Por Kevin Vallier
Tradução por Pedro Galvão de França Pupo, texto original aqui.
Nesta postagem, eu vou revisar o argumento do controle democrático de Piketty, que afirma que a desigualdade crescente de renda e riqueza tornam o controle democrático sobre a sociedade difícil, se não impossível, e que um imposto global progressivo sobre capital vai ajudar a democracia a retomar o controle. Esse argumento exige pouca exposição, já que ele é baseado nos outros argumentos que eu já revisei aqui. Aqui estão resumos rápidos das duas partes do argumento:
4A. Ameaças à Democracia: r > g e o capitalismo patrimonial significam que aqueles com riqueza serão capazes de comprometer a democracia ou pelo menos não serão adequadamente controlados pela democracia.
P. Salvando a Democracia:Um imposto global progressivo sobre capital vai ajudar a restaurar o controle da democracia sobre o capitalismo.
4A depende de 1A e 2A, enquanto que 4P depende de 1P, 2P e 3P. Clique aqui para ver as passagens relevantes que falam diretamente sobre a importância da democracia. Encontrei passagens chave nas páginas 1, 6, 31, 424, 480, 515, 532, 569 e 573.
1. Ameaças à Democracia
Se a desigualdade de renda e riqueza continuar a crescer, a democracia vai perder o controle sobre o capitalismo. A preocupação geral é que sem uma compressão de desigualdade os capitalistas “podem facilmente virar donos de tudo que pode ter um dono, incluindo propriedades rurais e bicicletas, de uma vez por todas” (6). Esse é o pior caso possível, mas é uma possibilidade real. Porém, no geral, 4A funciona assim: o capitalismo vai gerar instabilidade social, que vai tornar difícil manter instituições democráticas estáveis e funcionais (1A, o argumento da estabilidade social) e desigualdades injustas e crescentes vão ser grandes demais para corrigir (2A, o argumento da desigualdade). O raciocínio geral é algo parecido com isso:
A racionalidade econômica e tecnológica às vezes não tem nada a ver com a racionalidade democrática. A primeira deriva do Iluminismo, e as pessoas geralmente têm presumido que a segunda também o seria, como que por mágica. Mas a democracia de verdade e a justiça social exigem instituições específicas próprias, não só as do mercado, e não só parlamentos e outras instituições democráticas formais. (424)
O funcionamento normal do mercado não se importa com a democracia e a democracia não deriva naturalmente da sociedade de mercado. Em vez disso, você precisa construir deliberadamente instituições democráticas para controlar o mercado.
2. Salvando a Democracia
Piketty tem mais a dizer sobre como o imposto global sobre capital pode salvar a democracia. É uma maneira de permitir que “a democracia possa retomar o controle sobre o capitalismo e garantir que os interesses gerais tenham precedência sobre interesses privados, enquanto preserva a abertura econômica e impede reações protecionistas e nacionalistas” (1). E de novo:
Mas se queremos que a democracia retome o controle sobre o capitalismo financeiro globalizado deste século, ela também precisa inventar novas ferramentas e se adaptar aos desafios modernos. A ferramenta ideal seria um imposto global progressivo sobre capital, junto com um alto nível de transparência financeira internacional. (515)
Podemos ver que o imposto global sobre capital, ao comprimir desigualdades e ajudar a transparência financeira, vai salvar a democracia. E o imposto global é um bom jeito de fazer isso:
Uma taxa progressiva sobre riqueza individual reforçaria o controle sobre o capitalismo em nome do interesse geral e continuaria dependente das forças da propriedade privada e da competição. (532)
E aqui está a afirmação mais intensa e retórica de Piketty:
Se nós queremos retomar o controle sobre o capitalismo, precisamos apostar tudo na democracia – e na Europa, democracia em uma escala europeia. (573)
Precisamos encorajar instituições democráticas para comprimir desigualdades, desigualdades que de outro modo vão produzir instabilidade e desigualdades injustas. A melhor maneira de fazer isso é através de um imposto global sobre capital.
3. Problemas
Se os dados empíricos e os modelos de Piketty estão corretos, então eu acho que ele está certo ao dizer que em algum ponto, mercados vão restringir o controle que a democracia pode exercer sobre a distribuição de riqueza. A globalização e a mobilidade internacional de capital são as forças mais importantes aqui, já que qualquer tentativa de controle democrático poderia ser resistida via paraísos fiscais e semelhantes. Um imposto global sobre capital poderia de fato deter esse fenômeno. A questão interessante é se o crescimento da desigualdade realmente ameaça o bom funcionamento de instituições democráticas.
Mas Piketty não nos diz o que significa dizer que a democracia “funciona bem”, então é impossível responder essa questão. Eu acredito que essa é a maior preocupação sobre o argumento de Piketty. Em vez explicar quais são os tipos de problema com que ele está preocupado, ele acena vagamente para uma morte nebulosa da democracia.
Certamente é verdade que em alguma margem, algumas poucas pessoas serão ricas o suficiente para dominar totalmente instituições democráticas e fazê-las servir seus próprios interesses. Esse não é o caso atualmente, mesmo que os progressistas acreditem que obviamente é assim. Sim, pessoas ricas tem muito mais impacto sobre resultados democráticos do que pessoas pobres nos Estados Unidos, mas eles não são um bloco unido tentando subverter resultados democráticos. Em vez disso, eles simplesmente são um grupo grande, melhor educado, mais informado e familiarizado com o poder político, e que portanto afeta mais os resultados.
Quanto aos super ricos, é bem difícil para que eles desviem resultados democráticos para suas direções, particularmente porque enfrentam (a) problemas de principal-agente (N.E.: o conflito de interesses entre o representado e o representante que age em seu nome) indo do dinheiro até a legislação e (b) as prioridades políticas distintas parecem trabalhar umas contra as outras (Kochs vs Soros e Buffett).
Poderíamos lidar com essa desigualdade de influência sem um imposto global sobre capital. Um mínimo social, reformas nas leis de financiamento de campanhas e educação cívica ajudariam a reduzir o vão da influência. Não que eu defenderia qualquer uma dessas políticas (com exceção do mínimo social), veja bem, mas elas poderiam ajudar a atingir o objetivo de Piketty.
Perceba que porque 4P é baseado em 1P e 2P, ele também herda todos os seus problemas. Por ser baseado em 1P, não temos motivos para achar que atingimos o nível de desigualdade necessário para gerar o tipo de instabilidade ruim que preocupa Piketty, e lembre-se de que nós não sabemos o que é instabilidade. Por ser baseado em 2P, 4P só começa a fazer efeito depois de atingirmos desigualdades injustificadas, mas Piketty não tem um critério claro e consistente para determinar quais desigualdades são injustificadas. 4P só é parcialmente baseado em 3P, já que eu penso que 1P e 2P são suficientes para estabelecê-lo, mas lembre-se de que nós podemos atingir transparência financeira sem um imposto global sobre capital.
No fim das contas, nós não sabemos qual é o argumento do controle democrático porque nós não sabemos o que é controle democrático, e nós não sabemos qual tipo de instabilidade e quais desigualdades injustificadas enfraquecem esse controle.
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Leia também os textos anteriores da série:
A problemática filosofia política de Thomas Piketty parte I: Argumentos Normativos
A problemática filosofia política de Thomas Piketty parte II: desigualdade e estabilidade social
A problemática filosofia política de Thomas Piketty Parte III-A: desigualdade e utilidade comum
A problemática filosofia política de Piketty Parte IV: desigualdade e transparência