Como dito nesse artigo deste Mercado [linkar o artigo], a Escola Austríaca (EA) passou a ter considerável notabilidade no Brasil nos últimos anos. E, a um pensamento que cresce a passos largos, críticas e contrapontos são sempre bem-vindos. Entretanto, alguns pontos precisam ser esclarecidos, principalmente para mostrar quais as principais contribuições dessa escola na história do pensamento econômico e no processo histórico pelo qual o Brasil passa atualmente. Aqui, pretendo manter a comparação da Escola Austríaca com a Tradição Neoclássica, iniciada no artigo acima citado, mas agora sob o ponto de vista austríaco.
De fato, a EA possui um forte componente humano, muito mais do que matemático ou econométrico, os quais são cruciais para pensamento neoclássico. Isso acontece porque o próprio ponto de partida de toda a análise austríaca está na praxiologia — isto é, no estudo da ação humana —, que explicarei em breve. Essa diferença nos permite dizer que enquanto o mainstream vê a economia muito mais como uma plutologia (estudo da riqueza), os austríacos a veem como uma catalaxia (estudo das relações de troca e dos preços).
Sendo assim, quando comparamos a EA com Tradição Neoclássica, da forma disposta naquele artigo, podemos dizer que as diferenças entre os austríacos e os neoclássicos se dão principalmente nos âmbitos metodológicos e epistemológicos. Na prática, tal como estes, os austríacos também atribuem uma enorme importância aos conceitos de escassez, divisão do trabalho e oferta e demanda; acreditam que a economia se faz por meio de trocas voluntárias e que não é um jogo de soma-zero; defendem a ideia de que os preços contêm informações e, portanto, concordam 100% com o exemplo do lápis de Milton Friedman.
Pois bem, então quais seriam essas diferenças metodológicas e epistemológicas?
O filósofo e economista Ludwig von Mises, o mais proeminente teórico austríaco, foi quem definiu e desenvolveu a praxiologia, o que tornou a EA bastante distinta das outras escolas de pensamento. Para entendermos isso é preciso, em primeiro lugar, destacar que a praxiologia utiliza-se do método lógico dedutivo e é apriorística, pois o axioma da ação humana deve ser considerado a priori. Isso significa que para a EA, ao contrário dos neoclássicos, a ciência econômica não deve usar a mesma metodologia das ciências naturais, que em geral é indutiva e empirista. Além disso, a análise praxiológica é subjetivista e parte do individualismo metodológico, isto é, qualquer análise econômica, política ou social deve ter como ponto de partida o indivíduo. Este, portanto, age no mundo e interage com outros indivíduos, sendo motivado por impulsos subjetivos e com fins racionais, na busca de passar de um estado de menor satisfação para um estado de maior satisfação. É isso que Mises chama de ação humana e é dela que nasce a praxiologia.
Somados a isso, temos outros dois elementos que, juntos com a ação (humana), formam as bases da EA: o tempo e o conhecimento. Para os austríacos, o tempo é sempre dinâmico, ou seja, é impossível simplesmente fazer um recorte temporal de alguma situação econômica e analisá-la por meio de uma fórmula matemática ou tentar fazer previsões de como a economia irá se comportar, pois as ações e motivações (sempre subjetivas) dos agentes econômicos estão em constante mudança e as decisões estão sendo tomadas de forma simultânea.
A questão do conhecimento também é crucial para o desenvolvimento da teoria pois, diferentemente das outras escolas, os austríacos defendem a ideia de que o conhecimento é disperso na sociedade e impossível de ser completamente reunido e centralizado. Como sabemos, políticos e economistas justificam suas intervenções na economia com base nessa pretensão de conhecimento total e centralizado (a qual Hayek chamou de arrogância fatal), um dos motivos pelos quais a EA se opõe veementemente ao intervencionismo.
Dessa forma, em resumo temos que, para a EA, os indivíduos detêm um conhecimento disperso e fragmentado, agem dinâmica e simultaneamente, levados por motivações subjetivas, com vistas a um fim determinado racionalmente. E tudo isso implica na ideia austríaca primordial de que o Estado deve interferir o mínimo possível na vida e na propriedade das pessoas (seja por meio de leis, regulações, impostos ou utilizando a força física), tanto em nome da liberdade individual quanto em nome da eficiência econômica.
É por isso que, para a EA, os agregados macroeconômicos, os modelos de equilíbrio ou o formalismo matemático não têm muita importância. Como as motivações dos indivíduos são subjetivas, o conhecimento é disperso e o tempo é dinâmico, a economia nunca de fato chega a um equilíbrio macroeconômico — pois apesar dela tender ao equilíbrio, nunca realmente o atinge —, portanto fórmulas matemáticas com vistas a analisar determinado momento, a prever o comportamento da economia ou, pior, a propor intervenções estatais na economia (como é comum aos neoclássicos) não fazem sentido. Para a EA é impossível fazer previsões ou fornecer informações precisas por meio de cálculos. Pode-se até ter ideia de como a economia se comportará em algum momento do futuro, pode-se ter ideia de que em algum momento ocorrerá uma crise, um boom ou uma recessão, mas nunca conseguiremos fazer previsões com a exatidão pretendida pelos neoclássicos.
Então, quais seriam as principais contribuições da Escola Austríaca para pensarmos a economia?
O economista austríaco Carl Menger, um dos expoentes da Revolução Marginalista, é considerado o fundador da EA. Dentre diversas contribuições e conceitos introduzidos na análise da economia, um dos mais importantes foi o de utilidade marginal. Na época, pela teoria do valor-trabalho, acreditava-se que o valor de um bem de consumo se devia apenas ao trabalho dedicado à produção desse bem. Entretanto, para Menger, o valor que se dá a um produto depende principalmente da valoração subjetiva que os indivíduos atribuem a esse bem. Um indivíduo com muita sede, por exemplo, está disposto a pagar um alto valor por um copo d’água. À medida em que sana sua sede, o valor que ele atribui aos copos d’água subsequentes é menor.
Outro membro da EA que contribuiu enormemente para o pensamento econômico foi Eugen von Böhm-Bawerk. Em seu livro Capital e Juro, ele explicou os juros de forma inédita, demonstrando que eles são naturais e inerentes ao mercado, e não artificiais, e também que refletem a preferência temporal natural do ser humano. Além disso, nessa obra ele refuta a famosa teoria da exploração defendida por Karl Marx.
No entanto, o maior expoente da EA foi um discípulo de Menger. Mises aprimorou a obra de seu mentor e criou e desenvolveu um universo inteiro para a ciência social e econômica, que, como já comentamos anteriormente, é a praxiologia. Na sua época, o debate que Mises travava era contra os socialistas e, dessa forma, uma das maiores contribuições do austríaco no debate econômico foi a demonstração teórica (pois a pratica por si só já é demonstrada) da impossibilidade da economia socialista (i.e., do socialismo) funcionar. Segundo o austríaco, isso acontece pois no socialismo não há propriedade privada, portanto não há a possibilidade de se realizar o cálculo econômico. Nas palavras de Hans-Hermann Hoppe, “se não há propriedade privada sobre a terra, sobre os bens de capital e sobre outros fatores de produção, então é impossível haver um mercado entre eles. Se não há mercado entre eles, então não há formação de preços para eles. Sem formação de preços, é impossível fazer previsões e cálculos econômicos. Logo, o cálculo econômico — isto é, a comparação entre as receitas previstas e os custos esperados, tudo expressado em termos de um meio de troca comum (o qual permite operações contábeis cardinais) — é literalmente impossível em uma economia estatizada”.
Embora Mises seja considerado o austríaco mais importante, o mais conhecido é seu discípulo F. A. Hayek (inclusive, o único a vencer um Prêmio Nobel de economia). Enquanto Mises, em seu tempo, dialogava com os socialistas, Hayek tinha como oponente Keynes e os keynesianos. O pupilo de Mises contribuiu para diversos campos do conhecimento, não apenas na economia, e talvez seu ponto de maior destaque seja o desenvolvimento da questão do conhecimento, opondo-se assim aos planejadores centrais e engenheiros sociais da época. Para Hayek, além do planejamento central ser coercitivo e ineficiente, ele está sujeito a consequências não previstas que podem prejudicar enormemente a sociedade.
Por fim, uma outra grande contribuição da Escola Austríaca para o pensamento econômico é a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos (TACE). Essa teoria, trabalhada por vários austríacos, mostra como a economia está naturalmente sujeita a flutuações e alternâncias entre booms, recessões, depressões e recuperações, que influenciam e são influenciados pelos juros, pela poupança e pela inflação. O que a TACE mais enfatiza é que as intervenções estatais (principalmente expansão de crédito e monetária e alteração artificial da taxa de juros), tendem a agravar esses ciclos, como aconteceu nas crises de 1929, 2008 ou na do Brasil em 2015.
E como a Escola Austríaca pode ajudar o Brasil no presente momento?
Antes de tudo, é importante ressaltar que a Academia no Brasil segue justamente a Tradição Neoclássica, de modo que EA fica quase que completamente excluída das universidades. Portanto, mesmo que alguns considerem que a EA esteja “na moda”, ou que esteja tendo um sucesso “exagerado” hoje no país, não podemos perder de vista que isso se deve a esforços privados de alguns indivíduos e instituições que gastam, diariamente, tempo e dinheiro para propagar a mensagem austríaca, principalmente por meio da internet.
A EA se faz relevante neste momento pois é a única escola de economia que tem como prioridade defender as liberdades individuais, seja econômica, seja social ou política, contra um Estado cada vez mais robusto. Estudar e aprender sobre a EA, introduzi-la e discuti-la em âmbito nacional, seja na internet, seja com os amigos no bar, seja na política partidária, é importantíssimo em um país como o nosso, que tem um Estado colossal, engessado, ineficiente e que está dominado por políticos e economistas com uma mentalidade estatista e centralista. Nesse sentido, qualquer política pública que claramente diminua a intervenção estatal, a centralização de decisões e a burocracia é compatível com a EA. Dessa forma, talvez a sua maior importância seja justamente a de fornecer às pessoas armas teóricas para combater esse Leviatã que reforça desigualdades, impede criação de riqueza e frequentemente atenta contra as liberdades individuais.
E talvez seja justamente esse caráter humano da EA, o qual a distancia do economês, do matemático e do econométrico, que facilite em grande medida o acesso das pessoas ao liberalismo. No lugar de formalismos matemáticos, é possível aprender que o tão mal-falado “mercado” não passa da livre interação (material ou não) entre as pessoas. Entender que o mercado são as pessoas. Por isso é essencial que pensemos a economia considerando essa característica, típica austríaca, da defesa da liberdade e dos direitos individuais.
A EA não se trata de uma defesa cega da anarquia de mercado, que nega todo e qualquer tipo de intervenção estatal sem dar espaço para o diálogo. Mesmo os austríacos anarcocapitalistas (como Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe), que de fato defendem a anarquia política e econômica, isto é, a ausência total do Estado, não o fazem cegamente. Seus argumentos são muito bem fundamentados e justificados.
Tal como a Tradição Neoclássica, o pensamento austríaco é sério, complexo e não deve ser nem usado e nem visto como um culto ou uma manifestação semirreligiosa. Ambas as linhagens de pensamento têm grande importância no processo histórico e ambas podem nos fornecer ferramentas, cada uma a seu modo, para pensar a sociedade e a economia atuais.