A corrupção de políticos e burocratas segue forte e revoltando a população brasileira. No Índice de Percepção de Corrupção 2016, elaborado pela Transparência Internacional, o Brasil está em 79o lugar num ranking onde o primeiro é o menos corrupto. Estamos muito acima de Haiti e Venezuela, os mais corruptos do continente, e muito abaixo dos líderes Canadá e Estados Unidos.

Diante de tal cenário, é possível defender desvios de verba pública e ainda dizer que fazem bem para a saúde? O leitor provavelmente está com raiva do título deste texto, e tem alguma razão.

Entretanto, a tese de doutorado de um brasileiro, na prestigiada Escola Kennedy de Governo e Gestão Pública da Universidade de Harvard, adota o mesmo título e coleciona uma série de evidências a favor do argumento. Observar o estudo e suas conclusões não é defender a corrupção, mas entendê-la.

Segundo o trabalho de Guilherme Lichand, uma operação anti-corrupção liderada pelo governo federal piorou o serviço de saúde oferecido por municípios brasileiros. Sim, piorou.

O Programa de Sorteios Públicos e como ele, de fato, combateu a corrupção

Antes de mais nada, é necessário familiarizar-se com o programa implementado pelo Governo Federal, que por sua vez teve o intuito de combater a corrupção e, posteriormente, observar se este foi eficaz na execução de seu propósito.

O Programa de Sorteios Públicos, assim como veio a ser chamado, foi anunciado em janeiro de 2003 e serve à Controladoria Geral da União (CGU) como instrumento de dissuasão de esquemas criminosos entre as distintas esferas da Administração Pública.

A metodologia é simples e consiste no sorteio de municípios a serem auditados como maneira de fiscalizar se os repasses de recursos estão sendo corretamente aplicados, seguindo as diretrizes pré-estabelecidas.

Segundo as estimações dos autores o Programa de Sorteios foi responsável pela redução de mais da metade das ocorrências reportadas de corrupção. O simples anúncio do programa, feito em 2003, ajudou a motivar a queda.

Também se observou o impacto do sorteio de um município na corrupção dos seus vizinhos, que caiu drasticamente. Os efeitos de combate a corrupção se mantiveram ao longo do tempo, mostrando-se eficazes aos propósitos almejados.

Os autores dividiram em duas as ocorrências de corrupção: a “high procurement-intensity” se refere a falsificação de documentos, evidências de empresas fantasmas e favorecimento a determinados vendedores, que afetam determinados tipo de procedimento; “low procurement-intensity” são superfaturamentos e certas omissões da contabilidade.

O gráfico abaixo representa a brusca queda dos níveis de corrupção com a introdução do Programa de Sorteios Públicos, controlada pelos subgrupos anteriores.

 

Como o Programa de Sorteios Públicos pode ter piorado serviços municipais de saúde

Além de constatar de que o Programa de Sorteios Públicos foi eficaz no combate à corrupção, Guilherme averiguou alguns dos seus efeitos sobre o sistema municipal de saúde.

Para tal, utilizou uma base conhecida como DATASUS, focando sua atenção em municípios e anos nos quais a auditoria realizada na prefeitura acusou corrupção. As evidências indicaram a piora na saúde local após as investivações, tendo o programa como causa.

Um dos efeitos identificados foi na quantidade das transferências federais que eram investidos na infraestrutura do sistema médico – a camas, vacinas -, além de saneamento básico e outros. O gasto público com esses recuou pelo menos 50% – ou seja, as gestões locais passaram a utilizar menos das transferências para tais investimentos -, levando os autores a incrivelmente constatar que a corrupção por cada real gasto nessas áreas acabou por aumentar após a introdução do programa.

O gráfico acima apresenta a magnitude da queda nesses gastos “intensivos” (linha azul, em queda) e a prioridade a outros, ao longo do tempo. O medo de ser pego pode ter levado os gestores a evitar alguns procedimentos complicados, justamente o que mais impactam o serviço de saúde.

Um segundo mecanismo para identificar a queda na qualidade do serviço destaca a qualidade do funcionamento público de saúde. Os relatórios de auditorias da CGU mostram que as ocorrências de má administração aumentaram após a implementação dos sorteios e fiscalizações. Essas ocorrências estavam especialmente ligadas à infra-estrutura, o que sugere uma ligação com a evidência do gráfico.

O que podemos aprender sobre corrupção com esses resultados?

O estudo enfatiza que a queda dos níveis de corrupção referentes ao sistema de saúde público ocorreu equívocos do próprio programa. O medo em fazer determinados procedimentos, complexos e passíveis de condenação por corrupção, levou as gestões municipais a negligenciarem investimentos importantes.

Muitos dos servidores municipais que lidam com esses processos recebem pouco treinamento e acabam por cometer diversos erros, aumentando a probabilidade de ocorrências não-intencionais de corrupção e o medo de executar o projeto.

O estudo sugere ainda que burocratas locais podem conhecer melhor as prioridades da cidade do que as regras rígidas de licitação. Quando capazes de fugir da rigidez das diretrizes, acabam por, possivelmente, gerir melhor os recursos.

Por fim, os autores propõem uma hipótese polêmica: a menor possibilidade dos agentes públicos de obterem rendas, via corrupção, limita qualquer incentivo em efetivamente investir no sistema de saúde municipal. No Brasil, o roubo poderia ser parte indissociável de algumas boas ações.

Restrições burocráticas ao trabalho do gestor público, assim como uma visão restrita à punição criminal, podem fazer cócegas na corrupção enquanto causam efeitos colaterais ainda menos agradáveis.

Não se trata de defender a corrupção, mas de compreender a burocracia brasileira

O leitor estaria enganado se acreditasse que economistas gostam de corrupção. A vasta maioria da literatura sobre o tema trata dos seus efeitos perversos.

Além da influência sobre a moralidade local e a cultura ética dos indivíduos, existem impactos de ordem econômica, como Rose-Ackerman, Douglass North e diversos outros apontam na literatura.

Com a presença da corrupção, agentes recebem vantagens competitivas por simples pagamentos de propina, e não por melhora na qualidade ou preço do que oferecem. Corrupção leva à conincorrendo-se a má alocação dos recursos presentes. A insegurança jurídica originada pela corrupção deteriora as relações de troca e prejudica qualquer economia de mercado. JBS e Odebrecht são os exemplos fáceis para o Brasil atual.

É difícil acreditar que ocorrências de crimes na esfera pública possam levar a melhores serviços para a população. No entanto, é preciso entender o funcionamento da burocracia brasileira e os incentivos que acompanham muitos programas de combate à corrupção, sob o perigo de jogar o bebê fora junto com a água do banho.

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