Nos últimos anos, a percepção de que a guerra às drogas falhou se disseminou amplamente na comunidade internacional. O que antes era uma exceção – como a solitária posição da The Economist em favor da legalização das drogas há 15 anos –, tornou-se lugar comum. Com isso, a política de drogas mundial tem mudado a passos largos.

Por exemplo, a recente regulamentação da produção e do comércio da maconha no Uruguai e em diversos estados americanos nos anos subsequentes encheu de ânimo todos aqueles que lutam pelo fim da guerra às drogas. Na mesma toada, o novo primeiro-ministro do Canadá já anunciou que também pretende regular a produção e comércio da planta no país.  México e Colômbia também anunciaram que pretendem regulamentar o uso da maconha para fins medicinais.

Em 2011, diversos líderes mundiais formaram a Comissão Global de Política de Drogas, entre eles os ex-presidentes do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, da Colômbia, César Gaviria, da Suíça, Ruth Dreyfuss, o dono da Virgin, Richard Branson e o ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan, defendendo uma reforma radical da política de drogas no mundo. Esses acontecimentos se somam e são resultado da mobilização de diversas organizações da sociedade civil que há décadas pedem o fim da proibição e políticas de drogas mais eficazes na proteção à saúde e à autonomia das pessoas.

Todas essas mudanças ocorridas recentemente faziam crer que os resultados da Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU sobre drogas (UNGASS, na sigla em inglês), que aconteceu no mês passado em Nova York representariam o abandono da política militarizada e uma abordagem mais voltada para a saúde pública. No entanto, os resultados frustraram a muitos de nós que acompanhamos o processo desde o início.

 A América Latina está acordando para os males da guerra às drogas

A UNGASS deste ano foi resultado de uma convocação feita pela Colômbia, pelo México e pela Guatemala. Nesta convocação ressaltava-se o a avaliação de que os danos causados pela repressão violenta à produção, ao comércio e ao consumo de drogas era maior que os danos causados pelas drogas em si e por isso era preciso mudar a forma como a comunidade internacional via o problema. Não é por acaso que o chamado partiu de países latino-americanos.

Para nós que vivemos o problema de perto, a UNGASS nos parecia o caminho natural. A relação entre política de drogas e violência na América Latina tem levado ao fortalecimento de organizações criminosas, o enfraquecimento do Estado de Direito na região e, claro, muitas mortes. Que a proibição gera mais tráfico e violência, economistas e cientistas sociais já sabiam há algum tempo. Recentemente, esses problemas têm cada vez mais sido percebido por líderes políticos na região. Somente no Brasil, há hoje 175 mil pessoas presas por não-crimes violentos relacionados ao consumo e venda de drogas.

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Em outro exemplo, calcula-se que, no México, mais de 70 mil pessoas morreram entre 2006 e 2012 no país devido à violência relacionada à política de guerra às drogas. Nesse mesmo período, mais de 26 mil pessoas desapareceram. 90% da cocaína que entra nos EUA o fez através do México e 70% das armas apreendidas no México tinham sido compradas nos EUA. Estima-se ainda que os cartéis de drogas mexicanos lucram entre 19 e 39 bilhões de dólares com a produção e comércio das drogas. Na tentativa de combatê-los, o governo mexicano gasta 690 milhões de dólares por ano. A violência vivida pelo México na Guerra às Drogas se reproduz em diversos países do mundo, mas é especialmente visível na América Latina.

Os problemas da política de drogas são muito diversos ao redor do mundo

Enquanto países latino-americanos estão preocupados com a intensidade da violência decorrente da política de drogas proibicionista e repressiva, ainda há países que aplicam pena de morte como forma de reprimir o comércio e o consumo de drogas. No Irã, por exemplo, somente nos últimos cinco anos, pelo menos 2690 pessoas foram executadas por crimes relacionados a drogas. O ano de 2015 teve o maior número de execuções desde 1990. 638 pessoas foram executadas por crimes relacionados a drogas. Nesse ano as penas relacionadas a drogas representaram 66% das execuções realizadas no país, seguidas por assassinato (21%) e estupro (6%). A pena de morte faz parte da política de drogas também em países como China, Arábia Saudita, Malásia, Cingapura e Indonésia, país onde dois brasileiros, Marco Archer e Rodrigo Gularte, foram executados em 2015.

A pena de morte parece o exemplo mais perverso de como a política repressiva causa mais danos do que as drogas em si. É a trágica ironia de permitir um Estado, com o argumento de proteger a saúde dos indivíduos, tirar-lhes a vida. Mas em menor grau, mas maior dimensão, essa tragédia da política de drogas se reproduz em outro problema pouco conhecido do mundo ocidental: a restrição a medicamentos. Enquanto diversos países reconhecem os efeitos medicinais da maconha, outros países ainda restringem o acesso a medicamentos de uso amplamente reconhecido historicamente, como a morfina. 92% da morfina produzida no mundo está disponível para apenas 17% da população global com seu consumo concentrado no norte global. 75% da população mundial simplesmente não tem acesso a medicamentos para alívio de dor. Para evitar que pessoas consumam medicamentos para fins não medicinais, governos restringem acesso das pessoas a medicamentos por elas necessários para alívio de dor e outros males facilmente tratáveis atualmente.

Qualquer mudança do status quo deve envolver também uma estratégia que vá além de governos nacionais e se mova de baixo para cima

Essa diversidade de problemas vividos na política de drogas ao redor do mundo parece um desafio político ainda maior quando as mudanças devem ser submetidas a um processo decisório baseado no consenso, como é o caso na Assembleia Geral da ONU.  Apesar de ser a convocação de uma sessão especial da AG da ONU sobre drogas ser um passo importante, esta sessão teve o papel de mostrar que o mundo da guerra às drogas é muito mais complexo do que se pensava.

Não há fórmula mágica nem atalhos para a mudança na política de drogas mundial. Para enfrentar esse desafio é preciso aliar esforços locais, em âmbito nacional e subnacional, com esforços diplomáticos, pressionando por mudanças coordenadas internacionalmente, seguindo o princípio já bem estabelecido de responsabilidade comum e compartilhada da comunidade internacional na política de drogas. Redes transnacionais de governos subnacionais e organizações da sociedade civil podem ajudar a romper com as barreiras diplomáticas.

O programa De Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, foi muito bem recepcionado nos side events da UNGASS e atraiu muito interesse de outras administrações e pode ser replicado por outros municípios e países do mundo. Ao rejeitar o paradigma punitivsta, o programa consegue resultados muito melhores ao lidar com os problemas vividos por usuários de drogas do que programas baseados em abstinência, reclusão e tratamentos forçados, hoje hegemônicos no Brasil e no mundo.

Esse é um exemplo de uma mudança local que pode ter grande impacto nas próximas deliberações internacionais sobre drogas. Da mesma forma, é preciso conectar os diversos problemas vividos pelas populações vulneráveis das diversas partes do mundo a fim de formar um bloco mais coeso na defesa da mudança na política de drogas.

Qual é a relação entre a violência que o jovem negro sobre na favela do Rio de Janeiro ou nos conjuntos habitacionais dos EUA com o risco que o jovem europeu corre de ter overdose por uso de substâncias ilícitas? Como o campesino colombiano que depende da plantação de folhas de coca ou da família afegã que depende da plantação de papoula para sua subsistência pode lutar lado a lado com um senhor de meia idade que, em tratamento de câncer sofre por não ter acesso a medicamentos para tratamento de dor?

 Nos movemos na direção certa, mas o caminho é longo

A UNGASS 2016 teve o mérito de dar o primeiro passo na meia volta da política de drogas mundial em direção ao fim da política militarizada e violenta da guerra às drogas. Esse primeiro passo se deu no reconhecimento de medidas de redução de danos para proteger a saúde dos usuários de drogas e na relevância dos direitos humanos no documento aprovado pela comunidade internacional. Outro aspecto importante é a recomendação de que se busque alternativas ao encarceramento para lidar com problemas relacionados às drogas, medida fundamental para reduzir a população carcerária especialmente nas Américas e na Ásia.

Há ausências gritantes, no entanto. Faltou à UNGASS recomendar a descriminalização do consumo de drogas e dar garantias aos países que tem apostado na regulação dos mercados de drogas. Além disso, houve um assombroso silêncio sobre a aplicação de pena de morte para crimes relacionados às drogas.

Em 2019 teremos o próximo marco na política de drogas mundial. O plano de ação estabelecido em 2009 será revisto na Comissão de Drogas Narcóticas da ONU, em Viena, e os países terão nova oportunidade de redefinir as diretrizes da política de drogas mundial.

Até lá é preciso unir esforços para realizar mudanças na política de drogas em âmbito nacional e organizar articulações amplas para envolver novos atores mundiais na busca por soluções eficazes para os problemas das políticas de drogas no mundo. Assim, será possível construir diretrizes para a política de drogas internacional que respeitem os direitos humanos busquem a saúde e o bem-estar das populações com garantia ampla de direitos e da autonomia dos indivíduos.

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