Na madrugada do dia 4 para o dia 5 de setembro, Belém foi dormir aterrorizada pelos efeitos colaterais da guerra às drogas local.

Após a execução do cabo Figueiredo, da Ronda Ostensiva Tática Metropolitana (Rotam) da Polícia Militar, às 19h30min do dia 4, uma retaliação seguiu-se, com 9 mortes confirmadas no total segundo a divulgação oficial, 6 das quais com indícios incontroversos de execução, ocorrendo concomitantemente à operação da Rotam para prender os responsáveis pela execução do cabo da PM. Apesar de a divulgação oficial ter contado apenas 9 mortes, muitas pessoas acreditam que o número tenha sido maior, dada a noite de perseguição.

Enquanto a operação e as execuções estavam em andamento, boatos, áudios e vídeos espalharam-se entre a população por meio das redes sociais, como facebook e WhatsApp, alertando para o que estava prestes a acontecer ou acontecendo nos bairros periféricos do Guamá, Terra Firme, Jurunas e Canudos, especialmente.

Nesses bairros, um toque de recolher inoficioso impôs-se, dada a expectativa de que haveria retaliações contra suspeitos e que o objetivo desse grupo de extermínio (presumivelmente composto por policiais militares) era o de “não fazer prisioneiros”. O grupo clandestino atuaria acobertado sob o pretexto da operação oficial da ROTAM e seu objetivo era o de executar os suspeitos.

É importante que se esclareça que as mortes não ocorreram no contexto de tiroteios ou de resistência à prisão, mas foram execuções, e o próprio governo do estado reconhece, em nota oficial, que foram homicídios, mas sem concluir ainda pela participação de policiais militares, o que será investigado. O secretário de Segurança Pública do Pará, delegado Luiz Fernandes, reconhece também que as investigações trabalham com a hipótese da atuação de grupos de extermínio.

A sequência de acontecimentos, entretanto, não pode ser entendida a menos que se compreenda o contexto que isso ocorre, que são as dinâmicas da guerra às drogas local.

Em Belém, 66% da população habita em construções irregulares, favelas ou afins, que, primeiro, aglomeraram-se nas proximidades do centro (como ocorre em bairros como Guamá e Jurunas, e mesmo da Terra Firme, palco dos homicídios) e, mais recentemente, em bairros mais distantes. São áreas de grande adensamento, com pouco espaçamento entre as residências, mas que possibilitaram à cidade absorver um grande contingente de migrantes do interior do estado e do Maranhão, estado vizinho, inclusive para residência próximo ao centro onde estão grande parte dos empregos.

Entretanto, como em outras regiões brasileiras, são áreas marcadas pela demora e/ou ausência na inclusão em serviços públicos básicos, como saneamento, e pela precária proteção do direito à propriedade (embora não sejam comuns desapropriações ou remoções em Belém), e, como resultado da proibição do comércio de drogas, acabam sob o domínio de criminosos do tráfico de drogas.

Há algum tempo, sabe-se que os chefes do tráfico de drogas financiam milícias. Segundo reportagem do início do ano, sobre a atuação de milícias nos bairros do Guamá e da Terra Firme, esses grupos são formados por criminosos e policiais (geralmente já fora dos quadros funcionais da corporação), para proteção de traficantes contra outros traficantes e a polícia, mas também para extorquir a população. Como relata um morador da Terra Firme à reportagem:

“Eles pedem dinheiro para as pessoas e matam quem estiver no seu caminho. É própria criminalidade matando a criminalidade, mas há também pessoas de bem que são vítimas. Quando eles estão incomodados com alguma pessoas, criam uma circunstância para que o crime aconteça”

Já o grupo que atua no Guamá, formado principalmente por policiais reformados, estaria envolvido no assassinato de jovens, muitos deles envolvidos com a criminalidade, “quem anda pela rua fora de hora, quem rouba e usa drogas”, nas palavras de um morador. A lei do silêncio prevalece, pelo medo causado nos moradores pelas execuções.

A reportagem também mostra que a polícia costuma trabalhar com a hipótese de pistoleiros contratados para acertos de contas ou para executar quem está em dívida, negando a existência de milícias e de grupos de extermínio que é sustentada pela população que mora nesses bairros. Os eventos da última terça parecem ter mudado isso, já que o secretário de Segurança Pública, como falado acima, reconheceu a possibilidade do envolvimento de um grupo de extermínio.

O temor generalizado da população após a morte do Cabo da PM na terça ilustra o quão real é para os moradores desses bairros o medo da ação das milícias e de policiais dentro destas ou acobertando estas, tanto como dos traficantes de drogas. Medo este que, pela primeira vez, atingiu muitos dos moradores de áreas melhor localizadas em Belém, com renda maior, os quais não vivem o cotidiano de apreensão vivenciado pelos habitantes da periferia, especialmente os que moram em favelas onde os traficantes dominam e milícias impõem sua presença. Como nunca, esta madrugada em Belém fez moradores de bairros em condições tão diferentes compartilharem do mesmo medo, da polícia, do tráfico e das milícias.

Portanto, as execuções de terça para quarta não foram um simples caso isolado de retaliação, mas sim uma realidade perene vivida por moradores da periferia de Belém, muitos dos quais conhecem alguém que foi executado ou tiveram um parente assassinado, alguns que foram expulsos de suas casas pelos traficantes, outros que evitam sair de casa a certas horas da noite (não só na última terça!) por medo do que poderá acontecer consigo e com os seus.

A essa população, que sofre de tantos lados, desde os traficantes até a abordagem de policias, é negada a mais básica e elementar forma de reduzir a criminalidade violenta no Brasil e seu financiamento: o fim da guerra às drogas. Não existe nenhum motivo para que cidades brasileiras encontrem-se no topo do ranking de cidades com maior número de homicídios do mundo que não seja essa política fracassada de proibição das drogas. Muitas cidades são mais perigosas que Belém, que está em 343º no ranking de cidades com maior número de homicídios no Brasil (a capital do Pará tem 45,6 homicídios por 100.000 habitantes), mas as causas são similares entre essas cidades. A maioria desses homicídios em Belém e nas outras cidades estão relacionados ao tráfico de drogas.

Uma das bandeiras liberais mais importantes é o fim dessa política que cerceia nossas liberdades, coloca pessoas não violentas atrás das grades (nos Estados Unidos, chegou ao ponto de que algumas foram condenadas a passar o resto de suas vidas em uma prisão) e mata muito mais do que os problemas de saúde relacionados ao abuso dessas substâncias pelo usuário, ao conferir uma fonte rápida de financiamento aos criminosos que passam a controlar este mercado.

Contudo, é vendido às pessoas que moram nesses bairros (bem como aos moradores de outros bairros mais privilegiados de Belém) que apenas uma política mais repressora de segurança vai resolver seus problemas. É atribuído ao usuário de drogas o papel de bode expiatório e, por vezes, sugere-se que a execução extrajudicial de criminosos pela polícia seria bem-vinda.

Mas negar o direito ao devido processo legal e legitimar ainda mais a licença para matar que os policiais já possuem por deficiências de nosso sistema legal (como a figura do “auto de resistência“) têm o condão de apenas intensificar as violações de direitos humanos que diariamente são perpetradas no Brasil, com o esmagamento das pessoas (especialmente as mais pobres) postas à mercê de um Estado policial,  e dissimula o fato da conexão de policiais com traficantes e milícias, que demonstra ser o quadro muito mais complexo do que uma fé ingênua na polícia como guardiã da lei e da ordem pretenderia.

Assim, o caso de Belém escancara a monstruosidade que é a guerra às drogas brasileira e as consequências destas nas dinâmicas urbanas das periferias, marcadas pela onipresença da violência, cuja principal causa não é a falta de mais repressão policial ou de mais execuções em relação às que já existem tanto da parte dos traficantes quanto de policiais), mas sim o próprio Estado em sua ânsia de criminalizar condutas sem vítimas, especialmente o comércio e uso de drogas, o que acarreta o enriquecimento de grupos criminosos e o aumento da vulnerabilidade de comunidades que perdem a capacidade de organizar sua própria segurança.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Compartilhar