“O liberalismo – é conveniente que se recorde – é a suprema generosidade: é o direito que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o grito mais nobre que já soou no planeta.” (Ortega y Gasset)
Muito tem sido falado, no meio libertário, sobre feminismo, segregação racial e manifestações culturais estigmatizadas. É, de fato, uma quebra de tabus. Quando o assunto é a garantia das liberdades negativas aos animais, porém, instala-se um silêncio peculiar. Há quem permaneça com as arcaicas convicções rothbardianas que garantem, baseadas em mitos da biologia e solipsismos ímpares, que esses seres tão morfologicamente diferente de nós não devem gozar de direitos sobre suas próprias vidas, posicionamento que se afasta cada vez mais dos avanços daquele liberalismo inovador que não significa apenas pacto da não-agressão e livre mercado. O liberalismo, principalmente em sua face libertária, tem sim tudo a ver com o movimento pela ampliação dos direitos aos não humanos.
Primeiramente, é necessário entender que lutar pela libertação animal implica ser adepto do veganismo, filosofia de não crueldade que prega a abstenção do consumo de todos os alimentos de origem animal (além da carne, leite, ovos e afins) e o boicote às empresas que promovem testes nos mesmos; respeitando, assim, todos os seres dotados de senciência – a “capacidade de sofrer ou sentir prazer ou felicidade” –, característica que une animais humanos e não humanos, com uma diferença apenas de grau (e não de gênero), como já afirmava Charles Darwin. Além dos veganos se basearem na premissa de que a exploração animal é errada (assim como a escravidão o era), outro motivo forte para se opor às indústrias do leite e de ovos é o sadismo que envolve o sistema de obtenção dessas secreções.
Vale ressaltar que a dieta vegana é comprovadamente viável do ponto de vista nutritivo. Segundo o Conselho Regional de Nutricionistas: “As dietas vegetarianas [incluindo a vegana], quando atendem as necessidades nutricionais individuais, podem promover o crescimento, desenvolvimento e manutenção adequados e podem ser adotadas em qualquer ciclo de vida.” Por último, faz-se fundamental quebrar a ideia de que veganos (ou mesmo vegetarianos, veja bem!) só comem mato, inverdade muito repetida pelos opositores do estilo de vida cruelty free, a esses recomendo darem uma olhada na página no Facebook do Chubby Vegan.
Explanações feitas, vamos à parte do babado, da confusão e da gritaria. Alega-se, com frequência, a fim de justificar o consumo de carne, que estamos no topo da cadeia alimentar. A dieta onívora nos é natural. Natural. A pobreza é o estado natural do homem, dizem proeminentes liberais. Inclusive o conservador Rodrigo Constantino (proeminente – e liberal – dependendo do ponto de vista), que já criticou os veganos diversas vezes, de acordo com ele foi o nada natural “advento capitalista” que trouxe o progresso.
Se um novo conceito busca o bem geral, trazendo benefícios a todos, por que não subverter “valores” antigos? É disso que o libertarianismo, que se contrapõe às contradições de conservadores, trata. Os únicos seres racionais dessa situação têm a responsabilidade moral de entender que a partir do momento em que torturas e mortes se tornam totalmente dispensáveis é de uma importância vital que elas cessem. Filtrar as vidas que importam por sua inteligência é perigoso até para os humanos: Einstein teria direitos sobre um garoto que nunca teve oportunidade de estudo? Quantas pessoas ele não poderia subjugar? Se o contra-argumento, porém, é realmente a ideia de que os humanos, no geral, seriam intelectualmente superiores aos animais, devo alertar que galinhas tendem a ser mais inteligentes do que crianças pequenas.
É seguro dizer que toda sublevação provém de sentimentos incômodos, que desencadeiam a disposição de lutar pela causa. As sufragistas estavam descontentes com a exclusão que sofriam, os abolicionistas viam a infelicidade proveniente da exploração e das humilhações frequentes – muitas promovidas por agressões físicas, rotineiras nos ambientes de criação de animais –, os homossexuais também eram e são alvo de espancamento e desrespeito, o que fez com que fossem criados inúmeros grupos de defesa LGBT.
Esses sentimentos fortes, que acometem os mais diferentes tipos de vidas, também estavam presentes no boi cujos órgãos foram devorados ontem numa churrascaria ou na vaca, dona das tetas machucadas que forneceram o leite cheio de pus (células somáticas) que faz o milkshake de chocolate. É isso que deve ser levado em conta. Há muita desonestidade no pensamento de que um bebê órfão deve ter sua vida preservada mesmo sem ser capaz de dizer isso ao passo que não se questiona o sofrimento infligido a um bezerro enquanto é afastado da mãe, mesmo sendo tão óbvio o horror de ambos – mãe e filho. Um princípio da não-agressão que admite agressões arbitrárias baseado em divisões de espécie precisa ter sua lógica repensada.
“E quanto às plantas? Você não tem dó delas?” As plantas não têm sistema nervoso, portanto são incapazes de sentir dor, medo ou felicidade – pelo menos como conhecemos hoje. Elas respondem a estímulos, como já demonstraram pesquisas, mas seu grau de consciência é nulo, um indivíduo não está causando sofrimento a um vegetal ao comê-lo. É risível comparar essa situação ao consumo de um porco. Além disso, grande parte do plantio de vegetais é destinada à alimentação de “animais de criação”. Quem ama as plantas não deve, definitivamente, comer animais.
Mas e a afinidade efetiva entre liberalismo e veganismo? Ela começa pelas inovações no mercado. Uma mudança de hábitos requer outros alimentos, outros produtos não testados e sem componentes de origem animal, novos ares. E há espaço pra eles. Qualquer um que conviva num ambiente de adeptos do movimento em prol da libertação animal percebe que a demanda não é pequena. O crescimento do mercado “livre de crueldade” facilita a vida e a expansão dos veganos, interesse que propicia também o sucesso do empreendimento. É só através do consumidor que a situação degradante dos animais pode ter fim. Ele é soberano e manda um recado para outras marcas no momento em que opta por aquela que não promove testes abusivos.
Um dos principais tópicos do liberalismo é o Estado mínimo. A importância do poder reduzido é ponto pacífico entre conservadores e libertários. A maioria esmagadora dos testes científicos realizados em animais é financiada pelo poder público. E mais: muitas delas têm objetivos esdrúxulos, servindo apenas como fonte de lucro para universidade e estabelecimentos de pesquisa. Num mundo em que pesquisas sádicas obviamente inúteis não têm incentivos financeiros, torna-se inviável continuar com elas. Tendo em vista que atualmente a literatura científica está recheada desses exemplos por causa do intervencionismo, conclui-se facilmente que tais experimentos, no mínimo, diminuiriam de modo vertiginoso e natural numa conjuntura em que dinheiro não é desperdiçado sem propósito.
Harry F. Harlow, um psicólogo famoso, realizador de vários testes em macacos (que incluíam um tipo de indução ao estresse em que as macacas esmagavam o crânio de seus filhotes), foi, durante 25 anos, editor do Journal of Comparative and Physiological Psychology, que publicava experiências tão macabras quanto as suas. Ele mesmo admitiu, numa nota de despedida, ter chegado à conclusão de que, depois de analisar cerca de 2500 manuscritos para publicação, “a maior parte das experiências não era digna de realização e os dados obtidos não são dignos de publicação”. Declaração surpreendente se observarmos que o principal intuito do seu próprio trabalho foi demonstrar que a privação prolongada de cuidados maternos pode trazer efeitos nocivos a crianças pequenas – e que pra isso se utilizou de racks de estupro e métodos torturantes que não valem a pena detalhar.
O filósofo canadense Michael Allen Fox lançou, em 1986, um livro que pretendia justificar eticamente os testes realizados em animais, The Case For Animal Experimentation. A publicação veio em boa hora para os cientistas, que já sofriam um bombardeio de críticas. Mas o curioso é que após uma recensão negativa sobre sua obra, ele respondeu que os argumentos do livro realmente eram equivocados e que tinha concluído não ser possível justificar os testes. Episódio depois do qual virou vegetariano e lançou Deep Vegetarianism, em que faz uma análise profunda do vegetarianismo e defende tal estilo de vida.
Se você não é vegetariana(o) provavelmente os fatos citados no texto nunca tinham chegado ao seu conhecimento. Talvez você sequer tenha entrado realmente em contato com as ideias pró-libertação animal. E esse é o maior argumento contra os direitos dos animais: o costume de não os respeitar. Ainda que não seja verbalizado.
Com sua Teoria Social Cognitiva, o psicólogo Albert Bandura provou a força que o exemplo tem sobre um indivíduo. Três grupos de crianças assistiram a filmes curtos, de finais diferentes, em que um homem batia num João-Bobo. O grupo que viu o tal agressor ganhar uma recompensa pelo ato tende a repetir aquele comportamento com o boneco. Aquilo que alguém pensa sobre suas próprias ações é, muitas vezes, determinado por conceitos estabelecidos previamente. Ao saírem do teste de persuasão, essas crianças conviverão com outro: a sociedade carnista. E ele não dura três horas ou um dia, mas a vida toda.
Em 2009, no programa No Limite, da Globo, pessoas foram induzidas a ingerir ovos cujo feto já estava praticamente todo formado, o que gerou em mim, como em milhares de outros telespectadores, um profundo nojo – à época seguidora de uma dieta onívora, nem me questionei sobre os entraves éticos da situação. Mas tomada por um sentimento de repugnância àquela cena, perguntei à então professora de biologia se comer aquilo (um feto) poderia trazer malefícios à saúde, ela respondeu negativamente com uma leve surpresa cômica pela minha inocência. Eu simplesmente não enxergava a semelhança entre esse ovo e a carne do dia-a-dia. A semelhança absurda.
Os hábitos de um indivíduo tornam mais compreensíveis a dificuldade que ele tem de aceitar novos pensamentos, ainda que estes busquem livrar cada vez mais seres de injustiças e padecimentos provocados por uma ideologia intrínseca de segregação. Não é a toa que conservadores como Rodrigo Constantino e Reinaldo Azevedo se opõem veementemente ao movimento pela libertação animal.
A partir do momento em que não se veem determinadas ações sendo postas em xeque, de modo palpável, elas tendem a ser aceitas sem pestanejo. Mas como disse o destacado dramaturgo e escritor vegetariano George Bernard Shaw, “todas as grandes verdades começam por ser blasfêmias”.