Por Valdenor Júnior
A PEC nº 215/2000 tem como objetivo mudar o regime constitucional de demarcação de terras indígenas.
Atualmente, conforme o art. 231 da Constituição, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Seu § 1º define que terras são essas: “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”
Portanto, a União tem competência constitucional para demarcar as terras dos indígenas. Quando se fala em União, leia-se Poder Executivo, por intermédio dos órgãos pertinentes, notadamente a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). O processo está definido no Decreto nº 1775/96 e compreende uma série de etapas, que você encontra resumidas no site da FUNAI.
Perceba-se que nenhuma das etapas é de teor político. São utilizados critérios técnicos e antropológicos para reconhecer um direito preexistente de posse permanente, assim como a regularização fundiária, urbana ou rural, da terra de qualquer cidadão também utiliza critérios para registrar propriedades já existentes, mas não documentadas cartorialmente. O procedimento indígena é diferenciado por uma questão etnográfica: seu regime de posse da terra é diferenciado, regulado por usos e costumes peculiares. Mas o mesmo princípio de reconhecer uma propriedade ainda não registrada para fins legais ocorre tanto em um caso como no outro.
E, por isso mesmo, é que o Poder Executivo é quem detém essa competência. Em ambos os casos, não se trata de discutir se existe um direito da pessoa ou não de ter registrada/reconhecida sua terra como sua, mas sim de verificar se existe mesmo essa posse da terra, se a mesma é legítima, etc. Se o Poder Executivo entende incorretamente que não havia justo título à terra, pode-se recorrer ao Poder Judiciário, que examinará os fatos e aplicará o Direito pertinente. Nenhuma dessas discussões é política, mas sim jurídica.
A PEC nº 215 quer mudar esse panorama, atribuindo ao Congresso Nacional a competência exclusiva para aprovar as demarcações e ratificar as já realizadas. Isso submeterá a aprovação de demarcações ao jogo político, às intrigas parlamentares, às coalizões de ocasião. Basta obter uma maioria suficiente, para paralisas as demarcações de terra no Brasil, ao arrepio de qualquer critério técnico, jurídico ou antropológico, ao arrepio da consciência dos povos afetados.
Imagine, caro leitor não-indígena, se a propriedade da sua casa só pudesse ser reconhecida se o Congresso Nacional aprovasse? Você se sentiria mais seguro ou mais inseguro? (Aliás, a dura realidade é que muitos brasileiros vivem em terras, como a de favelas, cujo reconhecimento como propriedade fica à mercê do jogo político, e os resultados não são nada bons)
Imagine o que será do caso das comunidades mundurukus próximas ao Rio Tapajós, onde o governo federal tem interesse em fazer hidrelétricas que inundarão territórios delas? Tendo em vista a negligência do governo em reconhecer sua posse associada à eficiência do mesmo no planejamento do projeto hidrelétrico, os indígenas da etnia Munduruku da comunidade indígena Sawré Muybu (umas das que serão afetadas) foram forçados à ação direta: eles autodemarcaram suas terras; e agora estão em disputa judicial contra o governo brasileiro. Se já é difícil para as comunidades terem seus direitos reconhecidos no atual regime, imagine como será se depender de um Congresso viciado de interesses políticos e sem obrigação de aprovar as demarcações mesmo se comprovada a posse? (P.s: Você pode ajudar a causa dos mundurukus fazendo uma doação clicando aqui)
Fazer o reconhecimento das terras indígenas depender do jogo político no Congresso Nacional é uma violação do direito dos indígenas de terem suas terras reconhecidas como suas. Esse retrocesso não pode acontecer. Se for para mudar, que se mude para melhor, para garantir um regime mais sólido de posse. O caminho natural para aqueles que defendem a liberdade é que as terras indígenas deixem de ser propriedade da União, com mero usufruto aos indígenas, e passem a ser propriedade coletiva das comunidades, tal como já ocorre no caso dos Quilombolas.
Portanto, a mudança deve ser para diminuir o poder do Estado sobre as terras indígenas. Mas nem com essa melhora poderemos sonhar se deixarmos que a PEC nº 215, que será votada amanhã, esmague os direitos mais basilares dessas pessoas a terem sua terra reconhecida como direito, não como conveniência política.