A questão da possibilidade de doação de sangue por homens homossexuais e bissexuais merece um debate mais sério do que aquele que tem sido feito. É uma grande mentira que o Brasil “desperdiça” 18 milhões de litros de sangue por ano por preconceito, como diz uma matéria da Super Interessante de 2016. Assim como é mentira o fato de que é negado a gays doarem sangue pura e simplesmente por serem gays.
As diretrizes do Ministério da Saúde na Portaria 1353 (em seu artigo 34, no inciso VI do parágrafo 11) estabelecem que certos comportamentos exigem uma restrição temporária de doze meses na questão da doação de sangue, entre eles temos:
Ou seja, lendo a portaria, fica bem claro que a restrição não tem nada a ver com preferência ou orientação sexual da pessoa, mas sim com classificações de risco associadas a Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs). O objetivo aqui é evitar ao máximo a transmissão de doenças a pessoas que receberão as transfusões de sangue.
Um exemplo similar dessa política de restrição temporária às doações de sangue se dá no caso da restrição de doação de sangue para pessoas que visitaram áreas endêmicas de malária. Cada hemocentro das regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste apresentará algum tipo de critério específico, mas em geral a determinação é de que pessoas que estiveram temporariamente em áreas endêmicas fiquem proibidas de doar sangue por 6 a 12 meses (MS Portaria 1353, Art. 34, Parágrafo 8, inciso I).
Pessoas que residiram em regiões endêmicas podem ficar proibidas de doar sangue por até 5 anos, mesmo que não apresentem os sintomas da doença ou não tenham nenhum histórico de contaminação. O risco e os custos de se transmitir a malária são bem maiores do que o valor que uma bolsa de sangue (ou 16, no caso de alguém que doe regularmente a cada 4 meses) poderia ter.
Assim, fica claro que a preocupação que existe é com os riscos de contaminação do sangue doado. Mas, por que se restringe especificamente a situação de homens que fazem sexo com homens? Repito, aqui o comportamento é o risco e não a orientação ou a predileção sexual.
Para entender os motivos por trás desse tipo de restrição, a gente deve analisar os Boletins Epidemiológicos de Doenças Sexualmente Transmissíveis e identificar se as estatísticas associadas a determinado comportamento elevam o risco de contaminação das amostras de sangue.
Segundo o Boletim Epidemiológico da AIDS de 2016 do Ministério da Saúde, aproximadamente 0,4% da população brasileira é portadora do vírus da imunodeficiência humana (HIV). Em números absolutos isso seria algo em torno de 840 mil pessoas, dentre estas, quase 550 mil são homens (vide página 10 do Boletim). Vê-se, portanto, que homens estão sobre-representados dentre o grupo de pessoas infectadas com o vírus numa razão de 2,1:1 (lembrando que homens são pouco menos de 49% da população brasileira).
Na página 14 do relatório, temos uma análise sobre qual foi a via de transmissão do vírus: para pessoas acima de 13 anos, em mais de 95% dos casos, a transmissão se deu por via sexual (95,1% para homens, 97,1% para mulheres). Como para doar sangue a pessoa precisa ter mais de 16 anos, podemos focar na análise apenas dessa parcela dos dados (pessoas acima de 13 anos).
Na mesma página 14 do relatório, há outra informação importante: a parcela de pessoas contaminadas pelo HIV correspondente a homens que fazem sexo com homens (homossexuais ou bissexuais) passou de 35,3% em 2006 para 45,4% em 2015. Ou seja, esse grupo teve um aumento proporcional significativo na sua representação entre o total de contaminados. É importante salientar que praticamente todas as outras categorias de transmissão estão em declínio.
Outro dado para continuarmos nossa análise: de acordo com o IBGE (segundo a reportagem da Super Interessante), há cerca de 10,5 milhões de homens homo ou bissexuais no Brasil (para um total de 101 milhões de homens no país, correspondendo a 10,4% da população masculina).
Considerando o total de homens contaminados por HIV (Tabela 20 do Boletim), vemos que:
Assim, temos que homens que fazem sexo com outros homens (HSH) correspondem 40,2% de todos os homens infectados acima de 13 anos (ou aproximadamente 49% dos contaminados via sexual), apesar de corresponderem a pouco mais de 10% da população masculina total. Ou seja, este grupo específico tem quase 5x vezes mais pessoas contaminadas do que o que seria de se esperar apenas pela sua porcentagem dentro da população.
A partir disso, podemos fazer uma análise probabilística para se estimar qual a chance de um homem ser HIV-positivo dado que ele é homo/bissexual ou heterossexual. Para isso, podemos usar o Teorema de Bayes, em que teríamos os seguintes valores de entrada:
Portanto, podemos calcular as probabilidades de um homem estar contaminado pelo HIV dado que ele faz sexo com outros homens ou dado ele ser heterossexual:
Vemos que 2,17% dos homens que fazem sexo com outros homens estão infectados com HIV e 0,26% dos homens heterossexuais. Isso leva a conclusão de que a chance de um homem que faz sexo com outros homens ter HIV é 8 vezes superior que dos homens em geral.
Ou seja, há sim um risco maior associado a essa parcela da população (HSH), não é apenas um preconceito como propagado por parte da mídia. Relembrando, aqui a questão não é a preferência sexual, mas qual o ato sexual praticado.
Imaginando que não exista nenhum viés de seleção entre os doadores e que eles estejam igualmente representados conforme a sua distribuição dentro da população, esperaríamos que 3 a cada mil bolsas de sangue de homens heterossexuais fossem rejeitadas por causa de HIV. Por outro lado, dentre as doações de homens que fazem sexo com outros homens, o esperado seria que 22 a cada 1000 fossem rejeitadas pelo mesmo motivo.
Essa diferença no número de bolsas rejeitadas levaria a necessidade de uma maior triagem, aumentando-se os custos para a análise de cada amostra. Esse aumento do custo se daria em algumas fases diferentes:
Vê-se que o custo para manuseio dessas amostras e dessas bolsas de sangue, e provavelmente para todo o sistema, aumentaria. Talvez o número extra de bolsas de sangue compensasse todo o valor extra despendido (é o caso dos hemocentros nas regiões Norte e Nordeste por causa do risco de malária), mas ninguém pode afirmar que esse é o caso — não há estudos sobre isso.
Provavelmente cidades com uma maior parcela da população sendo LGBT ou com maiores índices de contaminados com o HIV, em especial as capitais dos estados, e instituições privadas poderiam investir em projetos pilotos para se estudar qual seria o possível aumento de custos associados aos hemocentros. Além disso, é importante identificar e se haveria um viés de seleção dentre os doadores (provavelmente os doadores seriam justamente apenas a parcela saudável da população). A partir desses resultados, seria possível se propor alguma alteração nas políticas públicas atualmente vigentes.
Todavia, vale à pena ressaltar que praticamente todos os países desenvolvidos (Portugal e Espanha são as exceções), inclusive os mais amigáveis à população LGBT (como os países escandinavos, Austrália e França), apresentam algum tipo de restrição para doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens. Isto não é algo associado a um preconceito brasileiro:
O tema da possibilidade de doações de sangue por homens homossexuais e bissexuais merece ser estudado. Além disso, é inegável que podem existir pessoas que trabalham em hemocentros que discriminam potenciais doadores baseado em preconceitos e não em dados — em especial no caso de homens homo ou bissexuais que não tiveram parceiros sexuais nos últimos doze meses. Por fim, políticas públicas podem e devem ser revisitadas quando se chega à conclusão, baseada em dados, de que elas não são efetivas ou que têm custos maiores do que seus benefícios. Mas, para isso, precisamos de um debate muito mais sério do que sair por aí falando que o sistema de saúde é discriminatório (no caso, homofóbico), ou propagar que o país desperdiça um recurso que nunca de fato existiu.