Diante da chacina /
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos /
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres /
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
Haiti – Caetano Veloso
A ditadura foi horrível, levou a inúmeros e variados atrasos que perduram até hoje na sociedade brasileira já que diversas características anti-liberais que permeiam hoje a nossa sociedade tem a sua criação ou o seu fortalecimento nos tempos de chumbo. Pode-se citar na esfera econômica o apreço pelo protagonismo do Estado no desenvolvimento e a rejeição a abertura comercial. Do ponto de vista político, a extinção das duas bases das democracias liberais contemporâneas: ampla liberdade de participação e de contestação. Nessas áreas, o nosso regime democrático levou a resultados muito mais positivos. O sistema político ainda tem diversos problemas, mas é aberto e inclusivo a diferentes atores. A nossa economia ainda é arredia aos aspectos positivos das forças de mercado, mas não se compara com a profusão de estatais criadas pelos militares.
Há, porém, uma área em que os resultados são contraditórios: nos direitos humanos. Eles melhoraram, o seu abuso deixou de ser política de Estado para a manutenção de um sistema de exceção. Há, mesmo que de maneira vacilante, um avanço do Estado de direito e garantia de direitos individuais. Por outro lado, e mesmo após o trauma de viver um regime de exceção, não conseguimos consolidar uma cultura de direitos humanos. Frases como “direitos humanos para humanos direitos”, “tá com pena? Leva pra casa!” e “direitos humanos só serve pra proteger vagabundo” se perpetuaram no imaginário coletivo nacional.
Isso se deve, em grande medida, a incapacidade, no Brasil, das forças políticas que eram democráticas no pós-ditadura se antagonizaram e decidiram ganhar o apoio e governar com figuras ainda vinculadas com a ditadura e descompromissadas com os direitos humanos. Diferentemente do que ocorreu no Chile em que conseguiu consolidar a visão do que Pinochet realmente é: um monstro. Piñera, primeiro presidente de oposição e de direita eleito depois da redemocratização, deixou claro já na sua primeira manifestação como presidente no congresso chileno a sua rejeição as violações aos direitos humanos:
No Brasil, infelizmente, não conseguimos alcançar semelhante consenso. E, pior, pessoas que se proclamam defensores da liberdade desprezando a fundamental ideia que é direitos humanos no combate a tirania. A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, feita após a Revolução Francesa de 1789, é a base fundamental dos direitos humanos sendo uma reação contra o poder absolutista e garantir direitos fundamentais a todos os indivíduos.
Essa reação ao poder absoluto segue com os dois grandes intelectuais liberais do século XIX: Locke e Mill. Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo, faz uma forte resposta a visão absolutista, e que hoje seria considerada autoritária, de Hobbes. Locke apresenta como todo indivíduo pelo simples fato de ser humano tem direitos inalienáveis como a liberdade e a propriedade. Mill, por sua vez, no seu livro Sobre a Democracia, mostra como a democracia não pode ser o regime em a maioria possa oprimir as minorias e os indivíduos.
A vitória moral e efetiva do reconhecimento da necessidade do princípio liberal de defesa aos direitos dos indivíduos ocorreu com a derrocada dos regimes coletivistas nas palavras de Hayek, ou seja, dos sistemas políticos antagônicos ao princípio de defesa do indivíduo: o nazi-fascismo e o stalinismo soviético. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma consequência direta do fim da Segunda Guerra e mais um esforço para que os horrores nazistas e fascistas não voltassem a ocorrer.
Há, portanto, uma relação entre o autoritarismo e a garantia de alguns direitos fundamentais que convencionamos chamar de direitos humanos. A relação é que todo regime ditatorial rejeita e cessa os direitos humanos e é muito simples saber porque: os direitos humanos são liberdade, são a força do indivíduo contra as arbitrariedades do Estado e seus governantes. Por isso, nós, brasileiros, ainda tempos que aprender a lição que os chilenos já sabem: da mesma forma que meia verdade é uma mentira completa, meia liberdade é autoritarismo completo. Não importa quem seja, não importa contra quem ele se opõe; alguém que menospreza ou homenageia quem maculou os direitos humanos não é alguém que valoriza a liberdade.