Por Anthony Ling
Recentemente escrevi um artigo em defesa da verticalização – a construção de edifícios mais altos – respondendo a outro artigo que se posicionava contra ela. Na ocasião deixei explícito que eu estava tratando sobre a construção de edifícios altos como resposta a uma maior demanda por território (muitas pessoas querendo morar no mesmo lugar) e não estava tratando sobre a verticalização brasileira por uma série de distorções que existem no nosso mercado imobiliário. Embora isso tenha ficado bastante claro, o debate que se seguiu continuou criticando meu texto usando o exemplo da verticalização brasileira quase como uma regra absoluta de o que significa verticalização, apesar de ele ser uma exceção.
Restringem densidade: O conceito de verticalização faz sentido como uma forma de aumentar o aproveitamento do solo urbano, aumento a densidade demográfica, aproximando humanos e tendo ganhos de escala no uso do espaço e da infraestrutura construída. No entanto, com recuos obrigatórios, não é incomum encontrarmos casos de bairros verticalizados que não apresentam altas densidades. Em São Paulo, por exemplo, é incomum o cidadão perceber que a Vila Mariana é muito mais densa que Moema, que a Vila Madalena não ficou mais densa depois que verticalizou, ou que Paris e Barcelona são muito mais densas que São Paulo com edifícios muito mais baixos. Já em Porto Alegre, pessoas ficam confusas ao saberem que a Cidade Baixa tem o dobro da densidade do Bela Vista, onde a confusão ocorre inclusive nos seus nomes. Com edifícios isolados nos terrenos há área inutilizada, que normalmente se transformam em áreas privadas de lazer abandonadas. A verticalização ocorre sem produzir aglomeração, o que seria o motivo da verticalização em primeiro lugar.
Desincentivo para construir no térreo
Cidades brasileiras normalmente possuem legislações que obrigam o incorporador a construir um determinado número de vagas de garagem para cada unidade residencial ou de acordo com o tamanho da área comercial construída, número que também varia de acordo com a “classe” do empreendimento (empreendimentos de luxo devem construir mais vagas). Isso normalmente significa, em edifícios residenciais: garagens subterrâneas que aumentam o custo da obra; uma ocupação do térreo que teoricamente deveria ser usada como área de lazer; ou um novo incremento na altura do prédio quando não ela não é subterrânea, como é o caso em muitos edifícios ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Em grandes edifícios comerciais, muitas vezes isso significa ainda a construção de um grande edifício garagem especificamente para o empreendimento, não por decisão única do empreendedor mas para cumprir com a legislação imposta. Ou seja, a verticalização deve obrigatoriamente dar comodidade a quem anda de carro, ocupando grandes áreas urbanas para armazená-los e impedindo aqueles que não possuem carro de não pagar por uma vaga.
Exclusão urbana e incentivo ao carro
Sem vida nas calçadas, os edifícios finalmente decidem construir cercas para se protegerem do ambiente inóspito que é criado na rua. A monotonia ou dificuldade de se andar a pé nas cidades aliada a calçadas inseguras e legislações que promovem a construção de garagens se tornam um grande incentivo ao uso do carro e à exclusão urbana. Cidadãos se tornam condôminos ilhados que vão de um ponto a outro sem interação alguma com outros espaços da cidade, característica que foi regra em toda história do ser humano em cidades e que foi perdida nas últimas décadas.
Benefícios privados, prejuízos sociais
Diferente de cidades de outros países, um ponto positivo das nossas cidades são os mecanismos sofisticados para pagar taxas ao poder público para que se construa acima do limite permitido na legislação. Ao invés de simplesmente proibir o desenvolvimento as prefeituras cobram pelo uso adicional da infraestrutura pública e pelos potenciais prejuízos que podem ser causados na região. Em São Paulo isso se chama “outorga onerosa” e em Porto Alegre se chama “solo criado”. É uma maneira razoável de tornar a operação mais justa, sem que se privatize benefícios gerando custos sociais.
No entanto, a regulação urbana no Brasil sempre foi um tanto flexível. Planos diretores são atualizados e bairros mudam seu zoneamento com o passar do tempo, normalmente pressionados por grupos de interesse que possuem terrenos em locais estratégicos. Estes grupos praticam o “lobby”, ajudando políticos (publicamente ou secretamente, financeiramente ou movimentando massas eleitorais) para que defendam mudanças em seu benefício. O relacionamento pode ser feito com vereadores, que normalmente votam nas mudanças no Plano Diretor que podem modificar o potencial construtivo de grandes áreas permitindo mais construção sem outorga onerosa. O Poder Executivo também pode ser influenciado para direcionar novas obras de infraestrutura para regiões onde estes grupos tem terrenos, aumentando seu valor no mercado.
Transformação radical
É comum que essas mudanças legislativas ocorram de forma radical para a característica urbana do bairro. Um determinado bairro zoneado para pequenas residências unifamiliares frequentemente tem sua legislação alterada para permitir grandes edifícios de noite para o dia, sem que haja uma transformação gradual deste cenário. Não é incomum vermos conjuntos de prédios altos surgirem no meio de pequenas casas, criando contrastes que não se vêem com tanta frequência em outros países. Transformações radicais também podem acontecer em cidades menos reguladas de forma geral, mas é mais comum que o ajuste do bairro em relação à demanda ocorra de forma mais gradual, com a verticalização irradiando de pontos de alta atratividade – alta demanda – e gradualmente diminuindo para zonas de menor demanda.
Aumento de preços: atratividade localizada e oferta restrita
Quando um determinado bairro ou conjunto de quadras se verticaliza sua atratividade normalmente aumenta, tanto pela renovação da infraestrutura e a introdução de novas amenidades de comércio quanto pelo aumento da densidade (que nem sempre necessariamente ocorre, como vimos anteriormente), que por sua vez aumenta o número de atividades no mesmo local, atraindo ainda mais pessoas. Esses fatores geram um aumento na demanda de pessoas de outros bairros ou ainda de outras cidades por aquele espaço, pressionando o aumento de preços apesar do aumento da oferta com as novas construções.
No entanto, estes bairros ou conjunto de quadras normalmente são espacialmente restritos, assim como o potencial construtivo limite da legislação vigente. Assim, a oferta é restrita antes do bairro se beneficiar da lei de rendimentos decrescentes, que provocaria uma diminuição nos preços. Para ilustrar essa situação, considere o seguinte exemplo: os primeiros prédios que virão junto dos primeiros supermercados, agências bancárias ou restaurantes vão contribuir para valorizar o bairro, mas a centésima torre junto ao quinto banco provavelmente nem será percebida. Seria nesse ponto que o aumento da oferta no mercado venceria o efeito das amenidades responsável por aumentar os preços – e os preços começariam a cair – mas normalmente existe um limite que restringe que elas surjam.
Verticalização, assim, é relacionada com o aumento no preço dos imóveis, embora no contexto geral esteja contribuindo para o aumento do estoque imobiliário, o que aumenta a oferta e diminui o preço. Como outro exemplo para explicar este efeito, todo novo morador de uma nova unidade está deixando um imóvel anterior: se ele está partindo buscando um lugar melhor para morar e não por necessidades financeiras, o imóvel de onde ele parte perdeu atratividade perante seu novo bairro. Um imóvel pode ter se tornado mais caro, mas outros, em outras regiões, acabam ficando mais baratos. Usando um exemplo extremo e impossível como ilustração, se um incorporador construísse um edifício com 1 milhão de unidades o preço dos imóveis naquela região iria despencar, já que se tornaria muito menos escasso.
Um fenômeno local e recente
A verticalização raramente ocorre com todas essas variáveis que encontramos no Brasil. Ao olharmos cidades que se verticalizaram para atender uma crescente demanda por espaço, como Nova Iorque ou Hong Kong, percebemos a inexistência de maioria dessas restrições. Isso gera nessas cidades uma aglomeração acessível e sustentável, conforme comentei na minha postagem sobre os benefícios da verticalização.
Cidades brasileiras tiveram uma verticalização muito mais saudável no passado, abandonada ao longo do tempo. As primeiras zonas a se verticalizarem intensamente, como o centro de cidades como São Paulo e Porto Alegre ou o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, não tinham recuos obrigatórios, incentivos para não ocupar o térreo nem vagas mínimas de garagem, além de ter legislações urbanas menos zoneadas de forma geral, com menos desigualdade de regras na hora de construir.
É engraçado de ver que o que provocou a suburbanização e a fuga desses bairros no passado é justamente o que as pessoas buscam hoje na procura de um imóvel: mais densidade e atividade urbana, mais facilidade de andar a pé e menos dependência do carro, apartamentos menores e preços mais acessíveis. Não é coincidência que o Centro de São Paulo foi um dos bairros que teve maior crescimento populacional, com taxas semelhantes às periferias, em um movimento para reocupar este espaço de qualidade mas esquecido.
O movimento contra a verticalização de 50 anos atrás tinha motivos muitos diferentes dos atuais, pois naquela época o resultado urbano da verticalização era muito alinhado aos objetivos daqueles que a criticam hoje. Infelizmente, as legislações que foram sendo acumuladas ao longo do tempo e que estão invisíveis ao cidadão comum criaram uma nova forma de construir para cima diferente dos centros antigos, provocando uma noção equivocada do que significa verticalizar.
Publicado originalmente no Rendering Freedom