, gratuitamente? Por que o direito de patentes de remédios deve se sobrepor à cura de doenças de seres humanos, se com pesquisas colaborativas em copyleft pode-se chegar a fórmulas farmacológicas e tratamentos semelhantes e atender aos interesses maiores da sociedade, sem que isto seja uma mercadoria, mas um direito?
Se o transporte público coletivo está ruim e caro, se os taxis tradicionais não atendem às expectativas da demanda, então por que não se pode usar serviços alternativos? Todas estas indagações e muitas outras que surgem naturalmente, questionam um pilar central do regime do capital: a propriedade privada de grandes meios de produção de bens e serviços. De que lado está mesmo a mão invisível agora? O direito autônomo de empreender – que desaliena e emancipa a espécie humana – se choca com o direito “canônico” da propriedade privada que monopoliza os meios de produção, herança do capitalismo industrial.
O UBER é um sintoma deste fenômeno mais largo e profundo. E este fenômeno, não se enganem, vai engolir também o UBER, que não sobreviverá à sequência de avanços tecnológicos, com aplicativos que vão democratizar ainda mais o acesso a serviços, tanto para quem presta os serviços como para quem se utiliza deles. O UBER, como ele é hoje, se tornará também eticamente obsoleto.
Portanto, taxistas de todo o mundo, uni-vos! A luta central não é contra o UBER, mas pelo direito de explorar livremente a geografia digital, com aplicativos abertos e que “falem” com o sotaque analógico de cada realidade presencial e sem as empresas e máfias que hoje exploram o negócio dos táxis. Socialismo com liberdade é assim!