Há exatos 126 anos, em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea colocava um fim oficial à escravidão no Brasil, após uma série de leis que gradualmente coibiram o tráfico de pessoas. O único levantamento populacional daquele período, realizado em 1872 a mando de D. Pedro II, contava 1.510.806 escravos, número correspondente a 15% da população do país. Eram pessoas negras, pobres e exploradas. Mais de um século depois, sem que tenhamos promovido efetivas políticas de reparação, o censo aponta que 16 milhões de vidas humanas ainda sobrevivem em situação de extrema pobreza no Brasil, o que representa 8,5% da população. Continuam sendo pessoas negras, pobres e exploradas. 126 anos se passaram, mas a escravidão permanece como a marca mais profunda a macular a sociedade brasileira.
Essa preocupação não é de hoje. Joaquim Nabuco já dizia naquele momento.
O abolicionismo, porém, não é só isso e não se contenta com ser o advogado Ex officio da porção da raça negra ainda escravizada; não reduz a sua missão a promover e conseguir – no mais breve espaço possível – o resgate dos escravos e dos ingênuos. Essa obra – de reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar – da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos
senhores, e que fez do Brasil o Paraguai da escravidão.
Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse regime só daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos.
“A vitória abolicionista será fato consumado no coração e na simpatia da grande maioria do país; mas enquanto essa vitória não se traduzir pela liberdade, não afiançada por palavras, mas lavrada em lei, não provada por sofistas mercenários, mas sentida pelo próprio escravo, semelhante triunfo sem resultados práticos, sem a reparação esperada pelas vítimas da escravidão, não passará de um choque na consciência humana em um organismo paralisado – que já consegue agitar-se, mas ainda não caminhar.”
16,27 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, o que representa 8,5% da população
“A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não pode sondar, e, infelizmente, essa é a história do crescimento do Brasil. No ponto a que chegamos, olhando para o passado, nós, brasileiros, descendentes ou da raça que escreveu essa triste página da humanidade, ou da raça com cujo sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e de outra, não devemos perder tempo a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar, dessa hereditariedade que não há como repelir. Devemos fazer convergir todos os nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão do nosso organismo, de forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações futuras, já mais apagada, rudimentar e atrofiada.”
“o triste vocabulário da escravidão usado em nossa época, e que é a
vergonha da nossa língua, há de reduzir de muito no futuro as pretensões liberais da atual
sociedade brasileira”
“A vitória abolicionista será fato consumado no coração e na simpatia da grande
maioria do país; mas enquanto essa vitória não se traduzir pela liberdade, não afiançada por
palavras, mas lavrada em lei, não provada por sofistas mercenários, mas sentida pelo próprio
escravo, semelhante triunfo sem resultados práticos, sem a reparação esperada pelas vítimas
da escravidão, não passará de um choque na consciência humana em um organismo paralisado – que já consegue agitar-se, mas ainda não caminhar.”
“Não pode, para concluir, ser objeto de dúvida que a escravidão transportou da África
para o Brasil mais de dois milhões de africanos; que, pelo interesse do senhor na produção do
ventre escravo, ela favoreceu quanto pôde a fecundidade das mulheres negras; que os
descendentes dessa população formam pelo menos dois terços do nosso povo atual; que
durante três séculos a escravidão, operando sobre milhões de indivíduos, em grande parte
desse período sobre a maioria da população nacional, impediu o aparecimento regular da
família nas camadas fundamentais do país; reduziu a procriação humana a um interesse venal
dos senhores; manteve toda aquela massa pensante em estado puramente animal; não a
alimentou, não a vestiu suficientemente; roubou-lhe a suas economias, e nunca lhe pagou os
seus salários; deixou-a cobrir-se de doenças, e morrer ao abandono; tornou impossíveis para
ela hábitos de previdência, de trabalho voluntário, de responsabilidade própria, de dignidade
pessoal; fez dela o jogo de todas as paixões baixas, de todos os caprichos sensuais, de todas as
vinditas cruéis de um outra raça;
É quase impossível acompanhar a ação de tal processo nessa imensa escala – inúmeras
vezes realizado por descendentes de escravos – em todas as direções morais e intelectuais em
que ele operou e opera; nem há fator social que exerça a mesma extensa e profunda ação
psicológica que a escravidão quando faz parte integrante da família. Pode-se descrever essa
influência, dizendo que a escravidão cercou todo o espaço ocupado do Amazonas ao Rio
Grande do Sul de um ambiente fatal a todas as qualidades viris e nobres, humanitárias e
progressivas, da nossa espécie; criou um ideal de pátria grosseiro, mercenário, egoísta e
retrógrado, e nesse molde fundou durante séculos as três raças heterogêneas que hoje
constituem a nacionalidade brasileira. Em outras palavras ela tornou, na frase do direito
medievo, em nosso território o próprio ar – servil, como o ar das aldeias da Alemanha que
nenhum homem livre podia habitar sem perder a liberdade. Die Luft leibeigen war é uma frase
que aplicada ao Brasil todo, melhor que outra qualquer, sintetiza a obra nacional da
escravidão: ela criou uma atmosfera que nos envolve e abala a todos, e isso no mais rico e
admirável dos domínios da terra. ”
1. Escravidão é a marca mais profunda a macular a sociedade brasileira;
2. Aspectos dessa história marcam até hoje a sociedade em forma de mentalidade antiliberal (emancipate yourself for mental slavery), racismo, divisões em classe/cultura de títulos;
3. Problema profundo das heranças escravistas: falta de reforma agrária; marginalização do pobre e do negro através da guerra às drogas; restrições urbanísticas que condenam a infra-estrutura das favelas;
4. Ilusão dos supostos benefícios que o estado traz aos pobres: saúde, educação, previdência, bolsa família. A relação deficitária direta e os prejuízos indiretos causados pelas barreiras estatais na vida do pobre;
5. A escravidão não morreu, apenas se camuflou – fazer cálculo: quantos anos um brasileiro trabalha pra pagar imposto ao longo da vida?