Nas minhas três viagens pelo Projeto Rondon quando aluno da Universidade de Brasília, eu tive a oportunidade de conversar com agentes comunitários de saúde, médicos, enfermeiros e secretários municipais de saúde em municípios do interior do Brasil. Duas coisas me chocaram bastante: o número de pacientes com hipertensão arterial, e o fato de todos os pacientes serem tratados com o mesmo medicamento, Captopril.
Esse é o medicamento mais comum e um dos mais antigos utilizados para tratamento de hipertensão arterial. Ele é genérico o suficiente para poder ser utilizado em diferentes casos, entretanto, como todo e qualquer medicamento, ele não deveria ser a única opção. Infelizmente, todos os pacientes com quem eu conversei tinham sido receitados diferentes doses de Captopril, sendo ele o único medicamento presente nas farmácias dos postos de saúde. Um detalhe é que minhas duas avós tomam o mesmo medicamento, entretanto, o controle que seus médicos tem de seu estado geral de saúde é bem maior do que o observado nesses municípios do interior do Brasil, e isso é o fator importante.
Antes de explicar porque eu acho problemática a exclusividade do Captopril na rede pública de saúde, vamos a uma breve revisão do mecanismo desse remédio.
Provavelmente, a maior parte dos leitores não sabe, mas remédios para doenças cardiovasculares dificilmente atuam no coração. Normalmente, esses medicamentos afetam o sistema nervoso, o sistema excretor, ou o sistema muscular. Por que isso?
Por dois motivos simples: os mecanismos de funcionamento do coração ainda não são totalmente entendidos, e é mais fácil alterar a função de órgãos que sejam mais facilmente acessíveis e substituíveis do que o coração. Por exemplo, é muito mais fácil fazer hemodiálise para o caso de um problema de rins do que arranjar um coração novo para transplante, o mesmo vale para conseguir que pessoas façam exercício a fim de compensar a flacidez muscular causada por alguns medicamentos, ao invés de fazer pontes de safena e assim por diante.
O Captopril não foge a essa regra, atuando diretamente nos rins, e por conseguinte afetando o funcionamento do coração de do sistema vascular. A droga inibe a enzima conversora de angiostesina, gerando vasodilatação e consequentemente menor pressão arterial. Esse processo acontece nos rins, alterando o funcionamento desses órgãos e consequentemente provocando modificações nos tecidos e nas interações celulares que lá acontecem.
Até aí está tudo bem. A droga tem um funcionamento conhecido, atuando em sistemas que foram bem modelados e estudados durante o século XX. Os seus efeitos colaterais foram bem estudados e os anos que esse medicamento está no mercado trazem cada vez mais informações sobre o que pode dar de errado. Mas o problema começa quando um paciente que não tem apenas problema de pressão tem de tomar esse remédio.
E o grande problema do SUS é que a maior parte dos pacientes com condições crônicas atendidos pelo sistema apresentam múltiplas doenças. Assim, o estudo específico de como cada medicamento interage com os outros que foram receitados se faz não só necessário, mas essencial. Entretanto, devido a restrições de pessoal e mesmo de vontade, esse trabalho não é feito corretamente.
Junta-se a isso, o fato de que o Captopril — assim como outras drogas amplamente receitas — é um medicamento relativamente abundante e comum, seu preço é baixo. Sendo um medicamento barato, que atende a necessidade do paciente básico — aquele que só apresenta alta pressão arterial — e de poucos efeitos colaterais, ele se torna um candidato preferencial para compras em licitações. E o que acontece é justamente isso: o Captopril acaba sendo o medicamento comprado pelos gestores de saúde, se tornando a opção preferencial de receita dos médicos do SUS — visto que os pacientes não precisam pagar pela droga pois ela estará disponível na farmácia do hospital.