Como política pública, universidades gratuitas transferem renda às elites do país. Neste Mercado, já escrevi sobre como a universidade gratuita para todos fomenta a desigualdade: enquanto cerca de 30% dos jovens de 18 a 24 anos não completaram o Ensino Médio, as famílias mais ricas ocupam um espaço desproporcional entre as vagas oferecidas pelas instituições estatais de Ensino Superior.

É importante ressaltar que o Estado está fazendo uma transferência direta e indireta para cada um dos estudantes de faculdades públicas. A direta ocorre durante a graduação, através dos professores com os quais têm aula, da infraestrutura da universidade, funcionários administrativos e demais serviços que recebem sem pagar.

A indireta corresponde aos ganhos salariais que cada graduado terá ao longo da vida por causa do diploma universitário. Quase todo gasto envolve transferências indiretas de renda: um investimento em saneamento gera ganhos de produtividade e saúde que melhoram indiretamente a renda dos beneficiários. O mesmo vale para segurança pública, mobilidade urbana, infraestrutura, etc.

Cada política pública transfere renda a alguém. As universidades públicas transferem aos mais ricos.

Por que cotas?

Com o intuito de mudar essa realidade, foi instituída a Lei de Cotas, decretada em Outubro de 2012, com os seguintes critérios:

(i) No mínimo 50% das vagas das Universidades Federais devem ser destinadas a ingressantes que tenham cursado uma escola pública durante o Ensino Médio e/ou Profissional.

(ii) Desses 50%, deve haver uma porcentagem destinada a ingressantes que se auto declarem negros, indígenas e deficientes físicos no mínimo igual ao percentual presente no Estado da Instituição de Ensino.

(iii) Ainda desses 50%, metade deve ser destinada a ingressantes de renda familiar per capita igual ou menor a 1,5 salários mínimos (cerca de 1400 reais referentes ao ano de 2017).

A Lei de Cotas focaliza as transferências das universidades em um público-alvo específico (estudantes de ensino médio da rede pública, negros de renda não muito elevada). Elas são chamadas de sociorraciais por terem critérios interdependentes de natureza social e racial.

O critério social tem sido menos polêmico, por isso o texto falará menos nele. Sua justifica é razoavelmente fácil de entender: se o Estado vai transferir renda, é melhor que seja para quem tem menos. Como afirmou o economista Ricardo Paes de Barros: “… enquanto não tenho mais [vagas], faz todo sentido que as gratuitas fiquem na mão de quem mais precisa”.

Por que raciais?

O critério racial é mais controverso. O principal argumento seria que não há diferenças na dificuldade de acesso à universidade pública entre uma pessoa branca e outra negra, se ambas são da mesma classe social.

O argumento faz sentido: duas crianças sob as mesmas condições sociais e cor/raça distintas, frequentarão escolas de qualidade parecida, terão igual suporte familiar, o mesmo acesso a bens alimentícios e culturais, etc. Não parece fazer sentido que, neste caso, o branco terá uma nota muito diferente do negro. Um sólido conjunto de evidências indica que o mundo não funciona assim.

Os primeiros cientistas sociais a evidenciar e documentar essa desigualdade foram os americanos Christopher Jencks (Harvard) e Meredith Phillips (UCLA), em um livro de 1998 o chamado “The Black-White Test Score Gap”. Nele, os pesquisadores apontam para uma persistente diferença nas notas entre brancos e negros, mesmo controlando por diversos fatores sociais.

No Brasil, em um artigo de 2016, os pesquisadores Letícia Marteleto e Molly Dondero compararam a escolaridade de gêmeos auto declarados com cor/raça diferente ao longo de diversos anos no país (1982 e 1987 a 2009). Surpreendentemente, eles encontraram significativa diferença de escolaridade entre um auto declarado branco e outro auto declarado negro, sendo essa diferença ainda maior apenas para homens, sendo, portanto, os homens negros aqueles com menor chance de obter alta escolaridade, mesmo em comparação àqueles que tiveram exatamente o mesmo ambiente familiar.

Por que brancos tiram notas melhores do que negros, mesmo sob as mesmas condições sociais?

Há diversas teorias das razões pelas quais documentam-se diferenças educacionais entre brancos e negros de mesma classe social. A maioria aponta para o papel do racismo para a própria ambição e sentimento de capacidade da população negra de acessar tais espaços fortemente frequentados pela elite intelectual e financeira do país.

Isso ocorre porque o racismo atua afetando tal sentimento de merecimento ou auto percepção de capacidade, em atitudes do dia a dia de uma criança ou adolescente negro, quando as expectativas já são de menos sucesso do que de uma criança ou adolescente branco. O mesmo ocorre quando ela sofre discriminação da polícia ou dos professores, ao mesmo tempo em que percebe a quase inexistência de intelectuais negros no país em que vive.

Essas situações podem soar subjetiva e, às vezes, insignificante, mas há farta documentação de como o racismo afeta negativamente a formação psicológica dos indivíduos de cor/raça negra. Os estudantes negros, sofrendo de menor expectativa de sucesso e observando seus pares majoritariamente em posição social inferior, se esforçam menos nos espaços acadêmicos e tentam menos ingressar no Ensino Superior.

Há pesquisas evidenciando que as cotas raciais afetam positivamente o sucesso acadêmico e a própria demanda desses grupos minoritários por cursos de Ensino Superior. O primeiro, dos economistas Akhtari e Bau, respectivamente da Universidade de Harvard e de Toronto, sugere que a reintegração da ação afirmativa na Universidade do Texas reduziu o gap de notas entre estudantes brancos e minoritários (negros e hispânicos) de Ensino Médio em testes padronizados, além da própria frequência em cursos avançados.

Já o segundo, organizando pelo instituto de ensino e pesquisa Insper, e realizado pelos economistas Lara Vilela, Naercio Menezes Filho e Thiago Yudi Tachibana, mostra que a inclusão de qualquer modalidade de cota eleva o percentual de participação de todos os grupos que são contemplados pelas cotas. Isto significa que, com a instituição de uma reserva de vagas para os grupos marginalizados (negros, indígenas, pobres e estudantes de escolas públicas) aumenta a demanda destes mesmos grupos por vagas no Ensino Superior, sugerindo que, de fato, essa política tem um efeito positivo de “ambição”.

As cotas sócio raciais pioram o Ensino Superior?

Outro argumento utilizado contra as cotas sócio raciais é de que o papel das Universidades Públicas não seria de fazer política social, mas sim de fazer pesquisa acadêmica, que traria retornos positivos para toda a população. Esse papel, portanto, poderia estar ameaçado caso tais instituições passassem a ser também um instrumento de ascensão social de jovens pobres e negros, que acabaria por reduzir o nível desenvolvimento intelectual médio dos ingressantes.

O mesmo estudo organizado pelo Insper, no entanto, mostra que, com a inclusão das cotas, não há impactos muito significativos na nota média do Enem. Isso ocorre porque, segundo os autores, há alunos elegíveis para as modalidades das cotas com boas notas e em número suficiente para que não haja redução da nota média. No pior dos casos, como aponta o estudo, estes alunos apresentam as notas mais altas do segundo decil de nota.

As cotas sócio raciais são efetivas em tornar as Universidades Públicas menos elitistas?

Os resultados de Vilela, Naercio e Thiago Yudi mostram que, com a política de cotas, há um aumento da demanda de estudantes em posição social desprivilegiada por vagas no Ensino Superior, porém com pouco impacto no nível de desenvolvimento intelectual dos ingressantes das universidades. Esse fator, apesar de positivo, coloca também em dúvida a efetividade das cotas sócio raciais na efetiva promoção de maior participação dos estratos sociais menos privilegiados nas universidades públicas. Felizmente, é possível avaliar empiricamente o efeito da Lei de Cotas sobre a progressividade do acesso às Instituições de Ensino Superior.

Para isso, basta observar a evolução do percentual dos jovens mais ricos com 18 anos nas universidades federais a partir de 2012. O Decreto nº7824 dava um prazo de até Agosto de 2016 para todas as instituições se adequarem às novas regras, no entanto, já em 2014 praticamente todas elas já incluíram parcial ou integralmente todos os critérios para a reserva de cotas. Portanto, no ano de 2015, será possível ver quase todo o efeito da lei.

Como o Gráfico abaixo mostra, houve de fato uma significativa queda no percentual dos jovens entre os 10% mais ricos dessa população nas universidades federais: de um nível em torno de 40% nos anos de 2012 a 2014, para 26,2% em 2015. Há, portanto, um efeito progressivo sobre o acesso às Universidades Públicas, ainda que aparentemente limitado.

Essa limitação da progressividade das cotas ocorre por três razões, cada uma referente a um dos critérios estabelecidos pela lei:

  1. Tendo em vista o baixo número de abertura de vagas nas universidades federais por ano — menos de 350 mil em 2015 -, é razoavelmente possível metade destas vagas serem quase integralmente ocupadas por estudantes da elite do ensino público. Apenas em escolas Federais, conhecidas por sua excelência (e público diferenciado das estaduais e municipais), 155 mil jovens estudavam no Ensino Médio no ano de 2015 segundo a PNAD daquele ano.
  2.  Mais uma vez, tendo em vista o baixo número de abertura de vagas nas universidades federais por ano, não há dificuldade de a elite da população negra obter vantagem em relação à parcela mais pobre da população de sua cor/raça. Assim, ainda que haja uma maior progressividade racial, o efeito sobre a progressividade social acaba mais limitado. Essa situação é agravada ainda pelos crescentes casos de fraude relatados nas universidades, levando algumas delas a instituir “tribunais raciais”.
  3.  Em 2015, no Brasil, quem tinha uma renda familiar per capita de 1400 reais por mês estava entre os 20% mais ricos do país segundo a PNAD daquele ano, de modo que o efeito social de tal cota é, de fato, pouco progressivo.

As cotas sócio raciais, portanto, apresentam caráter significativamente positivo, mas limitado na progressividade do acesso ao Ensino Superior da rede pública. O caráter racial, é importante notar, ameniza os três problemas acima.

Para que esse efeito se complete, seria necessária a instituição de mensalidades nas Universidades Públicas para estudantes que pudessem pagar, como já defendido neste Mercado.

As cotas vieram para ficar

Portanto, as cotas sócio raciais têm legitimidade como um movimento institucional de focalização de uma política pública de forte transferência de renda, as Universidades Públicas. Como se viu acima, o critério racial tem justificativa pelo gap racial de educação documentado nos EUA e no Brasil, possivelmente por causa do impacto sócio psicológico negativo do racismo sobre os indivíduos de cor/raça negra, levando-os a ter menos ambição de obter posições sociais mais elevadas.

Ao mesmo tempo, as cotas sócio raciais tem pouco impacto sobre o nível de desenvolvimento intelectual dos ingressantes nas universidades, enquanto apresentam efetividade, ainda que limitada, no aumento da progressividade do acesso ao Ensino Superior Público. Portanto, tratando-se de uma política legítima, com pouco impacto negativo e significativo impacto positivo, as cotas sócio raciais são de fato necessárias, ao menos por enquanto, para corrigir parcialmente injustiças promovidas pela sociedade e pelo Estado.

 

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