Por Kevin Vallier

Tradução por Pedro Galvão de França Pupo, texto original aqui.

Esta é a primeira de cinco postagens que sujeitam as afirmações normativas do livro “O Capital no Século XXI“, de Thomas Piketty, a um escrutínio crítico. Já houve muitas, muitas críticas às suas afirmações teóricas e empíricas, mas poucas das análises trataram de suas afirmações normativas, e menos ainda entraram em detalhes.

I. Preparação para a crítica

Eu não vou analisar as principais linhas de argumentos empíricos e matemáticos de Piketty. Se você está lendo esta postagem, ou você já sabe a linha básica ou consegue descobrir com uma pesquisa rápida no Google. [N.E.: Veja post do Mercado Popular a respeito] Além disso, nesta série eu não vou criticar os seus modelos teóricos ou afirmações empíricas. Em vez disso, eu vou presumir, pelo bem do argumento, que todas as suas afirmações teóricas e empíricas são verdadeiras.

Nesta série, eu só estou interessado na seguinte questão: supondo que Piketty esteja correto sobre a natureza do capitalismo, quais são as implicações normativas? Minha resposta será que elas são muito menos evidentes do que Piketty pensa. Se você quer tirar conclusões normativas do Capital então você vai precisar reconstruir seus argumentos de maneira significativa. Eu vou tentar alguma reconstrução nestas postagens, principalmente em um espírito Ralwsiano, já que fui informado de que Piketty disse pessoalmente que ele simpatiza com abordagens Rawlsianas à justiça distributiva, apesar de ter dito muito pouco sobre isso em O Capital.

Alguns vão dizer que Piketty é um economista, logo não podemos esperar que ele esteja familiarizado com filosofia política contemporânea. Se isso fosse verdade, Piketty não deveria ter feito as afirmações normativas detalhadas que ele faz no seu livro. Se você faz afirmações sobre como a riqueza deveria ser distribuída, e você quer que o seu trabalho seja influente, você tem um dever com seus leitores de ser cuidadoso ou pelo menos demonstrar uma familiaridade básica com os princípios da justiça distributiva. Isso é reforçado pelo fato de que Piketty enfatiza a necessidade de tornar a economia empiricamente e normativamente relevante, especialmente pelo bem da tomada de decisão democrática. Portanto, suas próprias intenções tornam válido um escrutínio filosófico dos seus argumentos.

Não vou dizer muito de positivo ou negativo sobre o trabalho, só sobre os argumentos normativos. Mas para esclarecer, eu acho que o livro é melhor do que a maioria dos seus críticos acha e pior do que a maioria dos seus apoiadores acha. Eu li pelo menos duas dúzias de análises e postagens sobre o livro, e mais o livro em si inteiro, e nesse momento eu coloco a minha confiança estatística nos seus dados em 60% (70% depois de ler sua resposta detalhada ao Financial Times), minha confiança na sua modelagem um peso estatístico de 40% e minha confiança nas suas conclusões normativas um peso estatístico de apenas 20%.

Em outras palavras, Piketty provavelmente está correto ao afirmar que a desigualdade de renda e riqueza tem aumentado nos países desenvolvidos nas últimas décadas, ele provavelmente está errado ao afirmar que a melhor explicação para isso é r > g* e suas leis fundamentais do capitalismo, e ele muito provavelmente está errado ao pensar que o capitalismo é normativamente defeituoso das maneiras que ele descreve e que um imposto global sobre riqueza é uma solução normativamente aceitável.

*[N. E.: r > g significa que os rendimentos [r] do capital (imóveis, ações, máquinas, títulos de dívida, conta de poupança no banco, etc.) tendem a ser maiores do que o crescimento da produtividade dos trabalhadores [g], cuja consequência seria os donos dos bens de capital verem sua riqueza aumentar mais rapidamente que o resto da população]

Eu vou dividir os argumentos normativos de Piketty em dois tipos: avaliativos e prescritivos. Argumentos normativos são avaliativos quando eles oferecem uma afirmação moral sobre um fenômeno, evento ou comportamento, enquanto argumentos normativos são prescritivos quando eles nos dizem como nós devemos responder moralmente a certos fenômenos, eventos ou comportamentos (vistos como moralmente defeituosos ou sub-ótimos.) Eu acredito que Piketty tem quatro argumentos avaliativos que correspondem aproximadamente a quatro argumentos prescritivos. Ele também tem outros argumentos, mas eu vou me concentrar nesses oito na minha série. Aqui está a minha lista.

II. Argumentos avaliativos

Todos os argumentos avaliativos são críticas morais ao que Piketty chama de “capitalismo patrimonial” do século XXI.

1A. Instabilidade Social: o perigo de r > g e do capitalismo patrimonial é que a desigualdade de renda vai produzir alguma forma ruim de instabilidade social, talvez até revolução violenta.

2A. Desigualdades Injustas: r > g e o capitalismo patrimonial geram desigualdades de renda que não podem ser justificadas em bases igualitárias e/ou meritocráticas, já que essas desigualdades não ajudam a “utilidade comum”.

3A. Falta de Transparência: r > g e o capitalismo patrimonial resultam em altos níveis de desigualdade de riqueza que são fáceis de ocultar sob as condições legais atuais. Isso torna a verdadeira distribuição de renda inacessível ao público eleitor, impedindo que eles tomem decisões coletivas racionais.

4A. Ameaças à Democracia: r > g e o capitalismo patrimonial significam que aqueles com riqueza serão capazes de comprometer a democracia ou pelo menos não serão adequadamente controlados pela democracia. Parece que a força deste argumento deriva inteiramente dos três primeiros, e especialmente de 1A e 3A. Mas a aparência de desigualdades e o fato de que as pessoas as consideram injustas é uma fonte de instabilidade, então 2A apoia parcialmente 1A na justificativa de 4A.

III. Argumentos Prescritivos

Todos os argumentos prescritivos defendem que um imposto global progressivo sobre o capital resolve os problemas identificados pelos argumentos avaliativos. Apesar de alguns argumentos favorecerem políticas adicionais como solução, quase todos os argumentos prescritivos são oferecidos em prol do imposto global progressivo sobre o capital, então eu vou me concentrar nesses.

1P. Restaurando a Estabilidade:  Um imposto global progressivo sobre o capital vai reduzir desigualdades de riqueza, e portanto vai comprometer, corrigir ou pelo menos restringir as instabilidades geradas pelo capitalismo.

2P. Corrigindo Desigualdades Injustas:  Um imposto global progressivo sobre o capital vai reduzir desigualdades de riqueza injustas de uma maneira eficiente, comparado com as alternativas socialistas e protecionistas.

3P. Aumentando a Transparência:  Um imposto global progressivo sobre o capital vai impedir paraísos fiscais e outras instituições que tornam difícil, se não impossível, para o público geral saber qual é a distribuição de renda, já que o poder responsável pela cobrança vai gerar registros precisos.

  4P.  Salvando a Democracia:Um imposto global progressivo sobre o capital vai ajudar a restaurar o controle da democracia sobre o capitalismo. Parece que a força deste argumento deriva inteiramente dos três primeiros, principalmente de 1P e 3P. Mas a aparência de desigualdades e o fato de que as pessoas as consideram injustas é uma fonte de instabilidade, então 2P apoia parcialmente 1P na justificativa de 4P.

Eu vou fornecer citações dessas afirmações em postagens futuras. Eu espero que aqueles de vocês que conhecem o livro me digam se estou classificando os argumentos corretamente.

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